PÁTRIA


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Criança, não verás
país nenhum.
Olha atentamente
a terra onde nasceste.



O povo
se abaixa, se encurva
ante os prepotentes.
Os liberais não têm mais valor.
O povo sai de casa
faz manifestações,
mas é motivo de chacota
no Congresso
e no Supremo que absolve os vagabundos
após tê-los condenado.

Mas alguém há de vir
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Peri que eu sei
impávido intrépido como Bruce Lee.
O índio está a caminho
para cuidar com carinho
do povo brasileiro.
É uma questão de tempo.
Os valores
que estão de cabeça para baixo
serão reelevados
para glória do índio
e do Brasil.

PODE, NÃO PODE (REFLEXOS ACONDICIONADOS)


  F
oi o russo Pavlov quem lançou os fundamentos científicos dos chamados reflexos condicionados, mostrando como animais aprendem a responder a estímulos associados a outros. No caso de seu experimento, um cão aprendeu a salivar ao ouvir um toque de campainha, associado esse a um pedaço de carne que lhe seria oferecido.

Com tal fundamentação, estava Pavlov apresentando razões científicas para domadores aplicarem choques e cometerem outras atrocidades no adestramento de feras para espetáculos circenses e outros mais.

Já o cão da crônica de Millôr Fernandes só aprendeu a comer através do exemplo de seu dono. Acontece que isso perdura até hoje: duas vezes ao dia, o cachorrinho e o dono, lado a lado, devorando suas vasilhas de ração.

Eu é que não posso rir dessa situação. Toda manhã, assim que meu cão aponta o focinho no vidro da porta da cozinha, tenho que sair para a área e brincar com ele por cinco minutos, já que não tenho preparo físico para mais do que isso.

Falando no distinto, estamos – os moradores lá de casa – tentando condicioná-lo a fazer suas necessidades fisiológicas em determinado local, através de reforço de “muito bem”, e “aí não pode”. Não está sendo fácil, estamos quase deixando-o fazer pra onde o nariz apontar. O problema é que, quando faz algo de errado, ele olha pra gente, como a perguntar: “Por que vocês estão bravos?”.
           
A indústria canina abarrota os pseudos proprietários com uma infindável lista de produtos de domesticação. Entre tais produtos, estão as soluções de “aqui pode” e “aqui não pode”. Quando o cãozinho faz xixi em lugar proibido, você goteja a solução do “aqui não pode”. Lá em casa, nosso melhor amigo ainda não sabe disso, tem marcado território pra tudo quanto é canto.
           
Essa situação faz com que eu pense na possibilidade de fazer um curso de psicologia canídea (família animal da qual também faz parte a raposa, de quem, ultimamente, não quero ver nem sombra), com especialização no ramo canino. Ao longo do curso, estarei apto para condicionar nosso animalzinho a fazer de maneira correta suas necessidades; ao final, poderei abrir uma clínica de aconselhamento psicológico. Poderei atender àquele cachorrinho de senhora que, em sua infância, teve uma experiência traumatizante: estava ele mamando na cadela de sua mãe quando, de repente, uma inusitada pulga a mordeu; ela, raivosa, latiu para a pulga, mas o filhote pensou que a mãe estava latindo raivosamente para ele. Então, ele cresceu com esse trauma de infância - não podia ouvir um latido mais forte que logo começava a tremer. A madame-sua-dona o levou até meu consultório. Deitei o cãozinho num divã e, passando a mão em sua cabecinha, perguntei-lhe: “Qual o problema?”. O cão abanou o rabo e latiu para mim, falando-me do problema que o atormentava.
           
Como, por enquanto, não consigo nem mesmo resolver os problemas de urina e de cocô, com o “aqui pode” e o “aqui não pode” sendo ineficazes, acabo tendo uma ideia que pode funcionar, não com os cachorros, mas com os humanos.
           
Tenho um parente sofrendo com incontinência urinária e fecal. Estou pensando em lhe enviar de presente os frascos dos dois produtos. Sua esposa irá pingar gotas de “aqui não pode” nas suas cuecas, pijamas e na cama; enquanto isso, gotas de “aqui pode” serão borrifadas no vaso sanitário. É como diz o ditado: não deu pro Chico, mas serviu pro Francisco.
Etelvaldo Vieira de Melo
          

           


 

ISSO TAMBÉM PASSARÁ

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BODE VELHO QUER CAPIM NOVO

F
loriano Fatiota nasceu numa cidadezinha do interior das Minas Gerais. Quando colheu a primeira flor da juventude, resolveu por bem tentar a vida na capital, já que a perspectiva de sobrevida em sua cidade lhe parecia sombria, tenebrosa.
           
Assim, na base da cara e coragem, juntou seus pertences numa mala e rumou pra capital, logo se ajeitando no ramo da construção, atuando, primeiro, como servente para, logo depois, tornar-se um pedreiro de colher cheia.
           
Para disfarçar um problema que lhe parecia extremamente grave, o fato de ser analfabeto, deixou crescer um bigode, pensando que aquilo poderia servir de despiste. Quando aparecia uma situação que exigia um conhecimento mínimo da escrita, ele afagava o bigode, como a dizer pro interlocutor:
           
- Mas isso não se resolve com poucas palavras, não!
           
O outro, então, cuidava de lhe explicar, tintim por tintim, a acontecência, deixando Floriano totalmente a par do que se tratava. Satisfeito com sua estratégia, dava uma alisada final no bigode para comentar:
           
- Está bem, vamos tocar assim o negócio.
           
Tantas situações estressantes, somadas à solidão de um estranho na cidade grande, fizeram com que se tornasse um viciado em bebida alcoólica. Não que ele fosse um alcoólatra propriamente; ele bebia mais para calibrar o medo, a insegurança e uma natural timidez. Portador de uma boa resistência, passava desapercebido como ele se segurava por detrás de umas bebidinhas e do bigode.
           
Com muito trabalho e persistência, foi se ajeitando, comprou um lote, construiu uma casa e se casou. No dia do casamento, ele fez o favor de deixar a noiva esperando, porque havia bebido tanto que se esqueceu da hora.
           
Tudo isso não impediu que ele tivesse uma vida de casado normal para sua maneira de entender a vida. Tiveram alguns filhos, que cresceram, casaram e, depois, a sua esposa morreu.
           
Floriano viu-se, então, vivo, livre, leve e solto. Enquanto casado, ele se segurou como foi possível, nunca dando margem para falatórios, agindo sempre com integridade, pagando o que fosse possível para não entrar em qualquer tipo de confusão.
           
Mas aconteceu que sua mulher morreu, partiu dessa, deixando-o livre na flor da melhor idade. Nessa altura, ele já não se escondia por detrás do bigode. Havia frequentado uma Escola de Alfabetização, chamada de EJA, já sabia muito bem bordar o nome e fazer algumas leituras rasteiras. E estava solteiro.
           
Foi, então, que ele partir para a guerra. Percebeu que havia muitas mulheres disponíveis no mercado, era só ter paciência, armar a arapuca ou colocar isca no anzol, que algo de bom ficaria preso ou fisgado. Cuidou melhor da aparência, matriculando-se numa academia de ginástica. Quis também entrar numa academia de dança, mas foi convencido por um amigo a adiar tal projeto.
           
- Acho melhor você deixar para mais tarde – explicou o amigo. – Como você tem um problema de catarata, há o risco de você levar gato por lebre, ou seja, você escolhe lá uma mulher pensando que é uma coisa; quando for ver, ela é outra coisa bem diferente. É melhor você operar as vistas, primeiro.
           
Assim ele fez. Ele, que tinha uma vista meio turvada, agora está enxergando que é uma beleza.
           
Como tudo de bom na vida tem um reverso, Floriano enfrenta um dissabor: foi se apaixonar por uma mulher bem mais nova, cheia de boniteza, além de ser uma pessoa muito agradável. Está claro que já contabilizou várias conquistas; quando se encontra com aquele amigo, como despiste para ouvidos terceiros, essas conquistas são enumeradas por códigos: A, B, C, D... Assim, eles se comunicam, sem que outros deem com as línguas nos dentes, isto é, venham a fazer fofocas. Tantos troféus, entretanto, não conseguem amenizar a dor no coração de Floriano. Ele só tem pensamentos para a sua Deusarina.
           
Deusarina só fala em amizade, mas Floriano quer mais, quer aquilo. Quando ele vem chorando pro seu lado, com cara de pidão, Deusarina desconversa e dá um chega pra lá nele.
           
Floriano se sente desesperado, chegou a procurar orientação técnica. Falaram que, diante de uma retranca, a melhor tática é jogar pelas pontas. Ele fez isso, mas o resultado foi pífio, não passando de um 0X0. Resolveu, depois, marcar sob pressão, mas não existe preparo físico que aguente fazer isso durante todo o jogo. Quando resolvia ir pro abafa, todo no ataque, ela avançava a zaga e o deixava em impedimento.
           
Floriano está decidido a abandonar essa partida. Como última cartada, num desespero de causa, fez como aquele rapaz que, após assassinar os pais a facadas, pediu clemência aos jurados dizendo ser órfão. Floriano falou assim para Deusarina:
           
- Sua presença faz meu coração disparar, minha vista fica embaralhada e começo a tremer. Vou me afastar de você, já que não existe espaço para mim em sua vida.
           
E assim ele fez. Com o coração sangrando, ele se afastou e até arranjou uma substituta (como as mulheres gostam de falar, a fila anda). Não se trata de nenhuma Deusarina, mas tem poucos quilômetros rodados. Quando Floriano chegou naquela afobação, ela aplicou-lhe um cartão amarelo, com a advertência:
           
- Vem com modos, seu apressadinho, que sou mulher de respeito.
           
Aquilo foi só conversa, pois, no terceiro ataque, Floriano já havia marcado gol.
           
Com isso, acabou se esquecendo da paixão por Deusarina. Contou também uma simpatia para velho deixar de gostar de menina mais nova: torrou a ponta de uma espiga de milho com sal grosso e bebeu daquele caldo. Foi tiro e queda.
           
Aquele amigo, já mencionado por outras duas vezes, manda pedir desculpas pelas brincadeiras, que não falou nada por maldade, diz que Floriano é um senhor de grande coração e que merece todas as felicidades possíveis e imagináveis. Fica registrado o pedido.
Etelvaldo Vieira de Melo





           
           

 

MUNDO GRANDE E PEQUENO




Uns dizem que o mundo é grande.
Outros dizem que é pequeno.
O mundo grande é pequeno.
Nele cabem os conflitos na Ucrânia na Crimeia Na Venezuela
além das flores
dos preconceitos de cor, de raça, de religião
e de forma física.

Imagem: millyrabelo.blogspot.com
Vem chuva
e não lava o mundo.
Vem um sujeito
oculto na rua.
Vem uma dama
com seu cachorrinho
e eis mais um assalto.

Vem um sujeito
do alto escalão
colarinho branco
e arromba o país.
Esses cabem no mundo
grande-pequeno.
Eles se regalam
e riem.
Quem rirá por último?

O mundo grande é pequeno.
Nele cabem os heróis do futebol
e o jeitinho brasileiro.
Por que o desejo sofrido
do povo
é o único que não cabe no mundo?












UM SOPRO DE BRISA

     Pequenos fatos, aparentemente banais, toda hora, chamam nossa atenção para os perigos do sectarismo dogmático.
        
Eu explico: Dias atrás, andei fazendo algumas considerações desabonadoras sobre o fato de terem umas meninas espalhado pelos postes avisos de procura de uma cadela chamada Nani.
        
Ontem, entrando numa loja de pet-shop, vi, fixado na parede, um novo aviso, dizendo mais ou menos assim:

PROCURA-SE NANI DESESPERADAMENTE
        
E o novo panfleto prometia uma generosa gratificação para quem desse notícia da cadela.
        
Engana-se quem pensa que achei graça ou ironizei aquilo. Desta vez, foi meu coração que doeu e algumas lágrimas teimaram em cair pelo meu rosto.
        
No intervalo de tempo entre os dois avisos, acerca de doze dias, aconteceu que minha filha ganhou de presente um cão da raça Yorkshire Terrier. Tratava-se de uma fêmea. Veio com o nome de Violeta, mas logo a apelidamos de Vivi. Estava com três meses de vida, pesava 890 gramas, cabia na palma de minha mão e todos de casa nos apaixonamos por ela.
        
Ela é muito brincalhona, medrosa, mas atrevida, gosta de focinhar tudo que encontra pela frente e, quando recebe uma reprimenda por fazer algo errado, fica olhando para a gente com olhos inocentes e tristes.
        

Minha filha equipou a casa com todos os apetrechos produzidos pela indústria canina, procurando atender às exigências de proporcionar ao nosso melhor amigo todo o conforto e toda comodidade.
        
Deixando de lado a questão financeira, onde poderia ser considerado que criar certa espécie de animal de estimação pode ser mais caro que criar um filho, quero considerar que a presença de um animal assim em casa pode nos tornar pessoas melhores. Vocês mesmo poderão observar como meu coração se tornou mais sensível e afetuoso depois que passei a conviver com Vivi.
        
Divagando sobre o tema, dois assuntos chamam minha atenção.
        
Primeiro, quando aquele político falou que aquele outro político despertava nele os mais baixos instintos, isso aconteceu porque o outro não estava com um Yorkshire nas mãos. Se estivesse, os sentimentos daquele seriam de ternura, carinho, amor.
        
Segundo, de uns tempos pra cá, o povo brasileiro anda muito nervoso, qualquer coisinha é motivo de manifestação e quebradeira. Está na hora do governo criar mais um programa social, que poderá receber o nome de “Meu cão, minha paixão”. Um cãozinho Yorkshire pode ser doado para cada família, juntamente com o bônus “ração popular”. As famílias seriam orientadas para educar os animaizinhos a fazer suas necessidades fisiológicas, sem maiores traumas para uma das partes. Não sei, mas talvez aquele experimento de Pavlov sobre reflexos condicionados possa ser utilizado.
        
Estou fazendo essa divagação toda, não querendo falar algo necessário. Ontem, Vivi começou a passar mal, com vômitos. Ela foi encaminhada a um hospital veterinário, chegando a fazer exame de tomografia, com suspeita de perfuração intestinal. Hoje, pela manhã, um vazio imenso veio tomar conta de mim, uma saudade danada já aperta meu peito: o coração de Vivi, do tamanho de uma bolinha de gude, não resistiu e ela morreu.

Etelvaldo Vieira de Melo

DÚVIDA

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Não sei
se vou
ou se fico.
Não sei 
se faço                                                             ou desfaço.      
Não sei
se creio
ou descreio.
Não sei
se estudo
ou trabalho.
Não sei
se escrevo
ou se leio.
Não sei
se falo
ou me calo.
Não sei
se ando
ou se paro.
Não sei 
se vou
ou se fico.
Não sei se faço
ou...

VERDADE DE CALÇAS CURTAS


E
stando certos os que acreditam em reencarnação, devo ter sido testemunha em tribunais de justiça noutras passagens, tal o meu empenho com a verdade. Quando me surpreendo no intuito de dizer uma mentira, pequenininha que seja, logo fico vermelho qual pimentão maduro.
        
Essa crença inabalável até bem pouco, teve suas estruturas seriamente comprometidas dias desses, quando vivenciei um fato banal.
        
Para não fugir ao costume, estava eu no ponto de ônibus, esperando o distinto para me levar para casa, meu lar, meu doce lar.
        
Um desconhecido, que nunca tinha visto mais gordo (e ele era um pouco gordinho), que logo se identificou como Júnior, veio puxar conversa comigo. Ao mesmo tempo em que tentava puxar conversa, ele me puxava pelo braço. Achei tudo aquilo muito estranho e fui me afastando da calçada pro asfalto, correndo risco de ser atropelado por um veículo qualquer.
        
Como meu instinto de sobrevivência sempre fala mais alto, cuidei de voltar para o calçamento. Pensei: fazer o quê? Enquanto isso, o Júnior, qual metralhadora giratória, disparava palavras pra tudo quanto é lado, chegando ao ponto de dizer que eu parecia com um seu amigo.
        
Perguntei pelo olhar: como assim? – e ele explicou que se sentia incomodado em conversar com o amigo, pois só ele falava, enquanto que o outro balançava a cabeça.
        
- Por que somente eu falo? – quis saber Júnior.
        
- Ora – respondeu, finalmente, o outro. – Não sei se você já observou que temos dois ouvidos e uma boca. Se fosse para falar mais do que ouvir, haveríamos de ter várias bocas e alguns poucos ouvidos.
        
Júnior não ficou vermelho - ou porque era moreninho, ou não se deu conta da direta do outro. Continuou seu diálogo monológico comigo, dizendo ter sido técnico em eletrônica, mas que se tornara corretor de imóveis.
        
- Dias desses, levei um sujeito para comprar a casa da minha mãe, e sabe o que ela fez? Ela disse assim: Olha, seu moço, se eu fosse você, não comprava esta casa, não. Estas paredes aqui são todas de adobe, a laje está com filtração; quando chove, é um Deus nos acuda. Também tem a vizinhança, que mexe com drogas. Quando baixa a polícia, a casa vira um beco de saída pros traficantes, voando bandido pra tudo quanto é lado. Outra coisa é que estou precisando pedir é a ligação de esgoto, pois a fossa está toda cheia.
        
Ao ouvir aquela descrição, o sujeito virou pra minha mãe e falou assim:
        
- Dona, sou muito agradecido pela sua franqueza. Eu estava pensando seriamente em fechar negócio, mas, depois de suas palavras, acho melhor desistir.

Quando o distinto se foi, Júnior passou uma reprimenda na mãe:
        

- Mãe, mãe, deste jeito a senhora me leva à falência!
        
Foi aí que ele se lembrou de outro amigo e que tinha uma porção de namoradas: Olha aqui, Júnior, vou colocar o telefone no Viva-Voz pra você me ouvir marcando encontro com uma gata. E assim ele fez com uma e mais uma. Eu falei pra ele: Cara, você é casado, tem uma mulher linda, tem uma filha, por que você faz uma coisa dessas? Ora – falou o outro: - Se eu falar que sou casado, acabo não pegando nada; por isso é que, pra elas, eu sou solteirinho da silva.
        
Nessa altura dos acontecimentos, quer dizer, do falatório, como o ônibus ameaçava chegar, Júnior quis fechar com chave de ouro sua explanação: Eu nunca vou dizer a verdade total para um cliente. Se ele me pergunta se existe problema com drogas nas imediações do imóvel, eu vou dizer: “Meu amigo, você sabe que o problema de drogas é generalizado; por isso, não vou dizer que tem ou deixa de ter. Você sabe como é.” Pra você, eu digo uma coisa: quem fala a verdade, não sai do chão.
        
O ônibus chegou, passei pela roleta, usando da carteirinha que me dá direito à gratuidade. O Júnior também pegou o mesmo ônibus, mas ficamos separados por uns bancos. De longe, eu lhe disse: Abraços pra sua mãe! Quanto ao princípio de que quem diz a verdade não sai do chão, por causa de meu retardo mental, ainda não digeri bem. Depois eu vou ter uma opinião formada sobre o assunto, isto é, se o fato de ter vivido rastejando até hoje, como se fosse uma tartaruga, decorre do compromisso de sempre dizer a verdade. Ai, se for!
Etelvaldo Vieira de Melo


SALDÃO DE CARNAVAL

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Vendem-se poemas
quatro quartos
suítes
1,99.

Versos à vista
seios empinados
aproveite a oferta.

A estrofe fechou em alta
lavagem
de frase peculato
doloso e poesia
dez vezes sem juros.

Rima de trinta graus
em Belo Horizonte.

Cai o PIB da métrica
cresce a crise
no engenho e arte.
Espetacular o salto da palavra
que infelizmente
não leva o ouro.

Taí a Copa
implantes de inspiração
sem dor.
Só você não vê
a vantagem
de comprar um verso livre
numa vaga de cemitério
finíssima aquisição.

Eis um livro garantido
Senado vota nele
ano que vem.

Melodias
esqueça essa história
de corpo.

Épicas
a novela das sete das oito
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ESQUISITICES



S
e a gente for observar bem, não existe ser humano que deixe de ter suas esquisitices. Holofontina Fufucas chamou atenção de seu marido, Melidônio Ferrara, para a mania que ele tinha de, estando conversando com alguém, ir se aproximando, enquanto o interlocutor tinha que se afastar, até ser prensado de encontro a uma parede. Se estivessem próximos de um precipício, era perigoso o outro ser arremessado de encontro aos rochedos.
           
Quando foi chamado à atenção, Melidônio cuidou de se policiar, a fim de evitar maiores vexames; ao mesmo tempo, começou a observar as esquisitices de outras pessoas.
           
Reparou, por exemplo, que seu amigo Anus Gamberini, quem sabe por influência do próprio nome, tinha a mania de se coçar na região glútea. Como dizem as pessoas lá de sua terra, “tretô-relô” e lá estava o Fuinha – apelido com o qual era conhecido – com os dedos se coçando.
           
Já seu colega Boris Kossaks tinha a mania de se coçar na frente. Seu nome foi uma homenagem que sua mãe quis prestar àquele escritor russo, Boris Pasternak, autor do sucesso Doutor Jivago e que se tornou uma superprodução cinematográfica, dirigida por David Lean, estrelada por Omar Sharif e Julie Christie. Quando estudou, não havia bullying, mas Boris sofreu com as perseguições e provocações dos colegas, que o chamavam de Boris Coçassaco. E não é que, de tanto ouvir isso, ele acabou adquirindo essa mania?
           
Melidônio ria interiormente quando se encontrava com Fuinha e Boris e eles, distraídos pela conversa, davam vazão às suas esquisitices. Elas tiveram fim, ou ficaram suspensas, quando Fuinha – que não usava o vaso sanitário de forma convencional – caiu de um deles e acabou se cortando exatamente na região glútea, levando ali vários pontos. Já o Boris, parece que teve uma reprimenda em casa. Muito raramente ele se coça, assim mesmo quando julga estar sozinho ou não sendo observado.
           
Foi na leitura desses casos que Melidônio se lembrou de um colega de adolescência e que também tinha comportamento pra lá de esquisito, o Avercílio. Esse tinha a mania de comer sabonete. Se você queria fazê-lo feliz, bastava lhe oferecer um. Não que fosse um esfaimado; ele gostava de sabonete, sim, mas os comia com moderação, um pedacinho por dia. Melidônio não sabe como está sua condição hoje, com a proliferação de várias marcas e espécies. Fica incomodado ao saber que existem os esfoliantes, que podem causar um estrago no esôfago, e os antibacterianos, que podem acabar com a fauna intestinal. Melidônio se pergunta: será que o Avercílio resistiu aos tempos modernos?
           
Quando comentou esses casos com o amigo Fridolino Xexéo, esse quis acrescentar mais um exemplo de esquisitice. Melidônio não quis dar crédito às palavras do amigo, já que o considera um pouco exagerado e chegado a uma mentirinha. De qualquer modo, o caso é que Fridolino mora num prédio e tem como vizinhos de apartamento um casal, cuja mulher atende pelo nome de Carmen Lúcia Bizetina Macarenas. Ela é brasileira, mas os pais são espanhóis. Eles tanto encheram a cabeça da moça com Andalucía, Sevilha, Granada, tourada e flamenco, que a pobrecita ficou traumatizada para o resto da vida.
           
Fridolino teve oportunidade de conhecer o pai de Carmen pessoalmente, quando esteve em seu apartamento e ele ali estava de visita. Tratava-se de um senhor distinto, trajando um terno de linho bege, com gravata listrada nas cores vermelha e amarela; seu cabelo era todo grisalho e ele estava sentado numa poltrona, chorando copiosamente. O aparelho de som tocava Ojos de España.

          

- Foi, então, que me dei conta de um cacoete de Carmem, professora de rede pública de ensino. Assim que cheguei à porta, ela foi dizendo: “Que bom que você veio, psiu, Fridolino, psiu.” - E apontando para o senhor sentado na poltrona: “Este é meu pai, psiu, que está passando, psiu, alguns dias aqui em casa, psiu.” O senhor se levantou e, estendendo a mão, falou, numa mistura de línguas: “Mucho prazer. Perdone mis lágrimas. És la soledade qui apierta mi corazón.” Apesar de estar na faixa dos trinta anos, Carmen tem voz metálica, estridente, como se fosse uma taquara rachada. Deve ser por gritar com alunos e dizer psiu.
           
O amor pela Espanha estava tão enraizado no coração de Carmen que Fridolino diz ter ouvido à noite, vez por outra, os acordes de España Cañi.



Em certas ocasiões, esta melodia era substituída por outra, El Gato Montes.



Fridolino ouvia, então, barulho de cama rangendo, acompanhado de gemidos e suspiros, entrecortados por psius. Ultimamente, o apartamento tem ficado silencioso, o que leva o amigo à suposição de que as touradas foram suspensas, talvez pela morte do touro, talvez por um acidente fatal com o toureiro.
           
Melidônio acha a história do amigo carregada de exagero, mas que se salva pelas referências musicais. Você também pensa assim?
Etelvaldo Vieira de Melo