O POVO




O povo está nas ruas
com a bandeira brasileira
clamando por justiça
Imagem: saboresnoponto.blogspot.com
de novo.

O polvo político
ovo choco
da esperança do povo
chama os aliados
para a liça
de novo.

O estorvo
que enguiça
a viagem do novo
não há de vencer a lida
renovada do povo.


ATIVIDADE PARANORMAL

Imagem: projetomaosquecuram.blogspot.com

      Um religioso, de razoável notoriedade por causa de sua postura ideológica, falou em palestra que não tem o hábito de dar esmola. Em vez disso, faz agrado com balas e impondo a mão sobre o pedinte.
      Isso acontece especialmente com meninos de rua, fato que, caso o público fosse outro, seria de agrado da classe dos dentistas, em vista do aumento de clientes para tratamento de cáries.
      Conta o religioso que, por esses dias, encontrou-se em dificuldades, com seu estoque de balas tendo acabado e faltando um menino para ser atendido.
      - Sinto muito, mas não tenho balas para lhe dar – falou, constrangido, para uma criança parda, não se sabe se pela cor da pele ou pela sujeira, e de olhar brilhante.
      - Não – falou, quase ansioso, o menino. – Eu não quero bala, quero que o senhor ponha a mão na minha cabeça!
      De minha parte, eu não me incomodaria se esse religioso me desse algumas balas e impusesse sua mão direita sobre a minha cabeça.
      Mas o que gostaria mesmo era que eu colocasse minha mão sobre sua cabeça. Por quê? Tenho desenvolvido certas habilidades, vamos dizer, mediúnicas, e sou capaz de ler a mente de certos indivíduos, através da imposição de minha mão sobre suas cabeças.
      É sabido que esse religioso teve ligações íntimas e secretas com dirigentes políticos deste país. Durante alguns anos, frequentou os bastidores e os porões do poder. Como as informações políticas que caem no domínio público são sempre distorcidas, remendadas e camufladas, quem sabe eu posso desvendar segredos guardados a sete chaves e levá-los ao conhecimento do povo em geral?
      Acredito que não terei maiores dificuldades em alcançar meu intento. Difícil será convencer o religioso de que não estarei lhe fazendo uma sessão de exorcismo. O bom de tudo é que ele pode ter a mente aberta o suficiente para que eu leia seus segredos.
      Você me pergunta por que não faço esse exercício de impor a mão sobre a cabeça de um político. Meus estudos dizem que é de todo impossível: uma das primeiras providências de um político é a de codificar o acesso ao seu cérebro; por isso, até mesmo delações premiadas de empresários esbarram em dificuldades quando confrontadas com um político corrupto.
      Quando estudei essa habilidade de ler a mente, vi que ela é resultante de um hormônio produzido pelo meu organismo, chamado estrogona, hormônio que é encontrado em reduzidíssimo número de pessoas no mundo: sete, tão somente.
      Como muitos indivíduos têm seus cérebros bloqueados por códigos de segurança, meu índice de acesso às mentes gira em torno de 3,33%. Se eu atingisse um percentual de 100%, imagino que poderia ser útil em muitas situações. Poderia, por exemplo, ficar ao lado do juiz responsável pela investigação da Operação “Lava-Jato”. Com a imposição de minha mão sobre as cabeças dos prisioneiros, a delação premiada poderia ser descartada, e os dedos-duros teriam que usá-los para outros fins (por exemplo: enfiando-os na boca e rasgando de raiva). Com minha atuação, haveria a promessa de que os vazamentos de informações não mais seriam seletivos, mas amplos, gerais e irrestritos. Poderia ficar ao lado de padres em cerimônias de casamento, dispensando-os da ridícula pergunta se é de livre e espontânea vontade dos nubentes aquele ato de “juntar os panos”. Poderia, também, nos tribunais de justiça, eliminar a burocracia dos processos, ajudando os juízes a darem seus veredictos de forma rápida, concisa e precisa. Poderia, enfim, entre milhares de outras atribuições, fazer uma seleção entre pretendentes a cargos públicos, eliminando os corruptos e malfeitores.
      Dizem as más línguas que a China chegou a produzir, em versão sintética, esse hormônio estrogona. Ele não foi comercializado por causa de seu efeito explosivo e pelo seu ainda baixo nível de aproveitamento. Os chineses acreditam que, assim que a humanidade entrar na Era de Aquários, ele estará, enfim, pronto para ser lançado no mercado. Quem viver verá.
Etelvaldo Vieira de Melo

DULCINEIA DE TOBOSO

                       
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Dulcineia,
há quatrocentos anos,
conduzes o mundo
à mágica loucura
do teu Quixote.
Os moinhos de vento
são a política e seus enganos.
E vais, gentil dama,
levando o teatro
de Mestre Pedro,
o eterno cigano.
Policarpo Quaresma
e a saúva e a saúde ( males do Brasil)
tanto te representam,
em idealismo e realidade!
Estás presente,
com o criador Cervantes,
na Sapucaí,
no en (canto)
das bibliotecas,
nas rotas alegrias do pobre.
Sancho Pança, o fiel escudeiro,
te vê entre os porcos,
mas a Literatura
explora a formosura
dos olhos sem fronteiras
do herói De La Mancha.                             


FILA INDIANA: ORIGEM, IMPORTÂNCIA SÓCIO-CULTURAL

Imagem: ultracurioso.com.br
Existem filas e filas. Por exemplo: existe a Fila das Bailarinas de “Mil e Uma Noites”, aquela cheia de curvas e ondulações; existe a Fila dos Pigmeus, que é feita na vertical, com as pessoas vão se ajeitando sobre os ombros umas das outras; existe a Fila do Eletrocardiograma, com as pessoas se dispondo em zigue-zague.
A Fila Indiana é uma das grandes contribuições das culturas inca e maia para as outras civilizações. Caminhando pelas trilhas de regiões montanhosas, os índios se organizavam em filas, indo um atrás do outro. Tal fato incutia-lhes senso de ordem e disciplina.
Já os índios brasileiros, por caminharem em regiões descampadas, tinham uma mente anarquista e bagunçada. Seu legado cultural ficou mais restrito ao cultivo da mandioca e de outras leguminosas.
A ideia da fila indiana foi adotada com entusiasmo por outros povos, sendo usada, especialmente, nas agências bancárias, quando clientes aguardavam em fila para serem atendidos pelos caixas. (Arqueólogos ainda podem encontrar resquícios dessa prática através de marcas nos pisos das agências). A Igreja Católica também usou muito desse expediente em suas cerimônias religiosas, em especial nas suas procissões.
Hoje, por meio de novas tecnologias, muitas filas foram substituídas por senhas. Tem gente que considera o uso de senhas um avanço positivo; outros pensam que não: preferiam ficar em pé, em fila, fungando no cangote do filante (fileirante? filador?) em frente. Para quem gosta de uma leitura, mesmo dessas revistas que descrevem futilidades de celebridades, a senha tem o inconveniente de exigir uma atenção constante para com um monitor, que registra os números chamados. O leiturista – que é um leitor que não lê direito -, coitado, fica naquele vai e vem com olhos, da revista para o monitor e do monitor para a revista (como antigamente, se ia ao vento, perdia-se o assento; se ia ao ar, perdia o lugar; hoje, perdendo a numeração, perde-se a marcação). Ao fim, o leitor ou leiturista, quando atendido, sente uma leve ou aguda dor de cabeça, tudo dependendo do tempo de espera.
A fila tornou-se, ao longo dos anos, um patrimônio cultural do povo brasileiro, só faltando-lhe o reconhecimento oficial da UNESCO. Por isso, ela ainda persiste, seja em frente a um caixa eletrônico, seja em frente a um guichê de cinema. Ela se constitui um dos melhores pretextos para que pessoas desconhecidas se conectem ou interajam. Muitos diálogos interessantes, dramáticos ou humorísticos, são construídos em filas.
Talvez seja por tudo isso, por seu valor histórico, cultural e de socialização, que pessoas busquem ansiosas as filas. Tem gente que frequenta velórios só para se postar em fila para manifestar seu sentimento ou pêsame. Outros não podem ver alguém parado numa calçada: se aproximam e se organizam em fila. Caso algum curioso queira saber o porquê, a razão daquela fila, haverá de ter esta desconexa explicação: “Nem mesmo sei. Vi um tanto de gente parada e me ajuntei”.
Como pode ser depreendido e desprendido deste texto, onde as palavras se alinham em filas, a fila tem um valor terapêutico inestimável. Nela aprendemos lições de estoicismo, entendemos o sentido da expressão “ter a paciência de Jó”. Agora, o grande mérito da fila é de possibilitar o cultivo da esperteza, muito usada pelos “fura-filas”; enquanto essas raposas se adiantam frente ao galinheiro, outros esbravejam: “Olha a fila! Respeita a fila, seu safado!”.
Etelvaldo Vieira de Melo

           
            

NO AGUARDO



Imagem: luizfelipemuniz.blogspot.com

Espero sentada
a manhã
         o almoço
         o jantar
                                         
Espero a noite
que espera a manhã
o almoço
         o jantar
que espera a noite
até o mês de maio
que espera junho
agosto
até as férias chegarem
    sem condições
       de voar

 ETA, impeachment
         que, se não vem,
atrasa o trem!              

TO IMPEACHMENT, OR NOT TO IMPEACHMENT

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Estamos novamente vivendo momentos conturbados, que vêm me tirar da alegria e do bom humor com que procuro tocar o tempo que me resta.
Tento me controlar, tomando vários chás de maracujinha, mas não adianta: chega a hora em que tenho de “chutar o balde”, tantos são os desaforos e as mentiras que agridem meus olhos e meus “zovidos”.
Tem um apresentador de noticiário nacional, por exemplo, que – quando começa uma notícia e fica balançando a cabeça num tique-tique nervoso – eu já sei: lá vem mais uma delação. Quanto mais ele balança a cabeça mais “chumbo grosso” ele vai disparar.
            Tem uma emissora que se autodenomina cuidadora da cultura. Só se for da cultura golpista. Na segunda-feira, por exemplo, ela tem um programa de entrevista, onde os entrevistadores são escolhidos a dedo: todos rezam pela mesma cartilha.
            Coitada dessa emissora: além de perder os créditos, está sempre se dando mal. Em um programa, um dos destaques é o presidente da Assembleia de São Paulo que, dias depois, se vê envolvido no chamado “escândalo das merendas”. Num outro programa, entrevistam um político que tem um passado sombrio: foi um dos líderes da tropa de choque de um presidente defenestrado por corrupção. Eu gostei da vez em que o ouvi dizer, referindo-se aos colegas da Câmara: Aqui não existe ninguém melhor do que eu! Os outros ficaram calados, e eu tenho em consideração a máxima que diz: quem cala, consente.
            Esse entrevistado falou os maiores absurdos, com todos os entrevistadores concordando com as cabeças e sorrisos. Referindo-se ao PT, disse que tal partido nunca deveria de conquistado o poder, que seu papel era de ser tão somente oposição. Engraçado é que seu partido, do qual é uma das lideranças, foi até ontem integrante da base aliada do governo; um de seus senadores foi agora preso por suborno, quando da CPI da Petrobrás.
            Rasgou elogios a políticos que, a gente sabe através de leituras, estão envolvidos em atividades escabrosas. Só faltou mencionar que o Presidente da Câmara é um santo. Não deve ter feito isso em consideração ao fato de tal presidente ser evangélico e não cultuar santos.
            Tem mais. Acho um absurdo que partidos da base aliada do governo, diante da ameaça de impeachment, abandonem o barco do poder, tais como ratos. Até ontem, tiveram as benesses; agora, cantam de oposição.
            Nesta lista de desaforos, eu não posso esquecer o que disse um estudioso da política brasileira: a elite (paulista, no caso) é rancorosa. Ela nunca admitiu que pobres deixem a senzala e possam ir para a Casa Grande. Para ela, lugar de pobre é na senzala, o que pobre pode fazer é andar de ônibus, frequentar o ensino fundamental em escola pública. Na senzala, ele pode ter o agrado de uma ou outra conquista da técnica, mas não pode deixar de ser o que é: pobre, pária. Só falta mesmo um representante da federação das indústrias dizer com todas as letras: Será que pobre é tão ignorante que não sabe que vivemos numa sociedade de castas?
            Você tem todo direito de questionar minha postura. Mas peço-lhe para não fazer a inferência precipitada de que tomo uma posição tendenciosa. Se você me conhece de leituras passadas, sabe que critico até com mais intensidade o outro lado, porque foi justamente ele que fracassou miseravelmente como paladino da justiça e da moralidade, foi ele quem matou o sonho e a esperança de muitos de viver numa sociedade mais igualitária e justa; critico a falta de ética no trato com a coisa pública, critico os desmandos, as comprovadas corrupções, a incompetência administrativa, a subserviência a uma política do toma lá dá cá, da troca de favores, da compra de votos.
            Está tudo errado. Mais errado de tudo é esse SISTEMA POLÍTICO, que faz com que seus integrantes tenham que vender suas almas ao capeta para sobreviverem em seus mandatos.
            De dois em dois anos se repete a farra eleitoral, onde quase todo mundo ganha, menos o país com seus eleitores perdidos, sem saberem a quem apoiar.
            Ganham os empresários, que fazem seus investimentos em candidatos a troco de benefícios futuros; ganham a imprensa e os institutos de pesquisa de opinião, que conseguem manipular facilmente os votos, tal a fragilidade do sistema eleitoral, com o dinheiro sendo a principal moeda de troca.
            Estou fazendo estas anotações às vésperas da votação da Câmara sobre o encaminhamento ou não do processo de impeachment. Dou os parabéns para a classe política pela agilidade com que encara esse processo. Coitados de nossos pobres deputados! Abriram mão de um descanso de final de semana em favor do bem maior da pátria! Depois da votação, poderão voltar à rotina de “fingir que trabalham” – como bem lembrou um deles.
            Minha conclusão acerca de tudo isso: torço para estar enganado, mas não acredito. Como bem lembra uma passagem bíblica: não se coloca remendo novo em pano velho. Nosso sistema político está se desfazendo em podridão. Sem uma reforma séria, responsável e consciente, continuaremos a ser esse arremedo de democracia, com as regras do jogo sendo pisoteadas a troco de interesses menores.
Etelvaldo Vieira de Melo

                  

ADIVINHA







Quem enchia de alegria
o dia?
Quem escrevia versos
de harmonia
e crônicas de maldizer?
Quem deixou na Academia
de Andrelândia o nome
que o tempo não consome?
Quem é ele
o homem literário
continuando em seu itinerário
onde esteja
a derramar estrelas?
Ao vê-las em seus livros
cintilantes
louvamos o cantor do amor
CLEBER
de hoje e dantes.

DE VOLTA PARA O PASSADO



Imagem: redatornacional.blogspot.com



Em memória de Cleber, pessoa admirável, grande amigo, que nos       deixou em abril de 2015  e com um tanto de conversa pra ser resolvida.
O ano de 1980 estava começando, verdinho ainda, e o país vivia os desdobramentos daquela distensão, lenta, gradual e gradativa, tramada pelo general Geisel. O poder ainda continuava nas mãos dos militares, representados pela figura do general Figueiredo. Tem a História o compromisso de explicar direitinho o que aquele general estava fazendo ali, já que ele não escondia seu desconforto e má vontade para com as pessoas, chegando a ponto de afirmar que “preferia o cheiro de cavalo ao cheiro de gente”.
Se você for pegar esta frase ao pé da letra, pode ser que concorde com o general, pode ser que o cheiro de cavalo lhe seja mais agradável do que o de gente. O embaraço acontece porque ela, a frase, tem um sentido figurado, e aquele general cuidava de dirigir os destinos da nação.
Pois, então, o ano de 1980 despontava no horizonte, ano que seria marcado pelas mortes de famosos com Vinícius de Moraes, Hitchcock, Sartre, John Lennon. Foi também em 1980 que a primeira emissora de TV do país, a TV Tupi, fechou suas portas, faliu, talvez porque o “Ouro para o bem do Brasil”, arrecadado por Chateaubriand, o Chatô, logo após o Golpe de 64, também exauriu, secou.
Se você conhece tal história, sabe com o povo é bobo até onde não pode mais. Meu avô, Tertuliano Vasconcelos de Mattos, foi um dos que doou um par de alianças daquelas bem bojudas para a empreitada cívica. Se existir inferno – e eu coloco a frase no condicional em respeito aos não crentes – espero que esses aproveitadores da boa fé das pessoas lá estejam ardendo em chamas.
Nem bem começo a dissertar, vejo que esbarro num defeito crônico: o de escorregar para outras considerações. Meu propósito, aqui e agora, é falar de Eleutério de Mattos, estando ele ainda na flor de sua juventude. Vamos, então.
Eleutério era um dos muitos que se incomodavam com a falta de liberdade, mas – naquele início de 1980 – tinha planos de visitar sua irmã Abrilina, lá na cidade de Resende.
Foi isso que ele acertou com sua mãe, Leontina, e seu sobrinho, o Loló. A viagem seria dividida em três partes: primeiro, iriam até Lavras, onde pernoitariam; por volta das seis horas do dia seguinte embarcariam num trem até Barra Mansa; de Barra Mansa até Resende, ônibus.
Assim combinaram, assim fizeram. Loló, portador de uma memória de elefante, até hoje sabe o nome da pensão onde se hospedaram: Garrido, e que ficava, vamos dizer, na boca da estação ferroviária.
Às seis horas, já estavam acomodados num dos vagões de passageiros. A Maria-fumaça deu seu rugido, tossiu um pouco e, assim que ouviu o sino da estação tocar, começou a andar sobre os trilhos, a princípio lentamente, mas foi aumentando aos poucos os passos, até se estabilizar numa velocidade razoável para as condições de sua idade avançada.
As cidades começaram a aparecer e a desaparecer do cenário: Itumirim, Araltina, São Vicente, Mindurim... Em todas elas, o trem parava para receber novos passageiros e se abastecer de água e carvão. Em todas elas, um tanto de gente ficava junto aos vagões vendendo frutas.
Chegando em Andrelândia, era costume o trem entrar por um desvio e aguardar a passagem de um outro. Naquele dia, esse outro trem havia descarrilado, e a perspectiva era de uma demora ainda maior, já que mecânicos e reforços viriam de Ribeirão Vermelho para fazer o reparo.
Então, os passageiros desceram dos vagões e se encaminharam para a praça daquela pequena cidade e que ostentava, orgulhosa, num de seus morros, a imagem de um Cristo Redentor.
Eleutério, enquanto ajudava sua mãe a descer do vagão, olhou para o prédio da estação e, ao ver escrita numa tabuleta a palavra “Andrelândia”, sentiu que alguma coisa mexia na sua cabeça. Ele se sentiu estranho, como se tivesse dado um salto no tempo. Como que anestesiado, deu as mãos à sua mãe e ao sobrinho, enquanto se dirigiam a um bar da praça. Não reparou na placa que dizia “Bar do Beralda”.
Depois de se sentarem em cadeiras em torno de uma mesinha, Eleutério perguntou o que gostariam de comer e beber.
            - Eu me dou por satisfeita com um pão de queijo e um copo de café com leite – falou Leontina.
            - Eu quero dois pastéis e um refrigerante – disse Loló, com seus dois olhos grandes brilhando.
Um senhor moreno, “alto, forte, sacudido e troncudo” veio atendê-los com um sorriso largo no rosto.
            - Desculpe a liberdade – falou Eleutério, cheio de cuidados e depois de ter feito os pedidos. – Por acaso o senhor não conhece um morador daqui chamado Mário Cleber?
            - Cleber, Cleber... – ficou cismando o homem, enquanto coçava o queixo.
            - Cleber – tentou ajudar Eleutério: - um baixinho de óculos fortes, que estudou num seminário e hoje é psicólogo.
            - Ah, claro! – respondeu o homem. – Sei quem é, pois se até fomos colegas e amigos de escola! Ele agora está trabalhando em São José do Rio Preto.
            - É isto mesmo! – falou Eleutério, mal contendo sua alegria. – Mas qual é o seu nome, já que conhece tanto o Cleber?
            - Meu nome é Jorge Beralda e sou o dono deste bar.
Eleutério quase caiu de costas. Logo o Beralda que cometia bullying com o Clebinho, quando esta palavra nem existia ainda!
– Mas não é bem isto que Cleber me contou. Ele disse que você aprontava todas na escola e roubava sua merenda de pão com salame.
Jorge riu tanto que quase se engasgou. Depois, contemporizou:
            - Naqueles tempos a gente não tinha muito juízo mesmo. Mas eu roubei a merenda do Clebinho só por um tempo.
            - É verdade. Você só parou por causa do Dirceu, filho do Chico Padeiro, ter perdido parte do braço na máquina da padaria. Aí o Cleber, toda vez em que você ameaçava tomar-lhe o pão, fazia questão de lembrar que ele era lá da padaria do Chico e ainda podia conter pedacinhos do braço do Dirceu...
            - Eca... – falou Jorge Beralda, ameaçando um vômito. – Mas, voltando à nossa prosa, de onde conhece o Cleber?
Eleutério ficou engasgado com a pergunta. Como responder que conhecia Cleber de trinta e dois anos depois, em 2012? Tentando desconversar, perguntou:
            - Tem notícia de Ceci e de Chico Sete-Boias?
            - Puxa, também sabe deles? Ceci foi tentar a sorte como traveca lá em São Paulo; já o Chico, coitado, bateu as botas, partiu desta. Parece que por causa de uma congestão brava, ele que devia ter a barriga furada.
Enquanto Jorge alongava as explicações, Eleutério tentava achar um meio de fazer chegar ao amigo o aviso de um risco que iria correr trinta e cinco anos depois, em 2015, quando um mosquito da dengue iria picá-lo, levando-o à morte.
Eleutério queria mudar o rumo da História, mas não encontrava meios, não sabia como. Jorge Beralda olhava para ele desconfiado.
Enquanto tentava encontrar um jeito de falar a verdade sem passar por doido, Eleutério viu que a tarde estava caindo. Foi quando o guarda da estação veio avisar que o trem não iria demorar a partir. Ele estava de uniforme preto e, estranhamente, com uns óculos escuros. Trazia na mão uma lanterna. Quando o foco de luz foi projetado nos olhos de Eleutério, tudo aconteceu como se uma borracha estivesse sendo passada nas suas lembranças do futuro. Estranhamente, o último pensamento que teve, então, foi aquela máxima árabe: Maktub!
Depois disso, de mãos dadas, Leontina, Eleutério e Loló voltaram para o vagão. O trem resfolegou, engasgando-se com a fumaça, deu um longo apito e partiu. No alto do morro e de costas, o Cristo Redentor foi se perdendo lentamente no horizonte.
Nota: Jorge Beralda, Chico Sete-Boias e Ceci são personagens do livro Ceci e Chico Sete-Boias & Outros Casos, de Mário Cleber da Silva.
Etelvaldo Vieira de Melo

FLORES DO CERRADO

Imagem: www.izzobr.com


FRUTOS DA IMAGINAÇÃO

Durante vários meses, estivemos estudando as flores do cerrado. Agora o livro desabrochou. Aprendemos muito sobre a fauna e a flora, nos Estados de Minas, Goiás, Piauí, São Paulo, Mato Grosso, Maranhão, Rio de Janeiro. Nomes exóticos, terríveis incêndios, invasão do gado, do algodão e da soja envolveram esse mundo de beleza e mistério. Como na mitologia, as caliandras surgiam das cinzas e se exibiam em cores e alegria.
        Queremos continuar a pesquisa de campo. Vamos juntos, leitores, lutar pela vida na savana brasileira. Que possamos ajudar na recuperação da relíquia que os tratores e a falsa tecnologia almejam destroçar.


                                 
O QUE VEM AÍ?


Abriu-se o mês de abril
da mentira lavada
pelas chuvas de março;
das flores renascidas
para os anjos de maio:
do povo lutando
pelo impeachment da governa;
do país gritando
pela renovação;
dos pobres se equilibrando
sem moradia;
da gente assistindo à televisão
que anuncia aos políticos
o breve fim

da corrupção.                                          
                                 

A FALTA QUE ELA ME FAZ


Imagem: radioaratiba.com.br
Se arrependimento matasse, eu já estaria morto e soterrado há muito tempo. Claro que existir significa fazer escolhas. Quando escolhemos algo, deixamos de lado muitas outras opções, donde concluo que nossas possibilidades de erro são bem maiores do que as de acerto. Pelo menos no plano das estatísticas matemáticas. No entanto, como a vida não se resolve com fórmulas matemáticas, não vou ficar aqui lamentando meus erros, porque quem chora o leite derramado ou é bebê com fome ou é Chico Buarque.
            Mas, que carrego muito arrependimento pela vida afora, isso eu carrego. Um deles foi o de não ter aprendido uma língua estrangeira, eu que sonhava em me tornar cidadão do mundo. Dominando mal e mal o português, não me atrevo a colocar nem a ponta do nariz para fora de meu país, embora a tecnologia moderna tenha feito uma abertura dos portos e aeroportos, das estações e das rodoviárias, das emissoras e das transmissoras, tudo para acolher os vocabulários amigos, conhecidos, parentes e até inimigos. Assistimos hoje a uma enxurrada de estrangeirismos.
            É por isso que a falta do domínio de uma língua estrangeira me incomoda tanto, como se fosse um calo no pé ou uma unha encravada.
            Sinto-me assim, entrevado pela ignorância, eu que tive oportunidades auríferas de aprender vários idiomas, enquanto estudante. Cheguei ao ponto de estudar uma língua morta! Para os desavisados, preciso esclarecer que tal estudo não foi feito num Instituto de Medicina Legal e nem num Centro Espírita. Tudo ocorreu num ambiente de sala normal, a língua era o latim e o professor dava aula dormindo. Coitado, ele tinha uma vida muito atribulada e era um pouquinho gordo.
            Ele se chamava Aguiar, padre Aguiar. Todo dia, menos aos sábados e domingos, vinha a guiar seu corpo rechonchudo em direção à sua cadeira de professor, que ficava sobre um estrado. Assim que se assentava, ajeitava os óculos de lentes grossas, pegava uma caneta e começava a arguição. E lá íamos nós: “rosa, rosa, rosae, rosam, rosa”. Assim que um terminava, ele esbravejava, mais pra espantar o sono: “Seguinte!”, e mais um se apresentava para recitar a segunda declinação. Enquanto íamos debulhando as declinações, o padre ficava tamborilando a caneta sobre a mesa. De repente, a caneta caía: era a hora em que o sono vencera a vigília. O ressonar durava alguns minutos, até ele acordar, gritando: “Seguinte!”.
            E o kiko? E eu com isso? Acabei sem aprender nada. Hoje, o que lembro não passa de uma frase, uma espécie de pegadinha: “Mater tua mala burra est”, onde não se xinga a mãe de ninguém, simplesmente diz que “tua mãe come maçã madura”.
            Estudei grego, e só me lembro do professor, um alemão, dizendo: “A grega é muito bonita!”. Devia ser mesmo, os tempos eram outros e a Grécia não estava nessa situação falimentar em que se encontra hoje. Se a grega era bonita, o grego – enquanto língua – era difícil pra caramba, uma encrenca que não entrava de jeito nenhum na minha cabeça. Como na época eu tinha alergia para qualquer tipo de esforço mental, acabei aprendendo nada vezes nada, nada além de uma frase que transcrevo como se pronuncia, já que o world se recusa a me repassar o alfabeto (alfa e beta) grego: “ré paideia troufé psiqué estim” (a educação é o alimento da alma).
            Bonito, não é? Coisa feia é quando me lembro do estudo do inglês, do qual guardo o indefectível “the book is on the table”. Já o francês, por um lado foi pior, por outro foi melhor. O melhor foi ter me apaixonado pela professora, Consuelo. Amor de adolescente, amor platônico. Consuelo sabia disso, pois como explicar o fato dela ficar rindo para mim e de ter me empurrado para a série seguinte, sem que eu soubesse contar de um a dez na língua de Voltaire?
            Aqui se faz, aqui se paga – não é assim que fala o ditado? Talvez como castigo para tanta negligência, estou agora sendo cobrado. O Blogger, dono do meu blog, está exibindo um aviso de que a União Europeia exige que eu faça notificação dos “cookies” utilizados. Minha primeira reação foi pensar: “Ai, ai, ai, ai, ai!”. Depois, caiu sobre minha cabeça uma tonelada de pensamentos negativos: vou ser preso, vou ser processado, o blog vai sair do ar, estou perdido num mato sem cachorro. Num terceiro estágio, corri ao dicionário, em busca da tradução do termo. Encontrei a palavra “bolacha”. Meu pavor aumentou ainda mais: bolacha é o formato de uma mina, que está a ponto de explodir. Fiquei paralisado, como se estivesse mesmo pisando num campo minado. Um passo á frente e mal haveria de ouvir o início da explosão: BOOOM!
            Aos poucos, os batimentos cardíacos voltaram ao normal. Sabia, agora, estar lidando com um termo usado na informática. Pesquisei seu significado e, quanto mais lia sobre o tema, menos ficava entendendo. Enraivecido e chateado com minha ignorância, fui até a padaria do bairro e comprei meio quilo de bolachas. Elas estão postadas em foto aí no alto da página. Estou fazendo de tudo ao meu alcance para atender às exigências dessa tal de União Europeia. Se julgarem que tudo isso é pouco, posso colocar as referidas bolachas em embalagem, enviando-as por Sedex. No verso do invólucro, irei subscritar: À União Europeia – Danger! (como vejo muito em filmes) – Cookies!
Etelvaldo Vieira de Melo