O ANO NOVO SEMPRE EM BRANCO

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Neste Ano Novo todos se vestem de branco.
Branco é a cor da alegria.
É isso que desejamos
aos leitores neste dia.

Que a fome seja mais baixa,
cessem as guerras, o racismo, a miséria.
Que os políticos sejam honestos
e o país uma coisa séria.

O Ano Novo se abre
menor que os outros,
mas com muita ilusão.
Louvemos a esperança do povo
e forças à nação. 

Que os leitores do blog tenham sempre
ao seu lado o Senhor e a doce paz.
Possa o Brasil renovar-se
para sermos uma pátria
que notícias melhores traz.

ADEUS ANO NOVO, FELIZ ANO VELHO

Aparentemente seria coisa simples fazer aquela entrevista com Millôr Fernandes – um mamão com açúcar, segundo o dito popular. O autor estava disponível através das páginas de “Millôr Definitivo – a Bíblia do Caos”, livro editado pela L&PM.
        
Eu queria recorrer ao Guru do Meyer, anotando aqueles seus principais ditos que melhor se ajustam à expectativa de uma passagem de ano. Meu trabalho seria fazer uma montagem com perguntas pertinentes.
        
Minha admiração por Millôr vem de longa data, tendo já postado uma crônica em sua homenagem (Fábula Nebulosa: O Bêbado e o Balconista, 23/03/2013, alusão ao seu livro Fábulas Fabulosas e à música O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc).
        
Bom, foi fácil e foi difícil o trabalho. O fácil se tornou difícil por causa da riqueza do material disponível, e acabei me perdendo entre tantas citações impagáveis (acho que Millôr iria detestar ler isto), muitas vezes caindo fora daquele propósito inicialmente traçado. Depois, as perguntas deveriam estar à altura de suas falas, uma vez que Millôr dispõe de humor por vezes ácido, e eu corria o risco de cair no ridículo.
        
Independente de tudo, de sua inteligência, versatilidade, língua ferina, são poucos aqueles que se aproximam de sua integridade, honestidade e honradez. Quando vejo o tipo de humor que circula por aí, nos programas de TV, nos jornais e revistas, a saudade de Millôr fica mais sentida. Ele é um dos poucos humoristas que fala coisas sérias de maneira divertida; o que vemos na atualidade é apelação pura, baixaria a troco de nada.
        
Vamos em frente, pois a recomendação do mestre é de não usar doze palavras se posso me servir de onze; até agora, contabilizei treze. Então, à entrevista.

P = Primeiro, à moda dos testemunhos em julgamentos, promete dizer a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade?
R = Quem pede pra contar toda a verdade já está me exigindo uma mentira.

P = Para os desavisados, quem é você?
R = Millôr Fernandes, jornalista amador, que só recebe por fora e não agride a camada de ozônio.

P =Com tanto escândalo sob investigação, parece é que não vai faltar trabalho pros advogados este ano.
R = A advocacia é a maneira legal de burlar a Justiça. A notoriedade do advogado de defesa aumenta na medida em que faz voltar à circulação, com atestado de homens de bem, os piores assassinos, ladrões e contraventores.

P = E a corrupção? Vai dar jeito este ano?
R = Muita gente que fala o tempo todo contra corrupção está apenas cuspindo no prato em que não conseguiu comer.

P = Epa! Juro que a carapuça não me serve...
R = Também penso: Já que não podemos repartir melhor a riqueza, pelo menos devemos democratizar a corrupção.

P = Com tanta operação da Polícia Federal contra esquemas de corrupção, qual o seu conselho para um possível corruptível?
R = Se você não tem cobertura prum bom golpe, o melhor é ser honesto.

P = Como classificar a corrupção em nosso país?
R = A corrupção no Brasil não é mais um problema social ou ético. É matemático. O único país do mundo com 110% de corrupção.

P = A presidenta defende a ideia de se realizar um plebiscito para uma reforma política. Tem alguma sugestão de plebiscito?
R = Você é contra ou a favor da legalização da corrupção?

P = Acho que a corrupção vem muito (c/débito e haver) dessa relação incestuosa entre políticos e empresas, notadamente as empreiteiras. Estou certo?
R = Com esses contratos entre o governo e as empreiteiras o Brasil inovou mais uma vez. Não temos assaltantes de estradas; temos estradas de assaltantes.

P = Fechando este quadro, boas notícias para o Ano Novo?
R = Boas notícias, afinal. Nos últimos seis meses não houve nenhum aumento de corrupção na área estatal. Continuamos nos mesmos 100%.

P = Vamos falar um pouco da política e dos políticos.
R = Esses políticos todos andam tão ocupados com salvar o país que nem têm tempo de ser honesto.

P = Mas a nossa classe política é formada por profissionais.
R = Político profissional jamais tem medo do escuro. Tem medo é da claridade.

P = Como anda o Congresso Nacional?
R = No Congresso Nacional uma mão suja a outra.

P = O quadro é tão dramático assim?
R = A corrupção anda tão generalizada que já tem político ofendido ao ser chamado de incorruptível.

P = Quer aproveitar o espaço e dar uma indireta para alguém que está no Poder?
R = O máximo de habilidade político-econômica é a desses caras que se locupletam no capitalismo entrando pela esquerda.

P = Com tanto escândalo no mundo político, com tanta corrupção, qual a alternativa que nos resta?
R = Agora, que todas as ideologias falharam, só nos resta a cirurgia plástica.

P = Com o novo mandato, teremos uma reforma ministerial. Qual a sua avaliação?
R = Não chega a ser uma reforma ministerial; apenas mudança de cúmplices.

P = Como está o ar de Brasília?
R = A corrupção em Brasília, já diagnosticada como cleptomania, atingiu agora seu ponto mais alto; desapareceu até a umidade relativa do ar.

P = Já que você insiste nesta tecla da corrupção, vamos associá-la de vez ao seu princípio e ao seu fim, o dinheiro. Tem hora que você diz uma coisa, tem hora que diz outra. Está bem, já que você duvida daqueles que mantêm o mesmo ponto de vista por mais de uma semana. Mas você disse que o dinheiro é tudo na vida. Quer dizer, então, que as pessoas devem correr atrás do dito cujo?
R = O dinheiro compra o cão, o canil e o abanar o rabo. O dinheiro fala e também manda calar a boca. O dinheiro é a mais perversa das invenções humanas. O dinheiro é tudo. Ele é a fonte de todo o bem. Faz dentes mais claros, olho mais azul, amplia a dignidade individual, aumenta a popularidade, produz amor e paz espiritual e, quando tudo falha, paga o psicanalista.

P = Falando em dinheiro, não tem como deixar de falar dos banqueiros.
R = Os banqueiros não perdem por esperar. Ganham. Já o governo faz muito bem em proteger os banqueiros. Quando um banqueiro ganha mais 100 milhões, automaticamente, pelas estatísticas, todo o nordestino aumenta o seu per capita.

P = Agora sobre o Brasil, uma coisa boa é reconhecer que Deus é brasileiro, não é mesmo?
R = Está bem. Deus é brasileiro. Mas para defender o Brasil de tanta corrupção só colocando Deus no gol.

P = Mas o Brasil é um país grandioso, imenso.
R = Eu sei. O Brasil tem oito milhões de quilômetros quadrados. Mas tirem isso, e o que sobra?

P = Está claro que o país necessita de reformas, mas isso vai doer de alguma forma. Existe uma alegoria que possa amenizar isso?
R = Para pregar um prego sem machucar o dedo basta segurar o martelo com as duas mãos.

P = Um diagnóstico definitivo sobre o país.
R = O Brasil está cada vez mais cheio de pobremas.

P = Às vezes eu fico desanimado com tanta canalhice em nosso país. Canalha tem conserto?
R = Canalhas melhoram com o passar do tempo (ficam mais canalhas).

P = Millôr, eu pago pra ver nosso país tomar jeito.
R = Ver para crer é um conceito totalmente hermético para os cegos.

P = Muita coisa precisa ser mudada no país.
R = É, há muita coisa a ser mudada, mas não se pode mudar tudo. Daqui a milhares de anos a coisa mais confortável pra gente se sentar ainda vai ser a bunda.

P = Quer dizer que você é um otimista?
R = Parece que o negócio do Brasil agora é desconfiar de Deus e tirar o pé da tábua.

P = Mas, depois de tudo, você vê uma saída para o país, uma luz no fim do túnel?
R = No meio da falta de hierarquia, corrupção e anarquia, descobriu-se dramaticamente que não há luz no fim do túnel. Na verdade, nem criaram o túnel.

P = Para que não fique com a pecha de mal-humorado, vamos falar de amenidades, encaixando uma coisa ou outra nos prognósticos para o ano que se inicia. Vamos lá? Primeira questão: o que tem a dizer sobre a juventude de hoje?
R = Não é em tudo que estou de acordo com a juventude. Agora, essa permissividade, essa revolução sexual, não sei não, mas é uma coisa que me interessa muito.

P = Coisa engraçada é ver como moças cheias de graça se engraçam por pessoas não tão engraçadas, para não dizer feias. Isso vai continuar?
R = Burro carregado de ouro é cavalo de raça.

P = Agora, uma pergunta de meu interesse: a gente aprende algo com a vida?
R = Uma coisa a vida ensina – a vida nada ensina.

P = Algum segredo para o rejuvenescimento, além de plástica e botox?
R = Só existe uma maneira segura para remoçar: é andar sempre com pessoas vinte anos mais velhas do que você.

P = Puxando a brasa pra minha sardinha, ou puxando a sardinha pra minha brasa (pra falar a verdade, até hoje não sei como dizer): o que pensa dos mineiros?
R = Um mineiro nunca é o que parece, sobretudo quando parece o que é.

P = Melhor confissão de ateísmo.
R = Se Deus me der força e saúde, hei de provar que ele não existe.

P = E a fé?
R = Com fé você vence. Sem fé, você passa para trás os que venceram.

P = Qual o argumento para provar que a mulher é necessária na vida do homem?
R = Todo homem precisa de uma mulher porque tem sempre uma coisa ou outra da qual realmente não se pode culpar o governo.

P = No fundo e a bem da verdade, o que vem a ser amor à verdade?
R = Chama-se de amor à verdade a nossa permanente tendência a descobrir defeitos nos outros.

P = As pessoas cada vez mais se apegam a seus animais de estimação. Você admira algum animal?
R = O camelo: é um animal que, depois de ficar dias sem comer nem beber, consegue passar pelo fundo de uma agulha, e entrar facilmente no reino do céu (embora eu gostaria de entender porque o camelo iria fazer isso – passar pelo buraco de uma agulha).

P = A felicidade nos torna felizes?
R = A felicidade faz a pessoa generosa. A generosidade acaba fazendo a pessoa infeliz.

P = O Facebook faz sucesso. Tem algo a dizer?
R = Atenção, meninada, fazer relações públicas não é tornar públicas as relações.

P = Por que você defende o divórcio?
R = O divórcio é muito importante porque permite a pessoa se casar uma primeira vez por interesse e, com o dinheiro desse primeiro casamento, casar de novo por amor. Já quem se casa por amor a primeira vez e perdeu tudo que tinha, adquiriu, nesse primeiro casamento, suficiente experiência pra ter mais juízo no segundo.

P = E o casamento?
R = O pior casamento é o que dá certo.

P = Teme a morte?
R = Bom é continuar a ser sem o não ser à espera.

P = Algo mais?
R = Não vai ser assim, fácil, fácil, me botarem num cemitério. Vão ter que passar por cima do meu cadáver.

P = Algo que lamenta.
R = Tanta plástica no rosto, no seio, na bunda e ninguém aí pra inventar uma plástica no caráter.

P = Você não acha que as pessoas deveriam se dedicar mais à leitura?
R = É inegável que a leitura melhora fundamentalmente o ser humano. Desde que, claro, ele seja alfabetizado. Já a televisão piora até o analfabeto.

P = O que fazer quando, ao longo do ano, baixar o desânimo, o tédio, a descrença?
R = Não desespere – no momento em que a vida lhe parecer realmente insuportável, desligue a televisão e converse um pouco.

P = Como aparentar ter boa reputação?
R = Para você ter reputação de extremamente honesto, basta, quando alguém na rua gritar “Pega ladrão!”, fingir que nem é com você.

P = Ainda temos racismo e preconceito?
R = Nas estranjas, dizem!, todo homem é inocente até prova em contrário. Mas no Brasil pobre e preto é culpado até prova em contrário, e em muitos casos vai em cana como prova em contrário.

P = O que é viver?
R = Depois de não existir nunca e antes de desaparecer para sempre, a gente vive um pouco.

P = Um sinal dos tempos modernos.
R = Vivendo hoje, a gente não pode deixar de ter saudade daqueles tempos em que a humanidade era mais pura e inocente, como em Sodoma e Gomorra.

P = Carnívoro ou vegetariano?
R = Ao fim e ao cabo o homem que come carne é tão vegetariano quanto o homem que come vegetais. A carne é apenas a transubstanciação do capim que o animal come.

P = Uma máxima que, no mínimo, cairia como luva para a laboriosa classe política.
R = Nunca deixe de não fazer amanhã o que pode deixar de fazer hoje.

P = Uma imagem forte para o Ano Novo.
R = O pobre marido saiu da maternidade triste a abatido. Nascera-lhe uma dúvida.

P = Uma revisão histórica.
R = O maior erro de Noé foi não ter matado as duas baratas que entraram na Arca.

P = Uma prescrição médica.
R = Quando você está com a garganta muito inflamada, o melhor mesmo ainda é um bom gargarejo com água, sal e limão. Pode não melhorar a inflamação, mas serve para verificar se o pescoço não tem nenhum furo.

P = Uma prescrição psicológica.
R = Nos momentos de grande perigo é fundamental manter a presença de espírito, já que não é possível conseguir a ausência de corpo.

P = Chegando aos finalmente, uma boa receita para o Ano Novo.
R = Sempre que te derem um pontapé, oferece a outra nádega.

P = Na passagem de ano, qual o conselho: beber com moderação ou tomar todas?
R = Beber é ruim. Mas é muito bom. Deve-se beber moderadamente, isto é, um pouco todos os dias. Isso não sendo possível, beber muito, sempre que der. Mas o abuso, como a moderação, tem que ser aprendido. O amador que abusa tende a ficar desabusado.

P = Uma dica para o caso de uma pessoa se sentir mal.
R = Quando, ao apertar a barriga na altura do fígado, você sentir dor, deixe imediatamente de apertar.

P = E o Ano Novo?
R = Ano Novo, pois é. Coisa bem velha... Mas 2015 está aí mesmo... e a presidenta Dilma vai atender a todas nossas queixas. Queixem-se. Boas entradas.

Bonificação (para você tirar de vez “o escorpião do bolso” e comprar esse livro “Millôr Definitivo – a Bíblia do Caos”, que custa baratinho – eu mesmo dei conta de comprar um):

·         Alfabetização = No meu tempo vovô via a uva. Hoje Ivo come a Eva.

·         Chato = é o cara que conta tudo tintim por tintim e depois entra em detalhes.

·         Honestidade = Basta olhar em volta pra ver que a honestidade não é coisa natural. Toda pessoa honesta tem um ar extremamente ressentido.

Etelvaldo Vieira de Melo

CIÊNCIA





O AMOR FAZ COISAS QUE ATÉ DEUS DUVIDA

         Quem disse essa quase blasfêmia do título foi o compositor Ivan Lins. Procurei na letra da música fundamentos para tal declaração e confesso que me senti um pouco decepcionado. Julguei que encontraria algo bombástico, algo que abalasse os alicerces da divindade, mas as declarações não passaram do trivial, aquilo que ouvimos a toda hora: o amor curando desenganados, fechando feridas, juntando os pedaços de um coração que se quebra. Apesar da frustração, isso não tira os méritos da música “Iluminados”, um dos grandes sucessos daquele compositor.
        
Como acredito que o amor é capaz de fazer coisas extraordinárias, andei especulando as pessoas de meu relacionamento em busca de algo inusitado, algo que eu pudesse jogar na cara dos incrédulos, dizendo: Vejam como o amor é capaz de operar milagres na vida de uma pessoa. Encontrei o que vem descrito, a seguir.
           
O entorno da cidade de Belo Horizonte é contornado por uma rodovia que recebe a denominação de Anel Rodoviário. Poderia se chamar também Anel Funerário, o que não faria tanta diferença, já que é, regularmente, palco de acidentes fatais. Tanto é verdade que emissoras de TV já dispõem de câmeras instaladas sobre um viaduto que dá acesso a um bairro, ponto crítico onde caminhões e carretas costumam passar pela infelicidade de perderem os freios. Perdem os freios e atropelam tudo o que encontram pela frente. Tornam-se, então, matérias de reportagens sensacionalistas e mote para candidatos em campanha eleitoral. Além da duplicação do Anel, também fazem parte da lenga-lenga eleitoral a rodovia 381, chamada de “Rodovia da Morte” e a construção de um rodoanel.
           
Como não sou candidato a nada, só querendo mesmo expressar a dor de tantas famílias enlutadas e dizer como me sinto indignado ao ver verbas públicas, especialmente um tal de IPVA, serem desviadas para fins escusos, ao invés de atender às necessidades da população, acho que já podemos passar ao outro ponto da questão.
           
Próximo a esse viaduto, encontra-se um aglomerado chamado de “Vila Paraíso”, onde centenas de sem-teto e afins construíram suas residências. Foi lá na Vila Paraíso que Gracinésio julgou encontrar o amor de sua vida, ela que atendia pelo de nome de Hildelícia. Foi uma paixão avassaladora que fazia o coração disparar no peito, as mãos tremerem e o suor escorrer pelo rosto, misturando-se com as lágrimas de emoção.
           
Gracinésio logo viu o Paraíso se transformar em purgatório, quando o entusiasmo inicial de Hildelícia começou a esfriar. Do purgatório para o inferno foi um pulo, quando, passando a mão pela cabeça, sentiu Gracinésio uma protuberância, como se fosse um chifre nascendo.
           
- Engraçado – pensou ele, apalpando o couro cabeludo (na época, pois, agora, sua cabeça parece ter vegetação de deserto) – eu nunca havia notado essas duas saliências em minha cabeça antes!
           
Quando foi fazer as contas, tirando a prova dos noves, isto é, quando se deu conta, depois de todo mundo estar cansado de saber, Gracinésio sentiu que o mundo ruía aos seus pés, que nada mais fazia sentido, que ele tinha que morrer.
           
Saiu em desabalada carreira em direção ao asfalto e ali se deitou, com os braços abertos.
           
- Quero morrer – gritou ele, entre soluços convulsivos.
           
Os amigos, estando pelas proximidades, saíram correndo e o arrastaram para o acostamento, a tempo de salvá-lo de uma jamanta que passava, tirando-lhe casquinha.
           
            Cambaleante, passou frente à casa de Hildelícia e gritou:
           
- Hildelícia, paixão de minha vida, vou te amar até morrer!
           
Mas que nada! Dias depois, estava de namoro com Clotildes, vizinha de frente da antiga amada – segundo ele, para provocar ciúmes. Na conclusão, teve casamento, com direito a doces e salgadinhos, tradição que os ricos trataram de abolir, mas que os pobres cuidam de manter.
           
De minha parte, só teria que fazer um reparo nesta tresloucada história de amor. Com o tempo, Gracinésio cresceu muito e engordou, engordou muito e cresceu. Se ele deitasse no asfalto da BR e viesse outra jamanta, eu não saberia quem iria se dar mal. Tenho a leve desconfiança de que a carreta iria capotar, com sérias consequências para seu motorista.
Etelvaldo Vieira de Melo

SINFONIA



Imagem: www.gazetadopovo.com.br



O artista Amadeus
Mozart
escreveu sobre a pauta
um bilhetinho:
“Estou com dor de dente”.
A dor pousou na música
avezinha
se deixando ficar
flutuando nas flautas
atordoando os violinos
e  afinando o molar.


GRANDES VIDAS PEQUENAS

Certos temas são recorrentes em meus escritos. Isso é normal por ser eu quem sou. Soaria estranho se este espaço fosse ocupado por múltiplas pessoas, todas falando invariavelmente os mesmos assuntos.
        
Recorrer ao exemplo do sapateiro, como aquele que tem habilidade para entender de calçados, era algo comum nas preleções de Sócrates. A valorização das pequenas coisas, recorrendo a Gandhi, quando exortava o pretendente a discípulo que era preciso aprender a fazer com grandeza os atos pequenos de varrer um pátio, descascar batatas, limpar vasos sanitários, é um exemplo que não me canso de lembrar.
        
Já foi o tempo em que eu poderia querer ostentar alguma coisa, mas eu nunca fui disso. Julgar que tudo que é importante cabe dentro do simples, eis uma de minhas recorrências. Se não cabe, penso que pode ser facilmente descartado.
        
A vida de muitas pessoas cabe na palma da mão. Nem por isso, deixa de ter seu valor. Vale assim como o pequeno rio que atravessa a aldeia de Fernando Pessoa. Na visão do autor, ele se torna até maior que o rio Tejo, pois é esse pequeno rio que banha as terras de sua aldeia.
        
Nas proximidades de casa, existe uma rua que faz uma bifurcação. Justamente nesse local há uma casa gradeada. Um de seus moradores, presumo, fica grande parte do dia em frente ao portão, orientando motoristas de ônibus (que dispõem de pouca visibilidade por causa do cruzamento).
        
Toda vez que passo ali, usando do transporte coletivo, lá está o senhor dando sinais para os motoristas. Muitos agradecem com buzinadas, outros recorrem a gestos amigáveis de mão. O senhor exibe, então, um sorriso orgulhoso de ter feito algo de bom.
        
Ao final do dia, com o sentimento de dever cumprido, ele se arrasta para dentro de casa. Estava me esquecendo de dizer que aquele senhor, sorridente sob um boné virado para trás, que cuida de orientar motoristas de ônibus e troco de buzinadas ou gestos de agradecimento, aquele senhor tem as duas pernas amputadas.

Etelvaldo Vieira de Melo 

CONTRASTES

Imagem: ignotus.com.br
Todos os dias na rua me perco.
Todos os dias na lua te acho.
Frio o calor do meu corpo,
Doce amargura em teu passo.

Calmos sentidos e ardores
Maduram verdes momentos.
Buracos negros de estrelas
Em brancas flores aos ventos.

Isso por essa fortuna
Que nos faz pobres mortais:
Tudo é pleno e nada é mais.

Eu sou mar, tu és espuma
Nesses múltiplos desejos
Que em mim e em ti são sobejos.

NATAL DE SONHOS

SONHO DE NATAL
Toda esperança guarda um segredo.
            As cores eram tão vívidas que a cena parecia real; por outro lado, o absurdo da imagem fazia crer que aquilo não passava de um sonho.
           
Estava eu em frente a uma loja de artigos religiosos. As vitrines estavam decoradas com motivos natalinos. Estranhamente, vários produtos estavam colocados à venda.
           
Aproximei-me de um funcionário e quis saber o sentido de uma decoração específica: um casal e vários animais em torno de um bebê acomodado numa manjedoura. Tudo levava a crer que o local onde estavam era um curral, um estábulo. Estranhamente, associei aquela imagem com a representação de um Natal, tal como eu conhecia.
           
- Por acaso você é um extraterrestre? – quis saber o vendedor, mais irritado que curioso. – Isto que está vendo é um presépio e representa o nascimento de Nosso Senhor em condições de extrema pobreza.
           
- Como existem vários modelos de presépio, queria saber o preço, já que estão à venda.
           
- O preço está a partir de R$1.850,00.
           
Ao ouvir aquilo, senti que havia algo muito errado, a começar pela representação do Natal, que não era bem aquela ali exposta. Depois, havia aquele preço astronômico para algo que não poderia estar à venda.
           
Corri em busca de uma Cápsula do Tempo. Por sorte, havia uma disponível num jardim que ladeava uma igreja, um local bem próximo da loja. Entrei na cabine e digitei a data de mais de dois mil anos atrás, mais o nome da cidade: Belém, localizada na Judeia, na Antiga Palestina.
           
Eu sabia quem deveria procurar. Por isso, consciente que estava agindo contra o tempo, vasculhei as estalagens da cidade, quase todas apinhadas de hóspedes, por causa de um censo demográfico ordenado pelo rei Herodes. Não encontrei o casal que procurava.
           
Dando um tempo à procura e querendo me esconder do sol causticante, acerquei-me de um curral e que dispunha de coberta. Surpreso, vi que ali estavam o homem e a mulher que eu queria encontrar. Estavam sentados em um monte de feno, aparentando ar de cansaço.
           
- Ainda bem que encontrei vocês – fui falando, sem me dar ao trabalho de uma apresentação.
           
- O que aconteceu, meu filho? – perguntou o senhor, que identifiquei como sendo José.
           
- Aconteceu que estou vindo do tempo futuro e lá eles desvirtuaram todo o sentido deste momento que vocês estão passando.
           
- Querido – agora foi a mulher quem falou. Sua voz era suave, apesar do suor que escorria pelo seu rosto, devido ao cansaço e ao estado avantajado de sua gravidez: - As estalagens da cidade estão praticamente todas tomadas. Só restam as mais caras e não dispomos de dinheiro suficiente para a hospedagem. Chegamos até a pensar em pernoitar aqui mesmo.
           
- De forma alguma – falei, quase atropelando as palavras. – Estou trazendo para vocês um dinheiro para que tenham uma boa acomodação. Se vocês fizerem o que pensam, o sentido da História será todo deturpado.
           
Enquanto falava, passei às mãos de José um valor correspondente a R$1.850,00. Depois, ajudei os dois a se levantarem, enquanto colocava em minhas costas os seus pequenos pertences. Caminhamos em direção a uma estalagem de aparência agradável.
           
Deixei ali os dois, acomodados em um quarto confortável. Depois, eu me encaminhei em direção à Cápsula do Tempo. De longe, ouvi o choro de uma criança. Imaginei a cena: deitada na cama, Maria, com a criança nos braços, e José, solícito, passando em seu rosto um pano umedecido.
           
Quando cheguei em casa, meu filho já estava dormindo, mas minha esposa me recepcionou com um interrogatório: Onde estava até tarde? O que andava fazendo? Por que aquele aspecto de cansaço?
           
Eu não sabia como responder. Deixei suas perguntas no ar e fui para o quarto. Nem consegui trocar a roupa, tal o meu cansaço.
           
Na manhã seguinte, assim que acordei, vi que minha esposa se dera ao trabalho de trocar minha roupa por um pijama.
           
Depois de tomar um reconfortante banho, arrumei-me para sair.
           
Meu filho estava brincando lá na marcenaria. Chamei-lhe a atenção para ter cuidado e não se machucar.
           
- Pode ficar tranquilo, papai, só vou usar uns toquinhos de madeira para fazer uma casinha – falou ele.
           
Minha esposa deixou sua recomendação:
           
- José, não se esqueça de trazer os produtos daquela lista que está no seu bolso da calça.
           
- Está bem, Maria, não vou me esquecer.           

      Chegando ao centro da cidade, não resisti à curiosidade de passar na loja que, aparentemente, havia chamado minha atenção no dia anterior.
           
Foi com surpresa que não vi nas vitrines nenhum daqueles presépios. Quando quis saber do vendedor, aquele mesmo que fora ríspido comigo, ele comentou, em tom de brincadeira:
           
- Você é um extraterrestre? Não existe presépio. O que damos para as pessoas é esta moldura, relembrando o nascimento do Nosso Senhor. E ela é doada gratuitamente, porque não há preço que possa pagar a esperança que representa.
           
Pegando a moldura nas mãos, vi aquela cena que estava viva em minha memória: no mesmo quarto daquela hospedaria, Maria, com o filhinho nos braços, enquanto um solícito José cuidava de passar um pano úmido em seu rosto.
Etelvaldo Vieira de Melo

         Caro leitor: deixo-lhe o convite para repassar este texto para seus conhecidos e amigos. Considero que seja uma boa maneira de compartilhar a ideia de que o Natal vai além das festas, presentes, comércio.



            

ENDEREÇO

Imagem: amigos.mdig.com.br

SOB O DOMÍNIO DO MEDO E DA INSEGURANÇA

Imagem: g1.globo.com
          
         Já dizia dona Percilina Predilecta que, na vida, tudo deve ser contextualizado, ou seja, uma frase, uma expressão ou um dizer só podem ser bem compreendidos através da leitura do momento em que foram criados ou expressos.
           
Como exemplo, posso lembrar que, no período medieval, era sinal de santidade estar infestado de piolhos (cf. Tudo é Relativo, Até o Pronome Relativo, postagem de 09/02/2013).
           
Em tempos não tão remotos, chamar alguém de “cachorro”, ou dizer “estar levando uma vida de cachorro”, soava como grande ofensa. Hoje, dependendo do contexto, chega a ser elogio.
           
Julguemos, aleatoriamente, a frase dita pelo ator George Clooney:
           
            - Ele, Max, é um de meus melhores amigos.
           
Parabéns, poderíamos dizer a George Clooney por acreditar na amizade e tornar público que alguém, Max, está incluso no rol de seus maiores amigos.
           
Investigando mais a fundo a declaração do ator, ficaríamos desnorteados ao descobrir que Max é a denominação de um porco, grande e peludo, que, por 18 anos, foi seu animal de estimação. Quando morreu, Max teve até direito a celebração de missa e velório.
           
Numa possibilidade remotíssima, se George Clooney lhe disser “Você é tão meu amigo como foi Max”, você poderá entender como elogio ou considerar que o conceito “amizade” anda sofrendo muita transmutação.
           
Os chineses são o povo no qual Lavoisier se inspirou para criar a sua famosa tese de que, no frigir dos ovos, nada se cria, tudo se copia. Por isso, têm eles aquela expressão risonha de quem, numa tradução brasileira, quer dizer: “aonde a vaca vai, o boi vai atrás”.
           
Já os japoneses são compenetrados e muito inventivos. É por isso que eles sempre estão com uma máquina fotográfica à mão, sabendo que uma boa foto pode gerar uma boa ideia.
           
Entre as invenções japonesas, em razão do pouco espaço físico de que dispõem, está a de criar árvores miniaturizadas ou banzais.
           
Não podemos atribuir aos chineses a globalização desse princípio de tornar mignons espécies vegetais e animais. Aconteceu que, aqui e ali, foram surgindo animais de estimação em tamanhos cada vez mais diminutos. O exemplo clássico fica por conta de cães que, por cruzamentos e mutações genéticas, chegaram a tamanhos mínimos, podendo ser alojados em apartamentos ou transportados em bolsas.
           
Como as mudanças na sociedade são cada vez mais aceleradas, chamar alguém de porco ou dizer que ele tem “espírito de porco” também deixou de se constituir uma ofensa.

Miniporcos são, hoje em dia, animais de estimação, com a tendência de derrubar os cães do topo das preferências humanas. Por não possuírem glândulas sudoríferas na pele, exalam menos odor que os cães, estando um patamar acima daqueles no nível de inteligência; seu tamanho não ultrapassa 40 centímetros e seu peso fica entre 25 e 30 quilos; sua expectativa de vida gira em torno de 18 anos. Além de todos os benefícios proporcionados por um cãozinho, um miniporco tem a vantagem adicional de não latir – um alívio para os vizinhos de outros apartamentos.

Como a Ciência sempre cuidou de tornar o ser humano mais feliz, adaptando animais para a convivência do lar, sejam eles cães, porcos ou outros bichos, ela mesma deixa no ar uma suspeita: por que, até hoje, não cuidou de miniaturizar um chipanzé, aquele que – na escala animal – mais se aproxima da condição humana?
           
Pensando bem, a resposta até que é simples. Se cães, com QI tão baixo e rastejante, já conseguem fazer e aprontar todas, tornando-se, de fato, os donos das casas, imagina o que aconteceria com um chipanzé!
           
É tudo uma questão de medo e insegurança frente a um perigo real e imediato, o da Terra se tornar o Planeta dos Macacos, num momento em que já não mais podemos contar com a prestimosa ajuda de Charlton Heston.
Etelvaldo Vieira de Melo