GAROTAS DE PROGRAMAS DE LEITURA



 

Realmente, a literatura moderna é muito original e inventiva. A começar pelos títulos das obras: Garota Exemplar, A Garota No Trem, A Garota Que Roubava Livros, A Garota Do Armário... e por aí afora.

Junto aos títulos, os dizeres: ‘mais de 10 milhões de exemplares vendidos!’. Na contracapa, uma resenha com comentários edificantes de revistas e jornais, 20% de conhecidos e o restante de quem ‘nunca vi mais gordo’. Nas ‘orelhas’, uma biografia dizendo que o(a) autor(a) mora em não sei qual estado americano, junto do(a) marido(esposa) e 4 filhos. E o golpe fatal, para quem ainda duvida de alguma coisa: os direitos de filmagem já foram adquiridos por um estúdio de Hollywood. Depois desse golpe, não resta sobrevivente.

Diante dessa avalanche de títulos chamativos, estou em dúvida sobre qual livro comprar.

Acho “a garota silenciosa” bem interessante. Mas me pergunto: será ela “a menina que roubava livros” ou, ao contrário, “a menina que não sabia ler”? A “história da menina perdida” fala daquela que se tornou “a garota do calendário” ou daquela outra, “a menina que brincava com fogo”?

Penso que “a garota dos olhos azuis”, também conhecida como “a menina dos olhos molhados”, bem que poderia ser “a garota perfeita”, não fosse “a menina do capuz vermelho”, heterônimo de “a menina do vale”. Mas não seria ela “a garota das laranjas”? Não sei. Tem também “a menina morta”, que me deixa na dúvida se era “a garota no gelo”, “a menina na neve” ou “a garota do penhasco”. Certamente “o menino do pijama listrado” a chamou de “garota exemplar”. Isso porque ela era “a menina que tinha dons”.

Entre tantas garotas, tenho também vontade de ler o “diário de uma garota nada popular”, mas não sei se ela é “a garota com a tatuagem de dragão” ou “a garota que chutou o ninho de vespas”. Só sei que ela é “uma garota de muita sorte”.

Faço essas observações lembrando que, aqui, as editoras adotam a máxima de só apostar em time que está vencendo (isto é, seguem a filosofia do que é bom para os Estados Unidos da América também é bom para a República das Bananas). Assim, as diferentes garotas conseguem aumentar seu percentual de vendas. Como possuem status e pedigree, fica fácil para elas desbancar os autores tupiniquins, quase todos inéditos.

No mundo de hoje, nessa sociedade massiva e massificante, onde a arte é processada em liquidificadores ‘Made in USA’ (enquanto o resto fica por conta do ‘Made in China’) artigos de pseudocultura são produzidos em série e sob encomenda para enganar os bocós (e fico arrepiado ao pensar na tal de Inteligência Artificial, IA, e o estrago que ela vai fazer, se já não está fazendo, na produção de best-sellers).

Embarcando na onda, e querendo dar uma de esperto, sob o pseudônimo de E.W. Mellow, tenho um manuscrito e pretendo enviá-lo a uma editora. O título é “A Garota Venezuelana Que Fez Pintar Um Clima Para o Imbroxável”. (Pelo que estou vendo, você já se esqueceu da história, ela que aconteceu outro dia mesmo, em 2022.)

Dando um desfecho ao texto, devo dizer que estou lendo “A Garota no Trem”. Ainda não fui atropelado e estou gostando muito. E não me chame de trouxa.

Etelvaldo Vieira de Melo

O IGNORANTE E OS ERUDITOS

 

(Adaptado de “Os Fazedores de Leão”, Contos Orientais, de Leonardo Fróes, Editora Rocco)

Era uma vez quatro amigos. Três deles haviam se tornado eruditos, tanto tinham estudado; o quarto não gostava de estudo, era tido pelos demais como idiota, mas dispunha de bom senso, coisa que os outros não tinham.

Andavam, certo dia, pela floresta, quando avistaram os restos mortais de um leão. Um dos eruditos, o mais velho, disse:

- Vamos testar nossos conhecimentos, trazendo esta criatura de volta à vida. Sou capaz de unir os ossos e reconstituir de novo seu esqueleto.

E assim ele fez com perfeição.

O segundo, mostrando aptidões invulgares, acrescentou carne, couro e sangue ao animal.

Quando o terceiro erudito ia insuflar-lhe o sopro da vida, o imbecil o interrompeu, dizendo:

- Tenham cuidado, amigos, pois estão fazendo um leão e, se tudo der certo, ele pode comer a gente.

No entanto, ninguém levou a sério sua ponderação. O insuflador chegou a falar, indignado:

- Como se atreve a questionar meu saber, seu babaca? Quer atentar contra minha liberdade?

- Está bem – falou o boboca. – Mas, então, espere um pouco para que eu suba nesta árvore.

Assim, o leão reviveu e, no mesmo instante, atacou e matou seus criadores. Só mais tarde, o idiota desceu da árvore e, guiado pelo seu bom senso, tomou o rumo de casa.

Leitura: Esta fábula vem mostrar que sabedoria não se confunde com erudição: muitos idiotas podem ser sábios, enquanto muitos eruditos não passam de ignorantes.

Esta fábula também nos faz lembrar a Internet com suas redes sociais. A pretexto da liberdade de expressão, internautas criam verdadeiros monstros, quando espalham suas mentiras a troco de interesses sombrios.  Ao fim, esses monstros irão destruir a própria liberdade de expressão. Poderíamos ver isso, se as pessoas não estivessem com ouvidos e olhos tampados, sem enxergarem um palmo à frente do próprio nariz.

Parodiando Malcolm X: “Se você não for cuidadoso, as redes sociais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas e amar as pessoas que estão oprimindo”. Esta é a tristeza dos tempos modernos: amamos a quem não merece, enquanto odiamos aqueles que necessitam de nossa atenção e cuidado.

Etelvaldo Vieira de Melo

TESTAMENTO



Quando minha vida chegar ao fim

- Tal fantasia que se esvai -

Quero me ver assim:

Como uma esperança que se desfaz

Um sonho que acaba

Uma luz que se apaga.

 

Quando minha vida chegar ao fim

As decepções estarão perdidas com o tempo

Do mesmo modo que tristezas e alegrias.

Que não venha a doer meu coração

Pois não irei carregar sentimento de culpa

Nem de mágoa. Assim espero.

Quando minha vida chegar ao fim.

 

Quando minha vida chegar ao fim

O que irá restar?

Um pouco de melancolia talvez

diante da incerteza do que há de vir,

do que semeei e plantei

do que ajudei a construir

daquilo que realizei

e, tristeza maior,

do que sonhei mas não fiz.

 

Quisera ter renovado a esperança

Alimentado tudo que quis

Espalhado sorriso e alegria

Construindo pontes para aproximar pessoas

Para iluminar os caminhos

Trazer a paz

Tornar o mundo mais feliz.

 

Este é o sonho que carrego comigo

Na esperança de que seja assim

Quando chegar a hora

E tiver que ir embora

Quando minha vida chegar ao fim.

                                                                                                                                                                                                                Etelvaldo Vieira de Melo 

NEM DE TRISTE CANTAR



 

Passarim está triste 

Passarim desaprendeu de cantar 

Por que tanta tristeza, passarim?

 

Foi por causa do monstro reluzente

vestido de negro 

cuspindo horror 

e gritos de temer?

 

Sim. Ele se achegou até minha casa

e – oh, que dor doida doída!

jogou-a ao chão.

 

De antes, toda manhã era assim:

Eu pousava num de seus galhos,

Ipê Amarelo, para ver o sol nascer.

 

Então, feliz, eu cantava cheio de esperança.

 

Hoje, ficou comigo a tristeza

o vazio de minha voz calada.

O sol desapareceu de minha vista

e, minha vida,

já não faz sentido cantar.

 

É por isso que nas cidades

ainda se vê outro pássaro a dizer:

Bem-que-te-vi! Bem-que-te-vi!

 

Pra quem ele fala assim desse jeito

se todos estão de olhos e ouvidos fechados?

                   Etelvaldo Vieira de Melo