O BONEQUINHO ELETRÕNICO

Imagem: americanas.com.br


O bonequinho eletrônico
tem asas que batem, batem
e pousam logo no chão.
Seus olhos de contas azuis
brilham, brilham como estrelas
e miram fixo o ar.

Não é um bonequinho doce
de açúcar e farinha.
Seu corpo é feito de plástico
e se chama Bob ou Ching.

O bonequinho eletrônico
tem luzes que pisca-piscam
para andar atirando
em guerras.

Quando ouve algum barulho
o bonequinho eletrônico
lança lasers com pás de aço.

Os gatos fogem de susto
e o caro bonequinho
vai e volta sob o controle
de um menino de carne e osso
cheio de alma e surpresa.

PELAS RUAS DO BAIRRO, EM UM SÁBADO

  
N
este sábado em questão, tive que sair da cama mais cedo, por volta das 8:40 (madrugada para os meus padrões), já que teria a manhã tomada por compromissos; entre eles, o de passar na casa de ração comprar um comprimido para o Thor, que apresentava um quadro de baixa imunidade, com suspeita de cinomose ou outra doença que ataca filhotes de cães.
Em frente ao Pet Shop, havia uma barraca de plástico; ali dentro, num quadril, estavam uma meia dúzia de seis cães, entre eles um - não sei se macho ou fêmea - de porte elegante e rara beleza. Devia estar pensando: “Como é cruel a vida de um animal, ter que se sujeitar à humilhação de mendigar uma casa onde morar!” O Thorzinho, perto dele, parece um Frankenstein, o que destaca a sabedoria das palavras de Saint-Exupéry: “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a tornou tão importante”. Assim acontece com os animais de estimação, assim acontece nas amizades e no amor.
            Tão nobres pensamentos foram danificados, quando eu me perguntei o porquê de tamanha filantropia dos pet shops, preocupados em arranjar um lar para cães abandonados e órfãos. Somando um mais um, concluí que tudo aquilo acontecia porque iria proporcionar dividendos com a venda de rações, medicamentos e atendimentos veterinários. Tive, então, que concordar com um ex-amigo, que tem como máxima o princípio de que em toda ação há uma oculta razão.
            Saindo da casa de ração, passei num frango assado e comprei um feijão tropeiro para incrementar o almoço do dia. Depois foi a vez de um sacolão, onde comprei legumes, um tanto de frutas e folhas. Ali eu me deparei com a degradação da batata inglesa, que estava chegando a preços aviltantes. Coitada, logo aquela que era descendente das terras da rainha-mãe! Será por que ela não conseguia manter a dignidade, como tão bem sabem fazer o cará e a banana? O cará sempre manteve seu preço lá nas alturas; a banana, desde que os políticos começaram a dar (banana) para o povo, também se manteve em níveis elevados.
            No sacolão, esbarrei com o Raimundinho da Jeovita, aquele que se casou com a Viúva-Negra. Olhei bem pra sua fisionomia tentando visualizar uma ameaça de internação em UTI, mas vi que ele se encontrava ainda bem disposto.
            Não sei por que, mas o Raimundinho acha que não regulo bem da cabeça, pois, toda vez que a gente se encontra, ele tem que repetir: Você sabe, depois que fiquei viúvo, arranjei uma namoradinha e a gente, bem, a gente se casou.
            No encontro deste sábado, estava interessado em comprar um tanto de mandioca, “uma das maiores conquistas do Brasil” – segundo ouvi dizer. Ele disse que, da última vez, a mulher havia feito um caldinho de mandioca com umas carnes cozidas. Estava muito bom, ainda mais tendo tomado um tanto de vinho. Como provocação, falei:
            - Aí, subiu...
            - Subiu tudo – falou ele, dando aquela risadinha nervosa, uma de suas características.
            Voltando para casa, esbarrei com aquele senhor, aquele das cinzas de sabugo de milho misturadas com sal grosso, o bode velho que queria capim novo.  Ele estava próximo a uma pequena floricultura. Como o Dia dos Namorados havia sido comemorado por aqueles dias, ainda estava afixado no portal de entrada da loja este poema, que faço o favor de transcrever:
Imagem: sobre Píramo e Tisbe / Texto: etelvaldo v melo

 Quando quase alcançava o portão de casa, fui assaltado por um cão, tentando abocanhar o tropeiro.  Por pouco, o almoço especial de sábado não foi embora, roubando a alegria de um texto que celebrava aquele dia tão especial que, no dizer do poeta Vinícius... “todos os namorados estão de mãos entrelaçadas, todos os maridos estão funcionando regularmente, todas as mulheres estão atentas... porque hoje é sábado”.
Etelvaldo Vieira de Melo


ANIVERSÁRIOS

Imagem: uip.com.br


Vovó está na casa
dos brinquedos.
Aqui um carrinho,
ali uma boneca,
bichos que falam
como crianças.

Vovó vira menina
querendo um smartphone
tagarela.
Na prateleira
o urso manda beijos
e a Frozen quer docinhos
para o seu próximo show.

Vovó espia um gato
que diz "bom dia"
e mia, mia.

Pelo Sedex, pensa,
vou enviar a casa
à netinha e ao netinho
que moram no meu coração.

VAZIO, RASO, PROFUNDO

Para Carminha, sobrinha querida.
Quando criança e adolescente, por muitas e muitas vezes fui pescar em rios que volteavam minha pequena cidade natal. Essas pescarias quase sempre aconteciam na companhia de um tio, solteiro convicto, e que sempre morou lá em casa.
Tinha apelido de Lalau e, na minha lembrança, ele sempre aparece com as mãos, apoiadas no cinto da calça, apertando a barriga. Sofria ele de uma gastrite crônica, embora nunca tenha abandonado o hábito de fumar e tomar café. Somente depois de muitos anos é que se submeteu a uma cirurgia, que lhe provocou estreitamento do esôfago, fato que o obrigou a se alimentar de ensopados.

Era o Lalau quem cuidava de preparar os anzóis e as varas de pesca. Levantávamos bem cedinho, com ele também cuidando de preparar as iscas, minhocas - que eram cavadas no quintal de casa. Eu tinha uma espécie de “olho gordo”, isto é, nunca achava que as iscas seriam suficientes. Elas eram ajeitadas em latas, geralmente aquelas de salsichas, junto com um tanto de terra. Quando aqueles anelídeos eram bravos, o meu entusiasmo crescia. Pensava: “Hoje eu vou me dar bem!”

O que acontecia quase sempre é que eu me dava muito mal, já que era um péssimo pescador, fisgando mais os galhos das árvores que os peixes propriamente.

Quando chegávamos ao pesqueiro, procurava lugares onde o rio fazia encosto junto às árvores, formando os remansos. Meu tio escolhia um local qualquer e, enquanto eu brigava com as muriçocas e sem ter experimentado sequer um puxãozinho no anzol, lá estava ele enchendo o embornal de peixes.

Ao ver aquilo, eu ia me achegando, enquanto ele, gentilmente, ia se afastando. No final, lá estava ele no meu ponto de partida, enquanto eu, mais perdido do que cego em tiroteio, não sabia mais onde jogar o anzol.

Estas lembranças me acorrem quando leio uma citação de Guimarães Rosa, dizendo ele que “ama os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem”.

Que a alma humana seja profunda eu não tenho como discordar. Só não aceito a analogia com grandes rios, já que eles não fazem parte de minha história de vida. Depois, o meu tio Lalau me mostrou que esses detalhes de raso e profundo são muito relativos. A profundidade pode estar escondida em águas aparentemente rasas, enquanto aquilo que aparenta ser profundo é, na verdade, uma coisa rasa.

No fundo, chegando a uma discórdia total com Guimarães Rosa, penso que a vida humana também é assim: pessoas aparentemente profundas são superficiais, enquanto outras, para as quais você não dá valor, são de riqueza imensa e inesgotável.

Bênção e um abraço, querido tio Lalau, onde quer que você esteja. O senhor, dentro de sua simplicidade, foi um homem de extrema sabedoria.
Etelvaldo Vieira de Melo

NAMORADOS





Imagem: bloogdlanastolatek.bloog.pl

Na sala
samambaias vinhos pernas
candelabro de velas acesas.

Aimez-vous!
dizem se beijando as violetas.

A tarde cai
como um hai-kai.
Borboletas perfumes
música ambiente.

Entre laços
longos abraços
o amor se faz
e a sala suspira
em paz
os mil e um ais.


ROENDO OSSO


Para que não fique no ar a suspeita que minha vida gira em torno de cachorros ou, o que é pior, que dou mais valor a essa espécie animal do que ao ser humano, prometo que tal assunto será tratado aqui pela última vez. Ou, pelo menos, por enquanto.
Em um programa de TV, um adestrador de cães disse: “Os cães não são aprendizes, eles são professores”. Passando pelas ruas de meu bairro, vi um poodle toy ser conduzido por sua dona (cuidadora). A cada metro, ele parava para focinhar alguma coisa. Tenho certeza de que, ao final do passeio, ele terá feito grandes descobertas, mas não sei se poderei dizer o mesmo de sua cuidadora. É esta a lição que acabo de aprender com aquele professorzinho: cultivar a curiosidade, prestar atenção em tudo que for possível.
            Casualmente, estava eu indo até uma casa de ração comprar um daqueles ossos bem grandes para o felino que mora lá em casa, o Thor. Para justificar a compra, falei uma coisa que me pareceu ser a maior besteira:
            - Olha – disse ao dono do estabelecimento – isto não é para mim, não, viu? Estou levando este osso para o cachorro lá de casa, que anda com uma coceira danada nos dentes, mordendo tudo que vê pela frente. Quero ver se, assim, ele se acalma.
            Quando Thor viu aquele ossão, senti em sua expressão uma dúvida, que tornou seu rosto ainda mais enrugado, como se isso fosse possível: “Será que vou dar conta de destroçar isto que você está me oferecendo?”.
            

           Como tenho procurado decodificar os ditos e expressões populares, lembrei-me daquela do “osso duro pra roer”. Ela é lembrada quando alguém enfrenta uma situação difícil, daquela que exige muito esforço para resolver.
            Enquanto Thor tem pela frente um osso duro de roer de fato, muitas vezes, enfrentamos situações difíceis de roer, em sentido figurado. Um exemplo de osso duro ocorre de dois em dois anos, quando somos intimados, obrigados a exercer nosso direito democrático de votar na escolha de nossos dirigentes e legisladores. Em outras circunstâncias, seria um motivo de prazer e orgulho, mas, por enquanto, por causa dos sistemas eleitoral e político, não deixa de ser um osso duro votar na menos ruim das opções.
            Com tal exemplo, fica sem justificativa aquele olhar de deboche, ou dó, do vendedor, achando que eu não estava bem da cabeça, falando aquilo que falei.
Quando eu tentei lhe explicar que a gente, vira e mexe, encontra um osso duro de roer, o dono do pet shop acabou entendendo a frase em sentido literal. Ele disse:
            - Sim, a gente também rói osso. Quando chegar em casa, vou roer um junto com uma cervejinha.
            - Não, estou falando em sentido figurado – corrigi.
            - Ah, está certo! Durante o dia, estou eu aqui na loja “roendo osso”. Na vida, todos temos nossos ossos pra roer.
            Foi, então, que aprendi esta segunda lição com os cachorros: eles não se incomodam em ter que roer osso, parece até que gostam de fazer tanto esforço. Por analogia, se temos que roer ossos, precisamos entender que muitos desses “ossos duros de roer”, fazem parte de nosso aprendizado e de nosso processo de amadurecimento.
            Muitos pais fazem de tudo para que seus filhos não tenham que “roer ossos”. Conclusão: quando é de todo impossível deixar de roer um, a criança, o adolescente ou o jovem não dá conta, acaba quebrando os dentes!
Etelvaldo Vieira de Melo 








            

FELINOS

Imagem: ultradownloads.com.br

Entre o gato
que mia, mia,
no outro telhado,
e a menina
que mira, mira,
do lado de cá,
há um muro
de duros tijolos.

Entre o gato
que chia, chia,
e a menina
que espia, espia,
há um espaço
de puro aço.

Entre o gato
que entristecia
com miados
esse longo dia
e a menina
que ria, ria,
resta o vazio
do inalcançável
encontro.

ERRAR É BURRICE, PERMANECER NA ERRO É HUMANO

Quando inverto o ditado, estou falando em nome da Sociedade Protetora dos Animais, embora ninguém me tenha dado procuração para tal. Meu propósito é resgatar a dignidade de um animal que tem sua imagem deturpada por questão de... burrice. O texto também passa sem reprovação pelo novo acordo ortográfico entre os países de língua portuguesa, com ressalva apenas quanto ao uso do hífen, cujas regras quase sempre me deixam com a “pulga atrás da orelha”.
Quando um burro empaca, querem crer que faz isso por teimosia; ninguém se dá conta de que ele esteja praticando um ato inteligente. Existe uma razão que o faz parar, mas que não é compreendida pelas pessoas movidas pela ignorância. Como ninguém lhe pergunta “Por que parou? Parou por quê?”, o mal-entendido (!) fica estabelecido e a má fama se alastra. Não é próprio do burro cometer burrice; burrice é achar que ela, a burrice, seja próprio do burro. Não é. O burro age com inteligência, pois só comete uma burrice por vez, enquanto os humanos, ao cometerem um erro, o repetem por duas ou mais vezes.
Muitos exemplos de burrice podem ser encontrados num esporte muito apreciado pela maioria da população: o futebol.
No mundo do futebol, as maiores burrices são praticadas pelo torcedor, a começar pelo fato de ser torcedor, um sofredor: ele sofre pelo seu time, chegando a verter lágrimas, gasta horrores indo aos campos (no caso do Brasil, sendo tratado com toda falta de respeito), vê dirigentes nacionais e internacionais cometendo toda espécie de roubalheira, usando do futebol – assim como locutores esportivos e ex-jogadores – como trampolins para carreiras políticas, perde tempo acompanhando o noticiário esportivo, tudo a troco de algumas alegrias pífias que evaporam na próxima derrota ou no próximo torneio. Tudo isso sem contar as chateações das torcidas rivais. Os torcedores merecem que os jogadores de seus times não só desfilem pelos gramados, mas que comam a grama efetivamente, tais as cifras astronômicas que acabam em seus bolsos.
Não comete burrice uma espécie de mulher, chamada de maria-chuteira (!), que se aproxima do jogador e, na primeira oportunidade, o fisga, como se ele fosse um panaca. Depois, passa a frequentar as redes sociais, exibindo o corpo como a dizer: “Vocês falam que eu me vendi, mas vejam com seus olhos se não valho o quanto peso”.
Gosto de futebol, cometo a burrice de ser torcedor de um time desde os tempos em que seus jogadores eram formados nas categorias de base, no tempo em que as transações eram raríssimas. Hoje, um jogador está beijando uma camisa; amanhã, lá está ele beijando a camisa do maior rival. Tem jogador que já cometeu a façanha de passar por mais de vinte clubes.
Técnico consegue ainda maior façanha, experimentando o gosto de quase todas as torcidas do país. Consegue também cometer muitas burrices.
O atual técnico do time pelo qual torço (ia escrever “meu time”) insistiu com um zagueiro que sempre entregava os jogos. Até o dia em que se deu conta do tamanho de sua burrice. Entretanto, acabou trocando uma burrice por outra: colocou na zaga outro jogador em péssima fase.
Todo jogador, assim como a Lua, tem suas fases. Tem vez em que está na fase da lua cheia, jogando um bolão, mas tem outras em que está na minguante, com a bola murcha. Como a fase do jogador muda repentinamente, cabe ao técnico ter o desconfiômetro ligado para efetivar as substituições. O que ele faz? Por ser medroso, comete a burrice de fazer as trocas já passados 15 e 30 minutos do segundo tempo, quando a porteira já está aberta e a vaca foi pro brejo. Tentando segurar um placar, coloca todo mundo na defesa (e todo mundo fala que a melhor defesa é o ataque); tomando um gol, tira os jogadores do meio e enche o ataque, achando que pode fazer ligação direta entre defesa e ataque. Outra burrice: ligação direta é coisa de eletricista ou de “gato”.
Maior burrice é insistir com jogador que mostra estar em fase minguante aguda. No entanto, quer o técnico provar para a imprensa e para a torcida que ele é um cara coerente, que prestigia seus atletas. Baboseira. Na realidade, ele está “queimando” jogadores, indispondo-os com os torcedores. Ao invés de coerência, seu atestado é de burrice. Falta-lhe humildade para reconhecer seus erros e reconhecer que os torcedores sempre têm razão, mesmo estando errados.
Burrice, ao final, é algo que ocorre com todo ser humano: um presidente na escolha de seus ministros e os eleitores na escolha de seus dirigentes, um diretor escolhendo seus assessores, as decisões que tomamos. Como não damos “o braço a torcer”, insistimos na burrice, dando com os burros n’água. Por isso é que digo: insistir no erro não é coisa de burro, mas de humano.
PS: Assim que acabei de produzir o texto, fiquei sabendo que o técnico em questão havia sido demitido. Como nos romances policiais, onde os mordomos são sempre os primeiros suspeitos (romances policiais ingleses – pois é só lá na Inglaterra que encontramos essa categoria de profissional), no futebol,quando um time sofre uma série de derrotas, o técnico, além de suspeito, acaba sendo demitido. Burrice da diretoria? O tempo, que é “senhor da razão” (não é mesmo, senhor ex-presidente?) haverá de dizer.

Etelvaldo Vieira de Melo