ENQUANTO O SONO NÃO VEM


AS APARÊNCIAS ENGANAM

Folheando uma revista de dois anos atrás, li uma nota curiosa. Uma atendente de caixa de um supermercado na Inglaterra se recusava a vender uísque para uma senhora de 92 anos de idade. O motivo? A senhora não portava documento que comprovasse sua idade. A velhinha disse para a moça: “Filhinha da vovó, olhando pro meu rosto e minhas rugas, não dá para perceber que tenho mais de 18 anos?” Ao que a moça retrucou, singelamente: “Aparências são como rótulos de uísque, muitas vezes enganam”.
           
Diante de tal notícia, lembrei-me daquela máxima latina “Dura Lex, sed Lex” – a lei é dura, mas é lei – que era do domínio popular, mas que, diante de tantos abusos, tornou-se artigo de museu, perdeu seu sentido. Não foi aqui no Brasil onde alguém disse que temos excesso de leis, que o problema é aplicá-las? Isso me faz considerar que uma nova versão dessa máxima, MD/Br2014, poderia ser: “A lei é dura, é lei, mas podemos negociar”. Fernando Sabino, comentando sobre essa máxima, dizia: “Para os pobres, é dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei. Para os ricos, é dura lex, sed látex. A lei é dura, mas estica”.
           
Depois, considerei que não disponho de neurônios suficientes para entender outras culturas, notadamente a inglesa. Aqui no nosso país tupiniquim, qualquer garoto, assim que aprende a soletrar algumas palavras, pode ir a um boteco comprar uma garrafa de cachaça.
           
Numa terceira consideração, lembrei-me de um amigo que, estando em visita ao Museu do Louvre, foi logo dispensado de entrar na fila, sem ter que apresentar documentação, ele que dispunha de pouco mais de 60 anos. Chego a considerar que essa dificuldade em reconhecer a idade das pessoas seja mais próprio das mulheres. Eu mesmo, que, absolutamente, não aparento meu tempo de vida – especialmente quando estou de boné – nunca tive que comprovar nada para usufruir de algum benefício. Observo, entretanto, que isso ocorreu quando era atendido por um representante do sexo masculino. Quando era uma mulher a me atender, muitas vezes tive que reclamar meu direito. Tudo isso me faz perguntar: será que idade é um problema na cabeça das mulheres?
           
Sei não. Sei que essa história de que as aparências enganam tem um fundo de verdade.
           
Quando estudava num internato, observava adolescentes com hormônios explodindo por todos os lados. É o que acontecia com Doroteia, sobrenome do José e com o qual era conhecido. Foi ele que, querendo dar uma de esperto, aproximou-se de Geutiliano Amendoeiras, conhecido como Maria Mole – numa alusão àquele doce tremeliquento, tido e havido como um bocó, um palerma – e, julgando que seria moleza, lhe propôs que fizessem “aquilo”.
           
O outro concordou, com a condição de que ele fosse primeiro. Quando chegou a hora de inverter os ponteiros, Maria Mole não quis de jeito nenhum.
           
A partir de então, Doroteia perdeu o moral frente os colegas, virando motivo de chacota. Todos diziam:
           
- Que vergonha, Doroteia! Logo para o Maria Mole...
           
Tem razão a moça lá do supermercado inglês. O cinema não mostrou Brad Pitt velhinho? Com essa história de plástica, vai que uma mulher queira ter uma aparência mais idosa... Estou vendo que, neste mundo doido de hoje, tudo é possível.
           
Qual bólido de Fórmula 1 (mas sem ser pilotado por um desses brasileiros de ultimamente), aproveitando carona no vácuo desta história inglesa - agora que estamos em período eleitoral e minha caixa de correio anda cada vez mais entupida de “santinhos”, cada qual mais angelical que o outro – fico imaginando um possível diálogo com um político:
           
- Vim pedir seu voto – fala ele, apertando minha mão com a sua cheia de dedos, dando-me um tapinha nas costas.
           
- Mas como posso dar o meu voto para você, assim no escuro?
           
- Ora, eu passei pela lei da Ficha Limpa...
           
- Essa lei da Ficha Limpa está uma verdadeira peneira furada. Tem político de passado tenebroso e respondendo a processo, liderando intenção de votos para governador em vários estados.
           
- Mas, então, o que posso fazer para ganhar seu precioso voto?
           
- Por acaso você dispõe da CH, Carteira de Honestidade?
           
- Xiii..., obter essa carteira está mais difícil do que o Brasil se recuperar moralmente da derrota para a Alemanha por sete a um no futebol.
           
- Já que é assim, você pode brigar até a morte por uma reforma política em nosso país?
           
- Meu querido, se for atender a seu pedido, estarei cortando em minha própria carne. Veja que a classe política é formada por raposas velhas, a maioria de fato e outros por vocação; assim, como macacos velhos, não vão querer meter a mão nessa cumbuca de uma reforma. Mas qual é mesmo o seu nome?
           
- Eu me chamo Ingenaldo.
           
- Pois, então, seu Intrevaldo, nem que você cozinhe a galinha e beba o caldo. Só quero lhe dizer uma coisa, mas que fique entre nós: como político, estou lá no Congresso para defender o meu e os interesses daqueles que injetaram dinheiro em minha campanha, grandes corporações - na verdade. Além disso, o sistema que aí está atende os nossos interesses, sem contar os urubus e as hienas, que também levam seus petiscos.

- É lamentável ouvir suas palavras – concluiu Ingenaldo, com voz embargada. – Contudo, tenho que continuar correndo atrás de meu sonho, ou então terei que mudar meu nome. O slogan de minha campanha será: Ou o Brasil faz uma reforma séria, acabando com esse Sistema Político – e isso é uma verdade inegável - ou esse jeito de fazer política vai comprometer o futuro do Brasil de maneira irrevogável. E o meu nome é In-ge-nal-do.

Etelvaldo Vieira de Melo

O ANIVERSÁRIO DE CLARA (FINAL)

Parabéns pra você
Nesta data querida
Muitas felicidades
Muitos anos de vida.

- Sopre as velas que estou fotografando!
- Faça um pedido.
 - Quero ganhar um skatenet.
 - Não pode falar. O desejo é segredo.
         - Tá bem. Vou pensar. Agora vou distribuir os docinhos. Quer um bombom, Mimi?
           - GATA NÃO COME BOMBOM!
           - Não vê que é tudo de brincadeira?
           - Ah, é mesmo. Mimi gosta.
           - Mamãe, vai experimentar minha torta?
           - Que delícia. Dê um pedaço para a vovó.
           - Obrigada, Clara.
           - E você, Lucy? Quer mais um doce?
           - Outro.
           - Coma o bolo, mamãe.
           - Obrigada.
           - Podem pegar os balões, tem muitos por aí.
           - Papai quer um brigadeiro, o desenho e os apitos.
              - Vamos dançar. Cante em inglês, Clara.
           - I Love you, oh, oh, I Love you. Mude o disco, papai. Cante também, Lucy.
           - I Love you, I Love you.
           - ESTÁ NA HORA DE DORMIR.
           - Então, vamos dar as lembrancinhas, bonecas.
           - Eu quero os retratos da festa.
           - Podem deixar. Vou passar por e-mail.
           - Tiau, Ana Clara.
           - Volte amanhã, Lucy.
           - Boa noite, Clara.
           - Boa noite, urso Panda.
           - Até amanhã, princesa.
           - Até amanhã, Miau.                                  
Imagem: www.fotosimagens.n






- Direto para a cama!
- Amanhã tem natação!
- Primeiro vou tomar o meu leite com Nescau
- Taqui, filha.
- Boa noite, vó.
- Boa noite. Durma bem.





O CÃO QUE NÃO PODIA VER O PÁSSARO QUE NÃO PODIA VOAR


O
 meu nome é Thor. Não sou nenhum deus da mitologia nórdica, nem personagem de quadrinhos; sou um cachorro. Se fosse para olhar sob a perspectiva humana, a história de minha família é pra lá de complicada.
           
Pra início de conversa, meu pai é também meu avô, já que, ao mesmo tempo em que engravidava minha mãe, também colocou minha avó de barriga prenhe. Conclusão: tive quatro irmãos por parte de mãe e quatro por parte de avó e que, por isso, eram também meus tios.
           
Já minha avó era também minha madrasta, por parte de pai. A única que ficava sem tirar nem por era minha mãe, que era minha mãe – mesmo que a olhasse por todos os lados.
           
Com tantos irmãos e tios, minhas primeiras experiências de vida foram o que os humanos chamam de “balaio de gatos”, ou seja, vivi momentos de muita confusão. Tive que disputar, a tapas com os parentes, ora as tetas de mamãe, ora as de vovó. Como eu era muito esperto, sempre acabava me dando bem. E não tinha esse negócio de respeito aos mais velhos, já que meus tios eram também meus irmãos e, a bem da verdade, um pouco mais novos do que eu.
           
Tanto mamãe como vovó sempre se mostravam dispostas a doar seus leites, mesmo que fosse para os netos (caso de vovó) ou para os irmãos (caso de mamãe). Evidentemente, os mais espertos conseguiam tirar melhor proveito. Eu jogava nesse time e, por isso, logo fui ganhando corpo, ao tempo que deixava meus irmãos e irmãos-tios para trás.
           
Enquanto estávamos naquela luta renhida pela sobrevivência (e que me fazia lembrar aqueles versos de Gonçalves Dias: "Não chores, meu filho; / Não chores, que a vida / É luta renhida: / Viver é lutar. / A vida é combate, / Que os fracos abate, / Que os fortes, os bravos /Só pode exaltar!"), meu pai-avô ficava de longe, observando, mas não querendo se envolver com nada. Era isso que me incomodava em seu olhar, seu jeito de ser. Ele é de uma raça chamada Shar Pei e tem a pele toda enrugada. Seu rosto também é tomado por rugas, o que lhe confere um ar de tristeza e enfado. A qualquer hora do dia em que eu olhava para ele, lá estava ostentando aquele aspecto de cansaço, ansiando por sombra e água fresca. Essa maneira de olhar provocou em seu dono, eu ouvi, o seguinte comentário:

           
- Quando olho para Zau, sou tomado por profundas questões metafísicas: Afinal, quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Qual o sentido de tudo isso? Será que vale a pena viver?
           

Se fosse humano, os médicos haveriam de prescrever-lhe uma dose diária de antidepressivo.
           

Sei que carrego muito dele como herança genética. Sinto que, fisicamente, somos até parecidos um pouco (tenho até mesmo a língua azul-escura), embora, enquanto filhote, eu seja muito mais charmoso. Quanto ao aspecto psicológico, fico torcendo para que a herança genética seja de minha mãe, uma cadela vira-lata, mas que tem muito bom humor e alegria de viver.


Enquanto conto esta pequena história de vida pra vocês, muita coisa anda acontecendo, sendo a principal ter sido adotado por um casal, o senhor Florêncio e dona Rosália, e, assim, acabei me afastando dos meus parentes.


No início, foi difícil suportar a separação. Por duas noites eu chorei, achando que havia sido abandonado.


Ultimamente, sinto-me bem adaptado à nova situação de vida. Eu me dou bem com todos da casa, em especial com a filha do casal, a Margarida. Todos brincam comigo. Sinto um prazer especial em roer aqueles ossos vendidos em pets-shop. Também gosto de mordiscar uma bolinha e correr atrás de uma garrafa de refrigerante. Um cobertor - que eles chamam de “são vicente”, daqueles doados para asilos - era usado para forrar minha cama, mas sofreu tanto comigo, que acabou todo estraçalhado. Tornou-se, também, um de meus brinquedos favoritos. Dias desses, recuperei outro brinquedo favorito e que andava sumido: uma tira de sandália havaiana, cortada por meus afiados dentes.


Uma coisa de que eu gosto, mas que está errado, é mordiscar as plantas que estão no quintal. Vez por outra, acabo me esquecendo disso e arrebento muitas plantas, o que causa um desgosto enorme em dona Rosália. Sei que, quando me tornar mais velho, vou acabar corrigindo esse meu defeito de caráter.


Outra coisa que tenho a dizer tem a ver com aquele passarinho que não podia voar, o Pti-Pzi-Pti. Eu sabia muito bem de sua presença no quintal, só fingia não me dar conta. Ouvi as pessoas da casa comentando o fato de ter ele, finalmente, conseguido voar. Torço muito para que ele seja feliz; gostaria que aquele seu sonho de que éramos amigos tivesse sido realidade. Achei bonita a lição que ele e seus pais deixaram.


Eu me sinto assim também, feliz por ter sido adotado por esta família que me quer tanto bem. Quando algum deles, depois de brincar comigo, tenta entrar para a cozinha da casa, logo eu abraço uma de suas pernas, pedindo para que não vá embora.


Esta é uma das maneiras que encontro para demonstrar carinho. Se tem algo que posso ensinar para os humanos, esse algo se chama reconhecimento. Carinho, respeito e reconhecimento são valores que andam fazendo falta aos humanos. Pelo menos, é isso que tenho ouvido as pessoas comentarem aqui em casa.


Quando eu crescer e tiver mais experiência, poderei, se vocês quiserem, fazer outras considerações sobre o que a vida me ensina. Por enquanto, é só o que posso dizer. Adeus. Assinado: Thor.








O ANIVERSÁRIO DE CLARA

Imagem: fotosimagens.net

     
     



      - Você quer brincar comigo?
     
      - Claro.
         
     - Então é seu aniversário. Vamos convidar o Kiwí, mas que ele não chegue com o pelo imundo, sujando com as patas o tapete da sala. Vamos chamar minha irmã, Anne, as Barbies e todos os bichos da sala para comerem o bolo.
         
    - E o que será o bolo? Ah, essas massinhas estão boas para ser o bolo. Temos também os docinhos que a vovó está preparando.
         
     - E o jogo de xicrinhas? O namorado da Barbie pode usar o uniforme de velcro com a jaqueta que acende e apaga.
         
    - Vou começar a fazer os convites. Estou desenhando os corações e posso escrever o meu nome: C – L – A – R – A.
         
      - Não se esqueça do papai e da mamãe. Desenhe para eles também.
         
      - A que horas vai ser a festa?
         
      - Hoje.
         
      - A Lucy está ensaiando o desfile das princesas.
         
      - Você vem de Branca de Neve?
         
      - Não. Vou de Frozen. Passe o laptop que vou fazer as pinturas.
         
      - Enquanto isso, Clara, vou chamar os convidados.
         
      - Mamãe, papai, vovó! Vai começar meu aniversário.
          
       - Já vamos, filha.   
            
       - Estamos na televisão.
         
      - E as maquilagens? Você quer o batom, Anne?
         
      - Põe o gloss marrom. E pinta minhas unhas de azul.
         
      - Tá bem. Aqui estão as velas. Bote em cima do bolo.
          
      - Já chegamos, Clara. Trouxemos presentes.
         
      - Você vai experimentar a fantasia da Else que a vovó fez.
         
      - Isso, vista. Quer a Maria Chiquinha mais apertada?
         
      - Já estou pronta. Deixe ver no espelho.
         
       - Você está linda!
         
      - Vai começar o desfile. Pode assentar aqui, papai. E as fotos?
         
       - Eu mesmo tiro. Faça uma pose.

       - Quero tirar uma com a gatinha.
           
       - Já tirei. Quer ver?

       - Tire esta com a Anne.
           
       - Ficou ótima!

       - Tire outra com o Kiwí.
          
       - A vovó também quer sair na foto!

       - Vamos cantar o parabéns. Chegue para cá, Miau.

Parabéns pra você
Nesta data querida
Muitas felicidades
Muitos anos de vida.


(continua)

VAI, QUE A FILA ANDA!

Em plena segunda-feira, mais de seis horas da tarde, ou 18 horas (6:00 p.m., para os leitores internacionais e os que estão nas “nuvens”), passava Ilvimar por uma avenida do bairro e viu multidão a quase se perder de vista, frente a uma Casa Lotérica. Deduziu que tanta pessoa não estava ali para fazer uma fezinha, jogar dinheiro fora. As casas lotéricas se tornaram, ao longo do tempo, instituições multifuncionais. Além do tradicional jogo de loteria, pode o cliente ali utilizar de serviços bancários, como pagamento de faturas e saques.
         
Ilvimar considerou um absurdo o governo, ao mesmo tempo, proibir jogos de azar para particulares, enquanto arranja os seus, tantos que seria enfadonho enumerá-los aqui. O azar continua para aqueles que ficam tentando a sorte. Ela sorri mais para aqueles que encontram, assim, uma forma fácil de extorquir o dinheiro suado de pobres coitados. Muitos deles deixam faltar o pão em casa, seduzidos pelo canto de sereias, empenhadas em afundar-lhes os barcos.
         
Além dessa consideração sociológica, Ilvimar observou também um aspecto psicológico naquela situação. As pessoas que ali estavam não demonstravam cansaço ou revolta. Elas exerciam um dos reflexos condicionados do povo brasileiro, o de frequentar uma fila. O hábito de estar numa fila é tão enraizado na mente das pessoas que existem aquelas que entram numa e, se você lhes pergunta o que estão fazendo ali, irão responder:

    - Nem sabemos. Vimos a fila e achamos por bem entrar nela.

Antigamente, filas se formavam nas agências bancárias, frente aos caixas. Como banco não é instituição de caridade, havia um sentimento crescente de revolta nas pessoas ao se sentirem extorquidas, ao mesmo tempo em que se sujeitavam a aguardar em fila. Os banqueiros tiveram a brilhante ideia de tratar aquelas pessoas como se fossem filhotes de cobra: fizeram com que as filas tivessem formato de meandros, formados por suportes e correntes, dando a ilusão de que o atendimento seria em instantes. Aquilo acalmou um pouco o nervo das pessoas. Logo depois, vieram os caixas eletrônicos. Frente a eles, as filas também se formam, mas o sentimento que despertam é de quase religiosidade. Ali, as pessoas se sentem dialogando com a tecnologia em um de seus mais evoluídos estágios. Por isso, o nível de reclamação é baixo, mesmo quando muitos caixas ficam inoperantes, por estarem em “manutenção”, e apenas dois ou três são disponibilizados para um grande número de clientes.

Ilvimar considera que esse hábito de induzir as pessoas a frequentarem filas não passa de um artifício do Todo Poderoso, o Sistema, para domesticar, eliminar qualquer sentimento de rebeldia, “abaixar o facho” de quem quiser falar mais alto.
         
Assistimos, hoje, a um estágio evolucionado da fila: ela não se faz mais coagindo as pessoas a ficarem em pé; em muitos casos, há uma distribuição de senha e o pretendente aguarda sentado em poltrona ou cadeira. Entretanto, tal situação não deixa de ser uma fila.
         
Refletindo sobre o tema, viu Ilvimar que ele envolvia questões complexas. Considerou, por exemplo, que provocar fila é estratégia de marketing: filas para comprar ingresso de um show; filas pra aquisição do último lançamento de determinada marca de Smartphone; fila para comprar numa queima de estoque de uma rede varejista.
         
Fechando suas lucubrações, Ilvimar considera que o povo, qual cachorro no experimento de Pavlov, já se condicionou a uma fila, sente prazer em estar numa, mesmo que seja para reclamar, dizer desaforos. A única que provoca indignação genuína é aquela formada nas seções eleitorais, Mesmo assim, quando sai da cabine, pode se ver um meio sorriso orgulhoso no rosto daquele eleitor, enquanto cuida de guardar o ticket comprovante de votação na carteira.
         
Quase chegando em casa, Ilvimar encontrou o amigo Fridolino Xexéo, aquele que já brindou os leitores do blog com três belas músicas espanholas. Comentando o tema, soltou Fridolino estes versos:

Dizia o político à multidão:
O ex-ministro Beltrão
Infelizmente errou a mão.
O problema do país não é a burocracia
Mas o número de fila em demasia.
Para sanar a questão,
Enviarei uma moção
Em forma de abaixo-assinado
Ao Congresso para ser votado.
Por favor, assinem este atestado.

Estando em frente à Prefeitura
Criou-se enorme confusão
Todos querendo, a um só tempo, dar sua assinatura.
O político, vendo aquilo, ergueu a mão,
Dizendo: Para que possam assinar todos da Vila
É bom se organizarem em fila!

Nessa segunda-feira em questão, Ilvimar vai se encontrar com sua namorada, Darcília Abraços. Como Ilvimar anda mais enrolado que bobina de motor, numa indecisão danada, sem saber se vai ou se fica, a Darcília, ao invés de um abraço, deu-lhe uma intimação:
        
    - Vê se decide, projeto de homem, que a fila anda!

Etelvaldo Vieira de Melo

HOJE É O ZERO

Imagem: filosofiaeapologtica.blogspot.com


Numa verbal volúpia
escrevo-te o poema.
Não me esqueço do corpo,
erotizando as palavras.

Quando a lua pisca
e a casa cai
como um punhal,
mando esta carta triste
e mando com final.

  Sou uma figura estranha:
vou até a exaustão.
Não temo a tua memória,
mas tenho pânico
à mão.

Fiz o que pude.
Cedo ou tarde reencontro
o ponto de partida.

As horas fundamentais
já me visitaram.
Por que será que te esqueço
e fico só na ilha,
pensando em correr,
ao invés de caminhar?

Precisávamos ir mais devagar.


QUANDO É FÁCIL, FICA DIFÍCIL

         FOI Gertrudes se aconselhar com Venâncio Fortunato sobre um assunto que a incomodava, deveras.
           
Antes, por educação, quis saber como andava o amigo.
           
- Estou numa situação difícil, que só você vendo.
           
- Mas o que anda lhe trazendo tanto desconforto?
           
- Estou numa situação financeira tão complicada, devendo tanto que, como diria o Barão de Itararé, nem posso chamar minha esposa de “meu bem”.
           
- Mas por quê?
           
- É que, se eu chamar uma pessoa de “meu bem”, o Banco vem e toma.
           
- Ah, deixa de gozação – falou Gertrudes, sorrindo, quase se esquecendo do assunto que tanto a incomodava.
           
- É brincadeira mesmo – falou Venâncio. – Entretanto, você sabe que pobre é apertado por natureza, vive pendurado feito cabide. Agora, me diga o que anda aborrecendo a sua beleza.
           
- Minha reclamação é quanto à falta de homens no mercado. Além de serem em número reduzido, comportam-se como gatos escaldados temendo água fria, isto é, tornam-se cada vez mais ariscos e medrosos.
           
- Calma, querida, que seu chororô abala meu bondoso coração – falou Venâncio, em tom de leve reprimenda. – Vou sondar minha indefinida inteligência, buscando um lenitivo que lhe sirva de ajuda ou consolo.
           
- É bom você ficar sabendo de antemão que já apelei para toda espécie de simpatia e superstição – cortou Gertrudes, com o dedo em riste apontado pro amigo.
           
- Já pendurou uma imagem de Santo Antônio, amarrado pelos pés numa jarra d’água?
           
- Foi a primeira providência que tomei. Tive que tirar o santo da água, senão ele se desmanchava todo.
           
- Conversou seriamente com sua imagem, ameaçando colocá-la na geladeira, caso não lhe arranje um namorado?
           
- Ela está no congelador e já virou picolé.

- Por acaso, você já deu para um rapaz...
           
- O quê???
           
- ... a água com que lavou uma camisa sua, para ele beber?
           
- Já fiz isso com um vizinho e, até agora, não tive nada de resposta.
           
- É, parece que a situação está mesmo grave pro seu lado.
           
- Ora se está. Outro dia, fui ao casamento de uma amiga e os pais dela até providenciaram uma queima de foguetes. Na hora em que ela jogou o buquê de flores, eu me engalfinhei com outras pretendentes e quase fui parar no hospital.
           
- Mas conseguiu o troféu?
           
- Que nada. Somente arranhões e um olho roxo, por causa de cotoveladas.
           
- Xiii... E uma folhinha de arruda atrás da orelha, já tentou?
           
- Aquilo fede tanto que, ao invés de atrair, vai afugentar os pretendentes.
           
- Tem razão. Vamos procurar outro expediente. Estou consultando o Doutor Google e estou vendo que as receitas são até perigosas. Tem uma aqui, por exemplo, que manda escrever o nome do pretendente numa folha de papel, mergulhando-a, depois, num prato com mel. Toda noite, você irá rezar para que seu pedido seja atendido. O prato deverá ser colocado debaixo da cama e só será tirado depois de alcançar a graça.
           
- Se eu fizer isso, é perigoso as formigas acabarem comigo antes que encontre um namorado.
           
- Gertrudes, gostaria muito de poder ajudá-la, mas a receita não é fácil. Uma relação afetiva se constrói com o tempo, mas o tempo não conta hoje em dia. É tudo muito apressado, superficial, amadurece rápido igualzinho banana em sacolão.
           
- Está bem, mas o que eu faço? Deixe-me uma ideia, mesmo mudando o tom de nossa conversa.
           
- É preciso que você se valorize, não se torne vulgar, ao ponto de qualquer rapaz passar a mão em você. Mesmo porque, no fundo, os homens não gostam de mulheres fáceis. Quando os encontros são fáceis, fica difícil uma relação séria.
           
- Quer dizer, então, que a liberdade só vem com o tempo...
           
- Exatamente. Mas não é só. A mídia nos passa estereótipos, modelos que não precisam e nem devem ser copiados. Seja você mesma, não tenha medo de ser diferente. Não brinque e nem permita que outros brinquem com seus sentimentos. Lembre-se: você só será amada verdadeiramente que for você mesma. No mais, é bola pro mato, que o jogo é de campeonato.
Etelvaldo Vieira de Melo