MAÇÃ DO CERRADO

Imagem: caliandradocerrado.com.br

Meio jaca meio manga
enjoativa como não há!
Cheira a chiclete
corta verruga
faz geleia
doces e chá.
Azul arroxeada
é a sua flor.
De estigma amarelo
e folhas brilhantes.
É da família
do tomate e do jiló:
aí está.

A lobeira
É quem alimenta
o solitário
(e quase extinto)
lobo-guará. 

DENOTAÇÃO, CONOTAÇÃO, EXTENSÃO

O filósofo Norberto Bobbio, se não for para colocar em dúvida as palavras de seu filho Marco – famoso cardiologista italiano – bem como as do tradutor de sua entrevista a uma revista de circulação nacional, dizia que “o homem de cultura valoriza a dúvida”.
Preciso retomar a entrevista para verificar a precisão dos termos. Estou em dúvida se ele disse: “o homem de cultura é aquele que valoriza a dúvida”, ou: “o homem de cultura gosta de valorizar a dúvida”, ou: “o homem de cultura sabe valorizar a dúvida”, ou – em última instância: “o homem de cultura costuma valorizar a dúvida”. Veja você que todas as proposições remetem a interpretações diferentes.
Mesmo não dispondo dos termos exatos da declaração do filósofo, lembro-me que fiquei em desacordo com suas palavras. Num primeiro momento, usei daquela clássica saída tantas vezes citada nos romances de Agatha Christie: a culpa é do mordomo, ou seja, do tradutor. Tudo porque não faz sentido um filósofo colocar a dúvida em patamar tão elevado, no nível da admiração ou espanto – ponto de partida da disposição filosófica.
Existe uma incongruência, uma discrepância entre dúvida e admiração. Colocadas lado a lado, a dúvida sufoca e mata a admiração.
Vou me servir de um exemplo bem simples para ilustrar esta suposição: Olavo Rocha duvida que algum diretor de cinema nacional possa produzir um filme que preste. Entre se aventurar a ir até uma sala de exibição e a dúvida, prefere ficar com a dúvida. (Antes que alguém venha com pedras pra cima do pobre coitado, é bom considerar que ele possui uma leve perda auditiva, e as salas de exibição deixam a desejar no quesito sonoplastia.)
Continuando: você duvidar do potencial de alguém com personalidade formada, isso pode ser um ato inconsequente, mas vai duvidar da capacidade de um adolescente, mais inseguro e tremiliquento que doce de “maria mole”... Minha autoconfiança como aprendiz de redação certamente sofrerá um abalo sísmico se meu professor manifestar de público suas dúvidas sobre minha capacidade literária. Ele pode pensar assim, mas que esse seu pensamento fique trancado a sete chaves!
Dando um desfecho à dúvida, para que não reste mais nenhuma, sendo todas demolidas como pedras sobre pedras, só resta acrescentar que ela é o vestíbulo do preconceito, um mal que atinge as pessoas, quando chegam a certo estágio de vida e passam a achar que sabem das coisas.
Norberto Bobbio, na citação anotada acima, emprega uma expressão que avalio como extremamente perigosa: “homem de cultura”.
O que ele está querendo dizer com isso? Estará se referindo a alguém instruído, de muita leitura? Afinal, o que quer dizer “uma pessoa culta”?
Quando o tema é “cultura”, as pessoas, em geral, ficam intimidadas e não se atrevem a dizer o que pensam, mesmo sendo a constatação óbvia de que “o rei está nu”. Deixam a crítica para os críticos profissionais. Aí, o galinheiro fica por conta das raposas, sendo que não existe nada mais confuso do que a cabeça de um crítico profissional. Isso tanto é verdade que Millôr Fernandes, no alto de sua sabedoria, chega a perder a compostura quando fala a respeito: “Às vezes só ao ler a crítica percebemos que a merda de filme que vimos no dia anterior é uma obra genial”.
Com o respaldo das palavras do próprio Millôr (“Não precisamos ser especialista em nada para fazer crítica. Sem jamais usar um martelo ou um formão qualquer pessoa sabe se uma cadeira incomoda ou não o seu traseiro. Em arte ou sabão de roupa, criticar é direito de todo mundo”), tenho notado, não me servindo da dúvida, mas da observação e análise cuidadosa, que muitas manifestações ditas “culturais” não passam de verdadeiras mediocridades.
Assim, mesmo correndo o risco de provocar arrepios de indignação, conto que, dias desses, estive fazendo um passeio em Inhotim, nas proximidades de Belo Horizonte, lugar conhecido pela exuberância de sua flora, e onde galerias de arte e exposições tentam um diálogo, nem sempre bem sucedido, com a natureza.
É claro que uma obra artística está sujeita a diferentes leituras, podendo dizer muito para determinada pessoa e quase nada para outra. Entretanto, o que vi em Inhotim pareceu-me algumas vezes absurdo. Os guias tentam “dourar a pílula”, inventando um tanto de explicações. Apesar do esforço, achei de absoluta falta de sentido umas paredes chapiscadas próximas a uma mata. Poderia dar ideia de um labirinto, o que faria sentido: a ação do homem sobre a natureza muitas vezes o leva a perder seu rumo, deixando-o num beco sem saída. Entretanto, com tal interpretação estaria procurando “chifre em cabeça de cavalo”.
Quando vi três carros fusquinhas alinhados sobre um terreno de grama, eu me adiantei ao guia e comentei:
- Era uma vez três viajantes que rodavam em seus carros pelo interior de Minas. Quando aqui chegaram, aconteceu da gasolina acabar; então, tiveram que deixar os carros e eles assim ficaram até hoje. Tal fato deu origem ao nome do local, já que os nomes dos viajantes eram Ivo, Totonho (conhecido como Nhô) e Vicentino (apelidado de Tim). Juntando suas iniciais e apelidos, o local ficou conhecido como Inhotim.
É isto que eu sei e é isto que deduzi depois de intensa caminhada, com muitas subidas e descidas sob um sol ainda mais intenso. Se tivesse utilizado daqueles carrinhos de aluguel, talvez minha avaliação tivesse sido também outra. Talvez venham daí as observações mal-humoradas sobre a parede com chapisco e os fusquinhas alinhados.
Infelizmente, a cultura em nosso país custa caro, e eu não passo de um pobre coitado pobre.
Etelvaldo Vieira de Melo

ANJINHO DO CÉU

flores - Mimosa decorticans - Angiquinho 2.jpg
Imagem: plantasdocerrado.com.br

Angiquinho
cor-de-rosa
flor nativa
no cerrado
de Goiás.
Os seus brotos
de olhos verdes
pululam na tela
despenteada
de Renoir.

ESPERANÇA, APESAR DE TUDO



Etelvaldo Vieira de Melo

NO CERRADO



Imagem: www.mustdo.com.br

carobinha
tucum-de-índio
catolé
          (adivinhe 
o que isso é!)

cambiú
guanandi
orvalhinha
          (adivinha
ou não adivinha?)

jerivá
butiá
ubim
          (é isso, sim!)

catuaba
pereiro
marolo
          (tudo árvore!
prove o bolo!)

ENCICLOPÉDIA DOS DITADOS POPULARES (VOLUME 1)

Para o Waldemar Carabina, amigo de tempos passados e que, agora, tenho a alegria de reencontrar.
Por esses dias, através de uma rede social, conterrâneos têm repassado a Elidério várias fotos de sua infância junto a colegas de Ensino Primário, hoje chamado de Ensino Fundamental.
Além da dificuldade inicial em se reconhecer, Elidério foi tomado de agradável surpresa: como ele era um menininho danado de bonito!
Não vale dizer que todos os filhotes são bonitos, até mesmo um de crocodilo ou de hiena. Comparado com seus colegas, Elidério se destacava por traços diferenciados, ao ponto de um conterrâneo comentar: “- Até parece um anjo!”.
Entretanto, Elidério não quer que eu fique aqui “rasgando seda” sobre sua antiga beleza, mesmo porque “águas passadas não movem moinho”, e ele concorda muito bem com as palavras de Millôr Fernandes, quando diz que “toda fotografia antiga é uma punhalada”; o que ele quer é organizar uma enciclopédia de antigos ditos populares, explicando seu sentido e dando exemplos. Assim como as fotos de sua infância, essas expressões populares, pelo desuso, podem cair no esquecimento coletivo. Resgatá-las seria, no mínimo, trazer um pouco de luz para determinado momento histórico.
Como Elidério só sabe falar, não dispondo de um mínimo de habilidade de redação (já teve), ele sempre recorre aos meus préstimos quando quer documentar algo. Eu funciono como um ghost writer, embora não receba um “tostão furado” pelo meu trabalho. (Está aí um tema para futura investigação, onde poderei desenvolver a tese de que o “dólar furado” foi plágio do “tostão furado”.)
Os verbetes surgem aleatoriamente, dependendo do momento. Assim é que iremos começar falando sobre um, que será alinhado na letra “Q”.
            QUANDO A ESMOLA É DEMAIS, O SANTO DESCONFIA
E
lidério conta que, em seu tempo de adolescente e começo de juventude, viveu dias de penúria, não dispondo de dinheiro para quase nada.
Naquele tempo, a medicina não havia se tornado esse balaio de encrenca que é hoje, com quase tudo sendo proibido. As pessoas cultivavam sem traumas ou sentimentos de culpa os mais variados vícios, como o de fumar, por exemplo. Fumava-se em tudo quanto era lugar: nos ônibus, as escolas, nos cinemas.
Um jogador de futebol, veja bem, chegou ao desplante de se tornar garoto-propaganda de uma marca de cigarro. O mote da publicidade era: “É preciso levar vantagem em tudo, certo?”. Outra, com conotações sexuais, falava de um “fino que satisfaz”.
As pessoas fumavam nos cinemas, já disse. O foco do projetor na tela, visto de lado, mostrava a fumaceira em que a sala de projeção estava infestada, infectada. Enquanto isso, a película exibia artistas mais fumando do que fazendo outra coisa. Em Casablanca, Humphrey Bogart, antes de dar um beijo na estonteante Ingrid Bergman, tinha que soltar suas baforadas.
Assim, com tantos maus exemplos, Elidério começou a fumar quando tinha seus quinze anos de vida. Raramente comprava um maço; os cigarros eram, segundo expressão da época, “filados”. Quando alguém era muito “filão”, também era chamado de “serrote”.
Waldomiro Espingarda, que tinha esse apelido porque soltava “pum” pra tudo quanto era lado, em qualquer hora do dia ou da noite, pois bem, Waldomiro, apesar de peidorreiro, tinha um coração generoso. Um seu parente trabalhava numa fábrica de cigarros, fábrica essa situada em bairro próximo ao centro da cidade. Esse parente repassava ao Waldomiro cigarros que apresentavam defeitos de fabricação, mas que eram fumáveis e tragáveis. Elidério recebia muitos como doação.
Waldomiro também chegava a “filar” cigarro de Elidério, quando esse tinha algum. Não chegava a “filar” um cigarro inteiro; ele só se aproximava e dizia;
- Me deixa dar uma tragada aí.
Elidério suspirava angustiado; sabia o que viria pela frente: Waldomiro aspirava profundamente e punha o cigarro na boca. Elidério via o cigarro, com uma só tragada, ir se transformando em cinza. Quando ele só tinha um toquinho para ser segurado, era devolvido com as palavras:
- Obrigado, vô.
É que, não sabemos por que, Elidério tinha apelido de veio (é), de vô.
A pior desventura de Elidério com cigarro aconteceu quando começou a fazer o antigo Curso Científico, agora chamado de Ensino Médio. Então, ele era assíduo “filador” de um colega chamado Loprefâncio Celestino, podendo mesmo ser catalogado por este como “serrote”.
Todo dia, pelo menos por uma vez, lá vinha o “pidão”:
- Você pode me emprestar um cigarro?
Loprefâncio nunca fez um gesto de recusa. Houve até o dia em que se antecipou ao pedido, oferecendo a Elidério um cigarro.
Um tanto surpreso com tanta atenção, mas nem um pouco desconfiado, pegou o cigarro e foi fumá-lo, sentado em sua carteira, enquanto aguardava o início das aulas. Viu que seus colegas o olhavam apreensivos; sorriu para todos, enquanto dava suas baforadas.
Em determinado momento, quase foi arrancado da cadeira e saiu voando feito um Sputnik. Foi como se tivesse havido um estouro de foguete, seguido de muita fumaça: Loprefâncio havia descascado a pólvora de vários palitos de fósforo e colocado tudo no meio do cigarro. O riso foi geral.
Para este tipo de história, a cultura popular ensina: “quando a esmola é demais, o santo deve desconfiar”. O “santo” do presente relato, Elidério, não desconfiou da tramoia que Loprefâncio estava lhe aprontando por dois singelos motivos: 1º) para fazer jus ao ditado de que “toda regra tem exceção”; 2º) por causa de sua lerdeza mental, também denominada PFC (Prolapso de Fim de Curso).
Etelvaldo Vieira de Melo

PASSARIM

Imagem: palpitedigital.com.br

Flor de seda
quem te teceu?

Que tear em chamas
fez teu rosto vermelho
e o vestido verde?

A terra, o sol, a água
e o xaxim
te bastam ao linho,
palhacinha?

A PROMESSA


Tertuliano já havia atingido o cume do pico da Neblina, numa alegoria de que viver seja escalar o tal do pico da Neblina. Quando lá chegou (no cume do pico), o tempo estava nublado e não se via nada da paisagem. Por isso, Tertuliano tratou de descer a encosta, tendo cuidado para não levar um escorregão fatal. Já haviam lhe falado das três coisas que derrubam, mandam para o além aqueles que atingiram a melhor idade (eufemismo para dourar a pílula da velhice): pneumonia, caganeira e tombo. Por isso, ele descia a ribanceira com cautela, segurando nos ramos e troncos das árvores.
            
Quando mais novo, e os relógios eram movidos à corda e os telefones públicos usavam o sistema de fichas, Tertuliano fez uma promessa. Ele era torcedor fanático de um time que se vangloriava, em seu hino, ter sido campeão do gelo. Ninguém sabia o que isso queria dizer; muitos imaginavam que seria alusão a um torneio entre fábricas de sorvete e picolé. De qualquer modo, seu time só abiscoitava títulos regionais, chegando uma vez somente ao título nacional.
      
O sonho de Tertuliano era ver seu time conquistando um título continental de expressão. Num rompante de paixão, prometeu: - Vendo uma propriedade, extremamente valiosa, e faço doação para as famílias pobres da cidade, caso meu time conquiste o mais importante título continental: a Taça Libertadores.
            
O tempo passou, com Tertuliano torcendo para que seu time abiscoitasse a segunda maior glória de uma agremiação de futebol, a de campeão da Taça Libertadores da América. E não é que seu time acabou chegando lá?
            
Na noite da decisão, Tertuliano ficou com o coração na mão, emocionado; enquanto isso, foguetes espocavam pela cidade de forma ensurdecedora, levando cães à loucura.
            
No dia seguinte, as salas de psiquiatria canina ficaram abarrotas de clientes, todos tomados pela síndrome do pânico. Deixaram de comparecer à consulta os cães das classes C e D, mais os párias dos vira-latas. Enquanto isso, Tertuliano ficava rindo por fora, mas tomado de angústia por dentro. A ficha havia caído, isto é, ele estava pensando na promessa descabida que havia feito em tempos idos.
            
Tertuliano se sentia na obrigação de cumprir a promessa; por outro lado, abrir mão de hum milhão e duzentos mil reais (valor atualizado de sua propriedade)... Pensou, pensou, buscando uma alternativa para dar um desfecho ao seu drama.
            
Quando estava indo buscar a Luluzinha, sua cadelinha de estimação, lá no Psiquiatra, veio a ideia luminosa. Mais do que depressa, através das redes sociais e sites de vendas, fez publicar o seguinte anúncio:
            
VENDE-SE PROPRIEDADE EM ÁREA NOBRE POR 120 REAIS. O INTERESSADO DEVERÁ ADQUIRIR, NO ATO DA COMPRA, UM CÃO DE RAÇA E PEDIGREE, NO VALOR DE HUM MILHÃO, CENTO E NOVENTA E NOVE MIL, OITOCENTOS E OITENTA REAIS.
         
Entre as várias ofertas, Tertuliano acabou fechando negócio com um interessado que lhe pagou a quantia em dinheiro vivo. Os 120 reais foram repassados para uma instituição de caridade. Deste modo, Tertuliano julgou que a promessa estava sendo religiosamente cumprida. Os hum milhão, cento e noventa e nove mil e tantos reais foram usados em aplicações variadas.
            
Caso você esteja com a suspeita de que o cão da venda é a Luluzinha, acertou. Tertuliano prevê dias gloriosos para seu time do coração, não está nem pouquinho disposto a gastar com psiquiatras tratando de seu cachorrinho, por mais Luluzinha que seja.
            
Ao final de tudo, Tertuliano ficou rindo à toa: seu time conquistou o título continental; com a venda da propriedade, ficou livre dos impostos territoriais; desfazendo-se de Luluzinha, economizou na compra de rações e gastos com veterinário e psiquiatra animal; finalmente, as aplicações financeiras lhe renderam bons dividendos. Agora, ele está sonhando mais alto: quer fazer doação a partir de um condomínio residencial de luxo, caso seu time conquiste o título maior de campeão mundial. Ele está achando que encontrou a fórmula de atrair a sorte, usando de falsas promessas e de muita esperteza. Pode?
Etelvaldo Vieira de Melo