Espero que você, furtivo leitor,
não tire conclusão apressada de que o texto a seguir seja uma reminiscência
minha, uma lembrança de tempos de antigamente, enterrados nas valetas da
História, eu que sou um sujeito novinho em folha, recém-saído das agruras da adolescência,
onde comi o pão que o diabo amassou com o rabo, os chifres e seu garfo. Quem me
relatou tudo isso foi o Risvaldo, sim, aquele mesmo, e com quem compartilho uma
discreta amizade.
O
que fez meu amigo destravar a língua foi eu ter feito a seguinte observação:
- Sabe que acabei de comprar
ingressos para ir com minha namorada à apresentação do Cirque du Soleil?
Risvaldo olha para mim como se não estivesse me vendo
e, tomado de saudade, começa a me relatar lembranças de sua infância. Confesso
que, ao final da narrativa, pensei que, se o Cirque du Soleil me proporcionasse
pelos menos 10% da emoção que experimentou meu amigo, já seria bom demais:
Nos tempos de antigamente, era comum que circos de
picadeiro e de tourada, assim como parques de diversão, fizessem turismo pelas
cidadezinhas do interior, onde chegavam se arrastando, tal a penúria de suas
condições financeiras. Os circos de picadeiro podiam ser avaliados pela
quantidade de remendos em suas lonas. Quando aparecia um com lonas novas, só
tal fato era suficiente para que as lotações se esgotassem.
Independente da quantidade de furos em suas lonas,
a chegada de um circo ou de um parque era sempre motivo de comemoração, diante
da perspectiva de algo diferente para uma cidade que vivia jogada às moscas.
Os parques apareciam raramente. Como a entrada era
livre, eu era frequentador assíduo e não me cansava de ver apostadores tentando
laçar maços de cigarro com argolas, outros tentando acertar tiros ou bolachas.
O máximo de emoção acontecia com a Roda Gigante e com gangorras em forma de
canoas, onde duas pessoas se revezavam puxando cordas. Às vezes, um puxava tão alto que passava a
sensação de que iria cair lá de cima. O desejo proibido ficava por conta do
carrossel, onde eu esgotava toda minha cota de inveja, vendo outros meninos
girando em cavalos de faz-de-conta.
Os circos de touradas eram ainda mais raros. Todos
fracassavam, pois usavam bois das fazendas da região. Como nenhum tinha uma
gota sequer de sangue espanhol, assim que eram colocados na arena, ficavam
olhando calmamente para os toureiros e para a plateia. Não havia provocação que
os deixasse enraivecidos. O vexame era inevitável.
Quanto aos circos de picadeiro, como bem diz o
ditado “em terra de cego, quem tem um olho é diferente”, aquelas pessoas
estranhas, desde a chegada, eram vistas com curiosidade e deferência. Sempre
havia um rapaz de belas proporções - em geral, um trapezista - a quem todos davam
o direito de namoriscar a mocinha mais atraente do lugar.
Quando o circo era de maior envergadura, seus
principais artistas desfilavam em caravana pelas principais avenidas da cidade,
assim que os mastros fossem fincados e as lonas levantadas, para dizer para a
população que haveria espetáculo. E lá estavam o palhaço e seu acompanhante anão
fazendo graças para os meninos; lá estava o rapaz musculoso - certamente um
trapezista - a arrancar suspiros das mocinhas; havia também aquela mulher de
maiô e aquele atleta de short collant, ambos a despertarem pensamentos sombrios
em homens e mulheres; fechando o desfile – que surpresa, que aperto no coração!
– vinha um leão enjaulado. Uma emoção indescritível tomava conta das pessoas.
À noite, o som do serviço de alto-falante se
espalhava pela cidade, anunciando o espetáculo. “Respeitável público, não
perca, em instantes, o início do maior espetáculo que esta cidade já viu. Venha
rir com as travessuras dos palhaços Mingau e Fubá, admirar a coragem do Homem
Bala, passar pelo suspense do Globo da Morte, emocionar-se com o drama ‘O Céu
Uniu os dois Corações’ e muito, muito mais!” E a sirene toca, em desespero,
uma, duas, três vezes.
E
Risvaldo concluía: Lá de minha casa, eu
ouvia tudo aquilo, com o coração doendo e umas lágrimas teimando em descer pela
minha face. Eu me recriminava: Por que eu sou tão covarde? Por que não tenho a
coragem de um Biriba, que sempre dá um jeito de entrar debaixo da lona? Durante
muito tempo, eu me sufocava, ouvindo músicas, gritos e risos. Depois, eu me
consolava e adormecia com o pensamento de que, daí a uns dias, quando a
população da cidade estivesse quase toda depenada, o circo iria promover uma
matinê a preços reduzidos e, até lá, quem sabe?
Quando, enfim, o circo deixava a cidade, nós, as
crianças, cuidávamos de montar o nosso, geralmente debaixo de um bambuzal que
havia no fundo do quintal de casa. Bambus eram utilizados para fazer a armação,
enquanto a lona era de folhas das bananeiras. Certamente que tínhamos trapézio
e palhaço, mas a atração principal ficava por conta de um primo que conseguia a
proeza de deslocar o pescoço, igualzinho ao que fazia a moça do circo
verdadeiro. Como eu não tinha nenhuma habilidade artística, ficava cuidando da
bilheteria. Os ingressos eram folhas de pés de café. Ainda guardo uma toda
ressecada dentro de um livro. Você quer ver, Ingenaldo?
Etelvaldo Vieira de
Melo