BARBÁRIE HUMANA

Imagem: pt.wikipedia.org
Bárbara Heliodora
(Helidora, Eliodora)
mentora da Inconfidência.
Heroína da história brasileira
esposa insurgente
de Alvarenga Peixoto.
Foi ela
que no titubeio do marido,
pensando em entregar os companheiros,
disse: “Não. Tu não vais
te tornar um traidor.”

Bárbara mulher
que frequentava
os salões e as reuniões
da liberdade projetada
viu sua filha Ifigênia
de quinze anos
despenhar-se do cavalo
(o sonho acabou?)

Viu suas riquezas
(ela era sinhá dona)
serem tomadas
pelo fisco de Portugal.
Viu seus filhos
desbaratos pela (in)justiça
o marido deportado e morto
e resistiu
e resistiu.

Qual o final
dessa tragédia mineira?
Que é do ouro,
dos diamantes
De dona Elidora?
Onde estão os seus parentes
os seus saraus?
Estão na coroa
de Elizabeth da Inglaterra.

Tal o final
dessa tragédia?
Teria enlouquecido
a bárbara inconfidente
e vagado por Villa Rica
oferecendo flores aos auditores
qual a Cordélia do rei Lear?
Teria recuperado,
através do seu compadre,
parte de sua fortuna
e vivido condignamente
em sua fazenda?

Tudo são sombras
e os documentos oficiais
da época
não respondem
às querelas políticas de hoje em dia.

Perdida a lembrança
das Marílias
das Nises
das Heliodoras
resta a homenagem
de quem vê
nas frestas das janelas
o destino dessa formosa
dama do infortúnio,
mulher de Alvarenga,
mãe de Ifigênia,
Bárbara Elidora
(Heleiodora, Helidora)
de atual Villa Rica,
capital de Minas
em 1789.



TRIBUTOS & ATRIBUTOS


P
ode existir igual, mas não há quem seja mais crédulo do que Ingenaldo. As pessoas de sua convivência sabem que ele não é de pouca fé; ao contrário, ele crê piamente no ser humano e em suas palavras.
           
O fato de ser ingênuo não significa que seja desprovido de certo nível de inteligência. É por causa dela que ele se dá conta de ter cometido um ou outro deslize, quando confiou cegamente nas palavras de alguém.
           
As decepções, que vêm se avolumando ao longo do tempo, não removem o princípio básico de seu caráter, de acreditar, ter fé, dar crédito, confiar nas ações humanas.
           
Pois é justamente o Ingenaldo, esse ser humano de coração puro, que vem recorrer aos meus préstimos. Quer ajuda para entender duas situações que depara e para as quais não encontra respostas; uma, de natureza física, com a qual esbarramos todo dia; a outra, de caráter mais complexo, podendo ser rotulada de metafísica.
           
Como todos, Ingenaldo sabe que a carga tributária em nosso país é assombrosa e o retorno, em termos de serviços, é um tiquinho de nada. Vamos supor que ela, a CT, seja representada na forma de um bolo, desses vendidos em padarias. Deixo a seu critério a escolha do sabor. Prefere um mesclado de baunilha e chocolate? Que seja.
           
Pois bem, ao comprar tal bolo, fique sabendo que terá que dividi-lo com mais quatro entidades: a primeira representa a tributação federal e vai abocanhar uma fatia de 25%; a segunda, a tributação estadual, ficará com 15%; a terceira, a Prefeitura, irá solapar 10% e, finalmente, o comerciante, dependendo de seu ponto de venda, ficará com 30% a 40%. Sobrarão para você míseros 10% a 20% do referido bolo.
           
Isso é uma referência ao aspecto comercial, sem levar em conta a matéria prima bruta (na qual já estão embutidos outros impostos); no caso do exemplo citado: farinha de trigo, fermento, leite, ovos, aromatizantes, antioxidantes, acidulantes e mais uma série de componentes estranhos.
           
Quando tomou conhecimento dessa aritmética, ao fazer compras em uma loja de produtos de embalagem e descartáveis, ouviu Ingenaldo uma pergunta da vendedora:
           
- Você quer com nota ou sem nota?
           
Esta é uma pergunta crucial e maldosa. Em outros países, ela nem é feita, pois a nota fiscal é emitida automaticamente no ato da compra. Fazendo tal pergunta, raciocina Ingenaldo, a vendedora quer fazê-lo cúmplice de uma maracutaia (será que ainda existe essa expressão?), um trambique (existe?), uma falcatrua (essa eu acho que nem se usa mais), uma trapaça. Se pede a nota, poderá estar contribuindo para futuros atos de corrupção; se dispensa a nota, poderá estar contribuindo com um ato desonesto (Ingenaldo sabe que ladrão não é só aquele que rouba, como também quem segura a escada).
           
Tomado por dúvidas, Ingenaldo pergunta à vendedora:
           
- Com qual atitude estarei contribuindo para o bem do Brasil?
           
- Para ser franca, eu não saberia dizer – falou a vendedora. - Deixando de pedir a nota, penso que estará agindo melhor. Pelo menos, estará deixando um tiquinho a menos para ser roubado nas altas esferas.
           
Esta é a primeira questão que Ingenaldo me propõe: exigir ou não exigir a nota fiscal num ato de compra?
           
A segunda ele retirou de citações de rodapé de uma antiga agenda. Diz, mais ou menos, o seguinte:
           
“Deve se sentir feliz quem é pobre, quem passa fome e está chorando. E mais, para tornar tudo melhor: deve amar os inimigos, fazer o bem a quem o odeia, falar bem daqueles que o maltratam, rezando para os que o caluniam. Se alguém lhe der uma bofetada numa face, ofereça a outra; se alguém tomar o seu manto, deixe que ele leve também a túnica”.
           
- E então? – quis saber Ingenaldo. – Esta citação é tirada de uma passagem do Evangelho (Lucas 6,20-21; 27-29). Respeito todas as formas de manifestação religiosa, mas fiquei sem entender o sentido desta passagem. Devo interpretar de forma literal ou existe um sentido oculto? Você pode me ajudar a resolver estas duas questões, a dos tributos e a do atributo?
           
Pego no contrapé e temendo levar um gol entre as pernas, considerei:
           
- Olha, como não tenho opinião formada sobre os dois assuntos, vou deixar a questão exposta no blog, esperando que nem todos os internautas estejam nas nuvens e um ou outro venha a se manifestar.
           
- Quer dizer que você vai deixar as questões em aberto? - perguntou Ingenaldo, com tom de voz decepcionado.
           
- Absolutamente – falei, tentando acalmar sua ansiedade, ele que possui tendência à hipertensão. - Quanto mais diversidade de opinião, mais subsídios você terá para formar uma ideia. O único inconveniente, como já disse, é estarem todos os leitores de férias, nas nuvens.
           
Aí estão expostas questões que tanto incomodam Ingenaldo. A primeira (com nota ou sem nota) também deve incomodar muita gente, em especial nas datas de entrega das declarações de IR. A citação bíblica poderia ensejar três iniciativas, com placas em três lugares distintos: 1ª) Deve se sentir feliz quem é pobre, quem passa fome e está chorando >na entrada de uma “comunidade” ou “aglomerado”; 2ª) Amo meus inimigos, faço o bem a quem me odeia, falo bem daqueles que me maltratam, rezo para os que me caluniam >na porta do gabinete de um político qualquer; 3ª) Se alguém me roubar, tomando o meu manto, que leve também a túnica >placa afixada na entrada de uma loja comercial.
            Etelvaldo Vieira de Melo   
             


A DEUS


CORDEL AFOLOSADO: O HOMEM QUE FEZ O BOI VOAR

                      Vou contar uma coisa procê
E peço a devida atenção
Não sei se é de seu conhecimento
Pois o fato se deu por volta de mil e quinhento
No tempo da colonização.

Corria 1530 quando uma tropa holandesa
Aportou pras bandas pernambucanas
Fazendo portugas correrem como se escorregassem em bananas
E deixando suspensa a dominação portuguesa.

Instalou-se ali a Companhia das Índias Ocidentais
Para exportar açúcar a peso de ouro
Sendo aquilo, então, uma raridade, um tesouro
Com os camisas-laranja querendo cada vez mais.

Para tanto, para administrar aquela operação
Julgaram por bem contratar os serviços de um alemão
Para que tudo saísse a contento e não se desse mal
Um profissional capaz, que respondia pelo nome de Maurício de Nassau.

Esse homem era um cabra tinhoso, empreendedor, inteligente
Exportando açúcar, atendeu aos interesses da Companhia
Para a cidade de Recife, cuidou de fazer melhoria
Deixando todo mundo contente.

Mas o ser humano tem um defeito voraz
Nunca se satisfaz com o que tem
Estando sempre querendo mais
Não dando valor ao que ficou para trás.

Recife é uma cidade formada por ilhas
Carecendo de pontes para ligar uma às demais
Sem as quais, pais não podem ver as filhas
Sem as quais, filhos não podem ver os pais.

Maurício lançou-se à tarefa de erguer uma ponte
Mas o dinheiro lhe faltou quando estava no meio do caminho.
Então, pôs-se a mundiça a mangar sem dó ou carinho:
- É mais fácil um boi voar
Do que a ponte do Maurício terminar.

Aquilo mexeu com os brios do alemão
Deixando-o mais vermelho que maduro pimentão.
Falou: Eles hão de ver a obra terminar!
E assim ele fez com sacrifício a construção
Deixando-a pronta para inauguração.

E disse mais aquele atrevido fanfarrão:
- Não só vocês estão vendo a ponte acabar
Como terão oportunidade de ver um boi voar.

Durante o dia, circulou com um boi pela cidade
Despertando entre todos uma natural curiosidade.
E todos começaram a se perguntar:
- Será que ele é mesmo capaz de fazer um boi voar?

Maurício fez cobrar pedágio dos curiosos moradores
Inaugurando uma prática corriqueira depois entre governadores.
Quando a tarde chegou, ele se recolheu aos seus aposentos
E, tendo preparado de antemão um boi empalhado,
Fez com que ele deslizasse numa corda até o outro lado
Fato que deixou todo mundo tabacudo, abestalhado.

Tinha Maurício, por experiência europeia,
Conhecimento do ditado que dizia:
“À noite, todos os gatos são pardos – exceção pro angorá”.
Pode você perguntar: “De onde Maurício tirou a ideia
De que naquele ditado do gato, angorá não cabia?”
Ora, ele responderia, é preciso avaliar as coisas com atenção
Pois é dito e revisado que toda regra tem uma exceção
E o gato angorá não está aí por aresia nem por enrolação.
Ele põe um ponto final nessa prosa
antes que comece a esfriar
Contando as aventuras de um homem
que pôs um boi pra voar.


Etelvaldo Vieira de Melo

SURPRESA

A vida está por um triz.
Basta um vento
ou a noite fria
um catarro
uma embolia
e a vida não é mais vida.

Porém a vida não é triste.
Há os livros que se escreve
a estrela que se colhe
a história do cotidiano
(bobagens detrás da moita
como as que faz Chico-Boia).

A vida é um jogo de dados:
quem dá o lance mais alto
fica assim como no céu
mas ninguém sabe se Cleber
acabou-se de tanto rir.
Era tanto entusiasmo
tamanha a sua alegria
que tropeçou num mosquito
foi pro hospital sem um grito
e virou personagem de adeus.




SE É PRA DIZER ADEUS

As palavras têm o encanto da magia, das surpresas, do mistério. Quando num texto, elas estão ali, falando uma coisa; de repente, como num caleidoscópio, elas passam a falar coisas bem diferentes.
           
Estou desnorteado com a morte súbita e, aparentemente, absurda e sem sentido de um grande amigo, o Cleber. Nossa amizade foi construída há pouco, numa fase de nossas vidas em que já não abrimos mão da sinceridade. Por isso, apesar de tão recente, com pouco mais de dois anos, ela se mostrava inabalável frente aos tempos e aos contratempos dos acontecimentos.
           
Não vou me alongar descrevendo a percepção que fazia de sua pessoa. Ele está por inteiro nas páginas de seu blog (uma de suas paixões): wwwcleber2010.blogspot.com, nos seus dois livros (“Ceci e Chico Sete-Boias & Outros Casos”, “Contos, Encontros e & Reencontros”) e no Facebook, enquanto suas falas não forem deletadas.
           
Não vou me alongar, mesmo porque ele sempre implicava com meu jeito de descrever as coisas, com as ideias perdidas no meio de textos longos e enrolados. Apesar dessa sua crítica, sei que ele gostava do que eu escrevia, tudo porque eram textos carregados de humor. E uma das coisas que o Cleber cultivava era o humor, o bom humor, principalmente quando temperado com pitadas de saudáveis ironia e malícia.
           
A bem da verdade, o Cleber era terrível, dentro de sua pequena estatura física, com seus olhos curiosos por detrás das fortes lentes dos óculos, acompanhados de um sorriso constante.
           
Era uma pessoa sincera. Quando fui submetido a uma angioplastia e ele foi me visitar no hospital, quis saber se eu tivera mesmo um infarto, se não estava enrolando, como fazia com os textos.
           
Cleber tinha um grande coração. O cuidado com que realizava suas pesquisas para as postagens do blog tinha um único propósito: ser útil às pessoas, trazendo-lhes textos que possibilitassem uma melhor percepção da vida.
           
De vez em quando, nossos pontos de vista entravam em colisão, quando um ou outro falava sobre o sentido da vida ou questões de religiosidade. Eu sempre fiquei com as perguntas, quando eram esses os assuntos; Cleber tinha opinião formada.
           
Assim, numa de suas últimas postagens, no dia 04/04/2015, ele transcreveu o depoimento de um físico inglês, Stephen Hawking, falando que a crença na vida após a morte é uma fantasia incutida na mente das pessoas pelas religiões, para reconfortá-las.
           
Neste dia, postei um comentário no blog, dizendo que concordava com Stephen quando ele dizia: “Não tenho medo da morte, mas não tenho pressa em morrer “; no entanto, confessei não haver entendido a declaração de que o sentido da vida estaria em “procurar os maiores valores de nossas próprias ações”. Cleber, em resposta, disse que haveríamos de discutir o assunto.
           
Estou dizendo isto lembrando o que documentei no início do texto: o encantamento, a magia e o mistério das palavras, elas que também ajudam a extravasar sentimentos reprimidos, aliviar o vazio de uma perda, as dores do coração.
           
Creio que esta foi a última postagem gerenciada por ele mesmo, aquela em que falava da morte e da vida após a morte. Quem haveria de imaginar que, nem uma semana depois, estaria ele, Cleber, de partida? Por que ele não levou a sério as palavras de que “não tenho pressa em morrer”?
           
Na capa de seu blog, há fortes indícios do que pensava da vida. Lá está escrito: “Me desculpem amigos, não tenho tempo a perder. Vivo e deixo quem quiser viver. Viver é correr perigo, a vida está por um triz. Tenho tempo só pra ser feliz”.
           
Hoje, Cleber, segunda-feira, 13 de abril, fazendo uma caminhada por um parque da cidade, cruzei com várias pessoas: havia um rapaz equipado com monitor cardíaco, havia dois senhores conversando animadamente, tinha um outro falando ao telefone, passei até mesmo por uma senhora com um rosário na mão. Vi ali, Cleber, uma simbologia da vida, onde todos caminham procurando aquilo que você dizia: a felicidade. Numa certa altura da trilha, o sol cortava a sombra das árvores formando uma clareira. Aquela luz me revelou alguma coisa, de que a vida pode fazer sentido, não importando a maneira como cada um caminha (você, por exemplo, acreditava que o sentido da vida estava nos nossos próprios atos). Confesso que estou um pouco atrasado com isso, mas caminho com a esperança.
           
Você foi embora, Cleber. Que as pessoas que partilharam de sua convivência tenham aprendido pelo menos um pouco de suas lições de vida. Acho que assim o mundo pode se tornar um pouco mais colorido de alegria, honestidade, sinceridade e amor.
           
Adeus, grande amigo, fico lhe devendo uma barra de chocolate suíço.

Etelvaldo

TODO MUNDO E NINGUÉM


Imagem: outeiroseco-aqi.blogs.sapo.pt
Todo mundo: Quero riqueza.
Ninguém: Vou batalhar.
Todo mundo: Serei deputado.
Ninguém: Prometo não roubar.
Todo mundo: Quero justiça.
Ninguém: Conheço as leis e o amor.
Todo mundo: Anseio por liberdade.
Ninguém: Sei bem como votar.
Todo mundo: Preciso de chuva.
Ninguém: Vou economizar.
Todo mundo: Viva o sexo! Abaixo a violência!
Ninguém: Nasci pra saber usar.
Todo mundo: Fora a tortura e a guerra.
Ninguém: Vou me manifestar.
Todo mundo: Vou proteger o ambiente.
Ninguém: Eu já sei como lutar.
Todo mundo: Viva a vida e viva Deus.
Ninguém: Adeus, vou me cuidar.

LASCOU A TÁBUA DO MEIO!


Q
uando Adalisa ofereceu para Abner sua virgindade, como prêmio por ter ele passado no vestibular, estava mesmo era dando-lhe um presente de grego: logo depois de peiar, ela andou espalhando entre as torcidas do Santa Cruz, do Náutico, do Sport e até do Íbis que ele não era lá essas coisas na cama, sendo até mesmo um pouco afolosado. Se tivesse uma têmpera meio amolecida, estaria Abner traumatizado pelo resto de sua vida.
           

O que ele fez foi tocar em frente, julgando por bem que aquela moça era página virada, descartada de seu folhetim. Tanto assim que se meteu em quase cinquenta aventuras, até tomar um chá de maracujina e ficar calmo.
           

Conseguiu acalmar tudo, menos a língua, que continuava trelosa. Os passageiros que ele levava em excursão ficavam com calos nos ouvidos, tendo que aturar suas besteiras. Ele sempre deixava no ar a ameaça de levá-los até a praia de Tambaba, aquela famosa praia de nudismo na Paraíba.
           

Naquela ameaça de vai, não vai, acabou levando um grupo (que não queria ir, mas foi) até lá. Quando chegaram ao local, Abner tratou de ir logo tirando a roupa. Estando completamente nu, olhou para trás e viu que todos os turistas permaneciam vestidos. Pra lá de sem graça, colocou sua roupa, entrando na Van. No trajeto de volta, ficaram todos num silêncio assombroso.
           

Tudo muito diferente de quando transportou um outro grupo. Quando ele disse que iriam para uma praia de nudismo, um alemão, com toda naturalidade, tirou sua roupa e fez todo o trajeto de quase duas horas muito à vontade.
           

Não muito à vontade se sentiu uma portuguesa, quando retornou ao carro, após uma ida a determinada praia. Ela falou:
           

- Vou forrar o banco com uma toalha para que não fique molhado com minha traseira.
           
Todos os outros turistas ficaram mangando da moça, o que obrigou Abner a chamar-lhe a atenção, dizendo que a palavra “traseira” não caía bem.
           
Demonstrando ter aprendido a lição, a lusitana falou:
           
- Estava eu a dirigir meu carro em Lisboa, quando veio um outro e BUM!, acertando em cheio a... o meu c*.
           
- Viiixi! – falou Abner. – Lascou a tábua do meio!
           
Para aqueles que moram em outras bandas, ele estava querendo dizer: - Agora sim, que a vaca foi pro brejo!
Etelvaldo Vieira de Melo


CORDÃO



O anjo desceu no asfalto
em pleno carnaval.
Alguém que brincava
lhe fez elogios
à fantasia original.

O anjo explicou
que a mandado divino
Imagem: abluteau.files.wordpress.com 
vinha livrar
o Estado do Mal.
O outro achou graça
e disse "Aleluia!"
ao efeito trazido
pelo anjo surreal.

A seguir recobriu-o
de confete e serpentina
e deu-lhe um spray
de lança-perfume.
Disse ao anjo: Entra na dança
e mostra teu lume.

O anjo, caído,
achou que a folia
seria algo bom.

E lá foram os dois
levando a mensagem
de que uma saideira
seria o melhor remédio
para a Pátria brasileira. 

POTOCA DE UM CÃO CHUPANDO MANGA


A
bner desde quase sempre se julgou um predestinado, com forças ocultas livrando-o das fatalidades e proporcionando-lhe agradáveis aventuras.

Tudo começou quando tinha três anos e ele se escondeu debaixo de um carro Passat, importado do Iraque, pensando ser aquele o veículo de seu pai. Não era. Quando o motorista arrancou com o carro, por pouco muito pouco ele não partiu dessa, batendo a caçuleta. Aos cinco anos, aconteceu uma nova aventura de carro, com Abner e seu pai. Estavam indo para uma pescaria, justo quando um carro com as mesmas características tinha sido usado num assalto.

A polícia, passando junto ao Passat do pai de Abner, começou a atirar, com a intenção de fazer as perguntas depois. Foi quando um dos milicos viu a criança e ordenou aos colegas para suspenderem o tiroteio:
           
- Pelotão, este não é o veículo do assalto! Vejam: tem uma criança no banco!
           
Aos oito anos, Abner caiu num canal, cheio por causa da chuva. Ele não sabia nadar, mas exercitara prender a respiração. Por isso, conseguiu chegar ao outro lado, caminhando por baixo d’água.
           
Aos dezoito, foi para São Paulo em busca de estudo e trabalho. Quando completou dezenove anos, começou a namorar uma menina da comunidade chamada Terebentina.
           
Certa noite, foi ela quem chamou Abner para ir até sua casa para roçar a pitoca, já que seus pais estariam fora. Acontece que eles voltaram logo, quase pegando o aventureiro com as calças nas mãos. Ele comeu brocha, tendo que se esconder no guarda-roupa, pois o pai intimou:
           
- Filhinha, por que você trancou a porta do seu quarto? Trate de abrir logo.
           
O tempo passou, sem que o perigo desanuviasse. O garoto acabou caindo no sono, sendo acordado já de madrugada.
           
- Pode sair, meu bem, pois a ameaça já passou.
           
No dia seguinte Abner ficou sabendo que o paizinho de Terebentina, conhecido como Alagoano, era o chefão do tráfego na região e que, por um nada, mandava matar seus desafetos. Como o rapaz era esperto, tratou de voltar para o torrão natal, que não ficava no Rio Grande do Norte, mas em Pernambuco.
           
Depois de Terebentina, Abner contabilizou mais quarenta e cinco namoradas, arriando os pneus pra todas elas. Entre uma e outra, ou no meio delas, arranjava tempo para aventuras, como a de frequentar uma praia de nudismo na Paraíba, a praia de Tambaba. Foi lá que foi surpreendido por uma colega muito apetrechada e que trabalhava com ele numa concessionária de automóveis.
           
Constrangido pelo flagrante e pelo estado precário em que se encontrava, falou:
           
- Não pense que a coisa é do jeito que está vendo, não. Sou muito ajegado, mas estou assim por causa do frio.
           
Depois que ele me contou o caso, durante uma viagem de passeio, estando agora trabalhando na área de turismo, percebi que aquela era uma desculpa bem esfarrapada, já que frio não é coisa que aconteça pr’aquelas bandas.
           
Muito mais ele contou, já que era cheio de leriado, com uma língua pra lá de trelosa, fazendo com o tempo passasse rápido, embora as informações culturais viessem em conta-gotas, enquanto as bobagens vinham de montão.
           
Só mais um caso, para acabar com tanta aresia.
           
Estava se preparando para o vestibular, quando recebeu uma proposta de Adalisa, uma conhecida:
           
- Se você passar no vestibular, eu lhe dou de presente minha virgindade.
           
Um ano se passou, sem que se encontrassem. Certo dia, ela bateu em sua porta:
           
- Vim pagar a promessa.
           
Depois, ficaram um bom tempo sem se ver. Quando Abner viu Adalisa novamente, ela foi logo falando:
           
- Estou namorando firme. E tem mais: meu namorado dá de dez a zero em você.
           
Abner ficou tabacudo ao ouvir aquilo, julgou um absurdo aquelas palavras. Aquela moça era uma má agradecida, não reconhecendo seu trabalho de desbravador, tendo que derrubar matas, enfrentando toda espécie de perigo. Ela estava agindo como o povo, que não reconhece o trabalho árduo de um político que cuida das obras de infraestrutura, que só dá valor àqueles que constroem praças e viadutos.
           
Se aveche não, Abner, que o ser humano é assim mesmo: não sabe dar valor àqueles que merecem, enquanto é xeleléu de canalhas e medíocres. Pode ter certeza que se você fosse um papel de enrolar prego ou um pirangueiro, Adalisa não seria de tanto saimento.

Glossário:
* Potoca = conversa sem importância
* Cão chupando manga = o bom, o cara que sabe tudo, o tal
* Batendo a caçuleta = morrendo
*Roçar a pitoca = tirar um sarro
* Comeu brocha = passou por apuros
* arriando os pneus = apaixonando-se
* Apetrechada = dotada de beleza física
* Ajegado = bem dotado
* Cheio de leriado = conversador
* Trelosa = que fala besteira
* Aresia = conversa besta, sem sentido, fundamento
* Tabacudo = abestalhado, abilolado
* Aveche = preocupe
* Xeleléu = puxa-saco
* Papel de enrolar prego = pessoa grosseira
* Pirangueiro = sujeito pão-duro, avarento
* Saimento = atrevimento

Etelvaldo Vieira de Melo