Muitas vezes, o peixe morre
é pela boca. Ao lidar com palavras, corro o risco de me perder em temas
nebulosos, aparentemente ingênuos, mas que acabam se tornando verdadeiras
areias movediças. Procuro me conter, não por uma questão de medo, mas por entender
meus limites e o desejo de tornar esses encontros momentos de descontração,
humor, alegria.
Fazer confronto entre
ciência e religião pode se constituir um tema explosivo. Ao analisarmos apenas
duas citações sobre a questão, veríamos como ele pode ser complexo: É atribuída
a Sêneca a frase de que “a religião é um
pouco verdadeira para os pobres, falsa para os sábios e útil para os
dirigentes”; já Richard Dawkins afirma que “Eu sou contra a religião porque ela nos ensina a nos satisfazermos ao
não entender o mundo”.
Um médico disse para uma
amiga que ela está na idade de prestar atenção ao momento presente, que ela não
pode fazer as coisas distraidamente. Julgamos que o conselho vale para todos:
prestar atenção ao momento, aproveitar o que a vida oferece de bom, enxergando
as coisas em suas reais dimensões. Abrir bem os olhos, ser honesto com a gente
mesmo, reconhecendo o que queremos de verdade.
A presente reflexão nasce do
cuidado que estou tendo com tudo aquilo que tem acontecido em minha vida. Falemos,
primeiro, das ciências.
A citação de Richard Dawkins
mostra como o ser humano é pretensioso: ele quer entender o mundo! Nada de
errado em querer tanto. Mas eu pergunto: em não sei quantos mil anos de
história, conseguiu ele pelo menos um esboço de explicação racional
satisfatória, plausível? A não ser que se aceite aquela que foi dada por Sartre
de que o homem é um deus fracassado, uma paixão inútil! Agarro com unhas e dentes
essa perspectiva de entender a vida, de entender o mundo de forma racional;
daí, aquele princípio de que “aprendizagem
é a arte de desocultar mistérios”. Mas mistérios podem ser de toda
natureza, até mesmo sobrenaturais, por que não?
É isso que me incomoda no
sectarismo, na forma dogmática como certas pessoas se posicionam diante da
vida. E muitos o fazem em nome da ciência! Como bem dizia Will Durant: “A ciência nos ensina a curar e a matar;
reduz a taxa de mortalidade no varejo e depois nos mata por atacado na
guerra... por si só, não pode nos salvar da devastação e do desespero.”
Atacado por dores por tudo
quanto é lado, qual Estado da Palestina frente a Israel, procurei um médico
ortopedista e lhe fiz a pergunta crucial:
-
Você acredita em Deus?
Ele
deu um sorrisinho maroto e respondeu:
- É
claro que não.
-
Pois bem – falei eu. – Caso o senhor não resolva o problema dessas minhas
dores, vou retornar para minha antiga religião.
Está claro que entendo
certos problemas serem decorrentes da idade, mas me incomoda ver como pessoas e
até profissionais conseguem matar um dos mais importantes dons da vida e que se
chama “esperança”. A ciência e a tecnologia avançam de forma extraordinária,
mas os homens da ciência, muitas vezes por causa de seu saber fragmentado,
especializado, perdem de vista o ser humano como um todo, cometem deslizes
fatais com o mau uso das palavras.
As palavras! É no campo das
palavras que brota a semente e dissemina a religião. Porque é ali que ela se
solta das amarras da verificação empírica, dos testes e das provas, para alçar
voos nas altitudes dos desejos reprimidos, das carências, dos medos, das
fraquezas. As religiões se multiplicam, os templos se espalham pelo Brasil
afora. Com a globalização, importamos expressões estrangeiras e exportamos
religiões. Outro dia, fiquei impressionado ao tomar conhecimento da quantidade
de templos que uma matriz brasileira tinha espalhados pelo mundo. Falam que as
religiões são tantas que um indivíduo, desorientado na busca de uma, acaba
criando a sua.
De tudo que andei observando
e pensando, vejo que tanto a ciência tem muito o que ensinar para a religião (abrindo
os olhos da consciência ingênua, da manipulação e do fanatismo, chamando a
atenção daquelas pessoas simples e crédulas para o perigo dos aproveitadores
que as exploram financeiramente ou roubam seus votos para cargos políticos),
como a religião tem a ensinar para a ciência, quando mostra que o ser humano,
além da razão, é portador de sentimentos, emoções, fantasias e desejos.
Quase ao final desta
reflexão, como se isso fosse possível, torno minhas as palavras de dois
autores.
Primeiro, Jostein Gaarder,
no seu livro A garota das Laranjas:
1º) “Eu próprio sou cientista e por certo não
hei de ter espírito anticientífico, mas mesmo assim nunca abri mão da minha
visão de mundo mítica e um pouco animista. Nunca deixei que Newton ou Darwin me
roubassem o verdadeiro mistério da vida”;
2º) “Imagine, Georg, se do outro lado também
existisse uma mão que a gente pudesse segurar! Mas eu não acredito que exista
um outro lado. Disso eu quase tenho certeza. Tudo quanto existe é apenas
passageiro, tudo chega ao fim. Mas, geralmente, a última coisa que a gente segura
é uma mão”;
3º) “Sempre que a gente ‘morria’ nesse jogo (um
jogo de computador), aparecia um novo cenário onde recomeçar. Quem garante que
não há um novo ‘cenário’ para a alma? Eu não acredito, palavra que não. Mas o
sonho do improvável tem nome. Chama-se ‘esperança’.”
Fábio de Melo, o segundo
autor, posiciona-se, podemos dizer, na outra margem do rio, embora ele fale,
recorrendo a Guimarães Rosa, em uma terceira margem, “casa das esperanças
humanas, lugar onde os medos são consolados”. Numa de suas cartas, em Cartas entre Amigos, Sobre Medos
Contemporâneos, livro escrito em parceria com Gabriel Chalita, ele afirma
coisas que se aproximam do que diz o autor de O Mundo de Sofia: “Gabriel, o grande poder que o medo da morte exerce
sobre nós parece estar ligado ao sentimento de absurdo e vacuidade que
experimentamos... Uma terapia que considere as coisas do espírito é de
fundamental importância na superação dos medos. A materialização das questões
não resolve nossos conflitos. O materialismo e sua tentativa de suprir todas as
necessidades humanas já chegaram ao extremos de sua inaptidão. Estamos com medo
de viver, medo de envelhecer, medo de morrer. Estamos com medo de nós mesmos e
de tudo que nos é próprio... A morte prevalece toda vez que perdemos as
esperanças. O vazio, a falta de sentido, apressa ainda mais os efeitos da
finitude em nossa vida”. No final desta carta, ele conclui, poeticamente: “Fico aqui. Quando posso, vou. Mas, quando
não vou, dou um jeito de aprender a ficar. Eu me agarro às esperanças. Elas são
muitas. Elas são tantas! Estão por todos os lados, mas costumam estar
adormecidas. O segredo é gritar por elas. A esperança tem sono leve.”
Para mim, bom mesmo foi ter
recorrido a um farmacêutico de longa experiência profissional e de vida, ainda
motivado pelas dores pelo corpo. Ao final da consulta e de uma injeção cavalar,
ele me disse:
- A
ciência pode lhe fazer muito bem, mas Deus pode lhe fazer melhor. Você acredita
nisso?
-
Doutor, dizem que a fé remove montanhas. Depois dessa injeção, estou pensando
seriamente em deslocar as montanhas que envolvem nossa cidade, corrompidas
pelas mineradoras que as transformaram em uma casca de ovo, e trocá-las por
outras novinhas em folha!
Não sei se me faço entender,
mas é aqui onde quero chegar. O terreno de areia movediça, do qual falava no
início e indigitava os riscos do sectarismo da religião e da ciência, também
oferece a possibilidade de você seguir em frente: uma corda que se chama
“esperança”. É ela que irá nos acompanhar pelos rios da vida, rios que irão,
quem sabe, nos levar até o mar. Porque têm razão os antigos quando diziam
aquela frase, imortalizada no poema de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso,
viver não é preciso”. A vida é pra ser navegada e nós não fomos feitos para
ficarmos em suas margens. Ciência e Religião estão aí para alimentar as nossas
esperanças; o que importa é aproveitá-las com inteligência.
Quando 2013 batia à porta,
pedindo licença para entrar, postei – em 29/12/2012 – uma crônica chamada A Esperança Nossa de Todos os Dias. Seis
meses depois, transcrevo uma das passagens: Ela,
a esperança, resiste porque é o oxigênio da vida e nos permite acreditar no
amanhã, apesar de tudo aquilo de ruim que conspira contra as possibilidades de
ser feliz... Que, nesta passagem de
ano, possa você reanimar a esperança que carrega consigo, uma esperança
abalada, machucada diante de tantas decepções e maus exemplos. Não a deixe
morrer, pois, quando morre a esperança, também morre todo sentimento de
humanidade.
No final, havia o apelo de
que a esperança fosse compartilhada, de que a honestidade valia a pena, que a
vida deveria ser cuidada, que as sementes da alegria, da amizade e do amor
fossem semeadas e o canteiro do mundo pudesse ser, sim, um jardim de felicidade
para todos.
Etelvaldo Vieira de
Melo