ILLUMED HILLS

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Imagem: raquelleitems.wordpress.com


Toma-me.
A tua boca sobre a minha boca
Nasce antes da morte, amor. Com a mão, procuras
Uma lua argêntea,
A clarear-me a fase fugidia.

Sobre nós dois,
Ariadne urde a teia sensual.
Então, te visto vivamente vivo,
Dentro de mim.

Deliquescidos,
Nus nos mil abraços,
Não há cadeia ou muro ao meu redor.
Na cálida textura da face, deponho-te um beijo.

Digo para mim: ao lado dele, imensa,
Minh’alma é prata, rendada a fios
De delicadeza.
Graça Rios

ALGUMA COISA ESTÁ FORA DA ORDEM

Os tempos atuais sempre sugerem a criação de um cartum.
Ivani Cunha

DE TANTO OUVIR "VAI PRA CUBA", ACABEI INDO

Havana
Imagem: viajenaviagem.com
Passando por dificuldade em encontrar um personagem ou um tema para minha dissertação semanal, fiz-me (pode?) estas perguntas:
- Não existe aqui no bairro uma possível personagem?
- Os jogos de videogame não lhe sugerem nada?
- Os programas e filmes de TV a que assiste não lhe trazem nenhuma inspiração?
Ontem, andando pela rua, encontrei o Chiquito, uma figura bem interessante: foi dono de um varejão de verduras e legumes chamado “Varejão do Chiquito”. A mandioca ali vendida fazia sucesso tal a sua maciez, cozinhava num instante. As donas de casa não se cansavam de dizer: “- Boa mesma é a mandioca do Chiquito! Não tem nada igual."
Bom, acho que o Chiquito pode se tornar matéria-prima para uma futura crônica. Preciso, primeiro, fazer um levantamento de dados, sobre ele e sobre as mandiocas, o que vai me tomar certo tempo. Minha necessidade é mais premente.
Sobre videogame, enjoei da plataforma que disponho: só traz jogos de violência. Quis mudar, mas, como ali tudo depende do dólar e estando ele nas alturas – por causa do Temer & Companhia – acabei desistindo, suspendendo a assinatura. O que foi bom, pois assim poderei me recuperar melhor do calo na palma da mão, culpa da “lesão por esforço repetitivo” (LER), de tanto pressionar os botões da manete.
Os programas de TV, por causa das eleições, andaram falando muito de política, tema que já explorei ad nauseam. Agora, por recomendação médica e por orientação de pessoas próximas, estou proibido de falar no assunto.
Quanto aos filmes, já há muito enjoei daqueles de guerra e daqueles cujos mocinhos são agentes da CIA; agora, enjoei (não me chame de cara enjoado!), enjoei dos efeitos visuais produzidos por computação gráfica. É tanta a quantidade de recursos tecnológicos que os filmes de ação, por exemplo, acabaram perdendo a graça, tamanho o exagero. Resultado: migrei pra outra operadora, quero dizer, migrei para as séries.
Durante um tempo, assisti àquelas de investigadores e coisas tais. Até enjoar (de novo!), ao perceber que a fórmula, de tanto ser usada, acabou perdendo a graça: com os recursos da modernidade, por nada, os exames de DNA acabavam dando desfecho às investigações. Quando o/a mocinho/a ficava num beco sem saída, logo vinha um técnico passando cotonete nas bocas dos suspeitos. Aí, bingo! – o caso era solucionado. Assim estão os seriados modernos: sem mais e sem menos, lá vem um exame de DNA. O fosfato que você queimou tentando digerir a trama acaba sendo jogado na lata de lixo! Uma bruta sacanagem!
Ainda bem que a NETFLIX, sentindo o meu drama de não ter mais a que assistir, resolveu me presentear com uma série onde o detetive principal tem que usar, quase que somente, do recurso de seu faro apurado, sem essa de DNA, só com um pouco de impressão digital. A série é cubana e se chama “Quatro Estaciones em La Habana”. Confesso: ver cenários de tanta pobreza quase joga por terra minhas convicções socialistas. Havana parece estar caindo aos pedaços, com prédios se desmanchando e seus poucos carros antigos. Uma pobreza de fazer dó.
Assistindo à série, você percebe que, em Cuba, profissionais liberais - como médicos, engenheiros, economistas - não têm o glamour que os nossos ostentam: é frequente encontrá-los nos botequins bebendo cachaça. Se a série fosse atualizada, teríamos ali a presença de “mais médicos”, aqueles que acabam de retornar do Brasil (o que possibilitou à amiga Vivelinda Matusquela a observação mordaz: o governo brasileiro, ao expulsar os cubanos do “Mais médicos”, não só tornou a saúde do país mais precária, como contribuiu com o aumento do alcoolismo em Cuba).
Quanto ao detetive da trama, além de fumar um cigarro atrás do outro, costuma interrogar as testemunhas assim: “- Você é cubano e gosta de uma fofoca. Então, conte pra gente o que sabe”. Achei bem legal, mais interessante do que a técnica utilizada pela Lava Jato, que usa o suborno nas delações (o que mostra uma diferença brutal de valores: lá, o que prevalece é o afeto; aqui, o dinheiro).
Está certo, ao fim de tudo, como está vendo, já não estou aderindo ao socialismo cubano. Enjoei ao ver tanta pobreza. Agora, o que o cubano perde em pobreza ganha em calor humano. Quem assistir à série pela NETFLIX vai entender o real sentido daquela frase enigmática de Che Guevara: Hás que endurecer, pero sin perder a ternura jamás.
Você me mandou ir pra Cuba. Fui, mas não gostei. Da próxima vez, me manda ir pra Europa, pra França, Paris. Você sabe: estou ficando muito, muito enjoado.
Etelvaldo Vieira de Melo

CIDADEZINHA QUALQUER

anita-malfati
Entre morros e rodas d'água - de Anita Malfatti

Um jeito de me ficar
à tarde sonolenta
mirando na moldura
o burrinho de Giotto.

Um  homem vai no pigarro de paia.
Uma cigarra segue para a praça.
Que foi? Um pássaro? Um avião?

Não, eu!  Eu acalento pai,
cantando esta modinha,

enquanto mãe borda, na janela,
o florão de Santa Bárbara
para a procissão.
Graça Rios

AGORA É COM ELE!

Que Deus nos ajude, pois agora é o Terceiro Turno!
Ivani Cunha

BLOQUEANDO O DESBLOQUEIO

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Imagem: omipibuense.blogspot.com
Porque já chegou ao patamar da “melhor idade”, Loprefâncio Caparros dispõe de algumas regalias, criadas pelo Sistema para amenizar os impactos da devastação do Tempo. Entre essas regalias, está o passe livre em transportes coletivos.
Foi para revalidar um cartão de passe livre que ele se dirigiu a um guichê apropriado, instalado na estação rodoviária da cidade.
No trajeto de ônibus até o centro, estava ele sentado em um banco amarelo, reservado às pessoas idosas. Na sua frente, viajava um outro senhor de cabelos brancos que, cheio de entusiasmo, desandou a conversar com o fiscal de bordo, o trocador, outro senhor de cabelos brancos. O “pobrema” é que, por estarem um pouco distantes e em lados diferentes, para serem ouvidos, precisavam falar alto. Daí, que a viagem se tornou um “suplício chinês” (expressão que, a bem da verdade, não sei precisar o sentido, mas que achei pertinente ao caso) para Loprefâncio, com aquela quase gritaria no seu ouvido.
Se a conversa fosse de algum proveito intelectual, moral ou cívico (é bom a gente começar a falar disso aqui no Brasil), até que Loprefâncio aceitaria com prazer o desprazer de tolerar dois papagaios matraqueando em seu ouvido. No entanto, se a conversa – que durou mais de meia hora – fosse espremida feito laranja, não sobraria nada de caldo, só bagaço.
Para ser sincero e estar conforme à verdade (coisa que anda fazendo também muita falta no Brasil), eis o que ficou de tudo:
1 - Loprefâncio ficou sabendo de uma doença degenerativa chamada “ELA”.
2 - Um jogo de futebol, acontecido na noite anterior, provocou uma briga perto da casa do trocador, ali por volta da meia noite, com um morador de rua sendo ferido. (“- Você foi ver?” – perguntou o senhor, tomado de curiosidade. “- Não, só ouvi a briga” – respondeu o outro. “-Ah, se eu fosse você, iria assistir! Uma briga é coisa que não perco nunca!” – falou o senhor, com os olhos quase saltando das órbitas.)
3 - Falaram muito sobre a crise econômica que o país atravessa, dizendo que ninguém hoje pode recusar um emprego, por mais mal remunerado e insignificante que seja. Acabaram concordando com a tese de um dos candidatos a presidente da República, que dizia ser preferível ter emprego do que ter garantia trabalhista. Loprefâncio quis perguntar: “- Mesmo sendo trabalho escravo?”.
Quando chegou ao centro, Loprefâncio sentia seus ouvidos zumbindo. Custou a se acostumar com o zum-zum das ruas, os locutores propagandistas das lojas berrando seus anúncios, os barulhos dos motores de carros e ônibus.
Quando foi revalidar o cartão de passe livre, ficou sabendo que, para não ser bloqueado, ele teria que ser usado pelo menos uma vez por mês.
Como o cartão é intermunicipal e só serve para ônibus que servem à região metropolitana, Loprefâncio – que só o usaria uma vez ao ano com certeza, indo até prefeitura da cidade onde se aposentou fazer o recadastramento da chamada “Prova de Vida”, isto é, provar que ele ainda não passou desta, ainda não “bateu as botas” - Loprefânio, volto a dizer, viu que teria de seguir o exemplo de Anatalino Reguete, um conhecido.
Anatalino, mexe e vira, está pegando um ônibus intermunicipal para fazer jus ao seu cartão de passe livre. Da última vez que se encontraram, ele disse que estava indo até um bairro chamado Bernardo Monteiro, de uma cidade vizinha. Quando Loprefâncio lhe perguntou por que estava indo tão longe (quase quatro horas de ônibus, entre ida e volta), o outro explicou:
- Fiquei sabendo que lá tem um armarinho vendendo carretel de linha a um preço bem em conta.
Sabendo que estou transcrevendo tudo isso, Loprefâncio pede para transmitir esse recado:
- Senhor Leuturino, se na sua cidade tem um armazém vendendo fubá, caixa de fósforo ou pacote de sal com preço em conta, não deixe de me avisar. Fico agradecido.
Para os leitores em geral, que ficam incomodados ao verem tantos “pés-na-cova” dentro de transportes coletivos, peço que entendam: estão indo comprar fubá, desbloqueando o bloqueio de seus cartões de passe livre.
Etelvaldo Vieira de Melo

FLORES DO MAIS

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Imagem: Wikipédia

Por que vens aqui, 
talhar, entre nós, distintos espaços,
para além de qualquer união?
Moves à feição de quem foge
guerra aos filhos, à tua mulher.
Trazes na voz camuflados punhais,
embainhados no avesso do amor.

Por isso, bem sabes, um buraco negro
desestrela o recíproco universo.
Vais voltando, náufrago de ti,
Volto indo, náufraga de mim.

Sozinhos juntos,vagamos entre vagas,
à mercê das correntes marinhas.
Graça Rios

UMA SEMENTE E DUAS FLORES

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Imagem: blogmeudestino.com
Pelo menos uma vez por semana, Eleutério vai até o centro de sua cidade, geralmente para comprar alguma coisa no Mercado Central ou algum medicamento na drogaria de sua preferência.
Desta vez não foi diferente. Depois de tirar alguns trocados no caixa eletrônico de uma agência bancária, passou pelo Mercado e comprou ingredientes para a vitamina que prepara toda manhã. Como está chegando à conclusão de que, a partir de agora, deve agir com desprendimento, pede para que eu transcreva os componentes que usa no preparo da dita cuja, a tal vitamina:
- Uma colher e meia (sopa) de linhaça dourada
- Uma colher (sopa) de gergelim
- Uma colher (sopa) de chia
- Uma colher (sopa) de aveia em flocos
- Meia colher (sopa) de semente de girassol e/ou abóbora
- Duas castanhas do Pará.
Esses ingredientes devem ser misturados a:
- Duas bananas prata
- Três pedaços pequenos de mamão
- Uma maçã
- Um pedaço pequeno de abacate.
Tudo deve ser batido em liquidificador com dois copos grandes de água.
A receita atende a duas pessoas e deve ser consumida meia hora antes do café matinal e meia hora após a ingestão de um copo d’água misturada com o suco de um limão.
Eleutério se sente bem ao fazer suas compras no Mercado Central, pois os atendentes vendedores o tratam com educação, sendo que as atendentes chegam a chamá-lo de “querido”.
Depois do Mercado, Eleutério passou pela drogaria, onde deu uma renovada em seu estoque de medicamentos. São eles: - Diltiazem 60 mg, Somalgim 100 mg, Sinvastatina 20 mg, Lozartana 25 mg, e Timolol 0,5%.
É lá na drogaria que Eleutério precisa ter cuidado: sempre pedir desconto, reclamar dos aumentos, até comprar maior quantidade de um produto (o que diminui o preço unitário). É ali que ele sempre se lembra do ditado “Quem não chora não mama”.
Hoje, Eleutério visitou uma livraria, onde os livros são vendidos a preço único de R$10,00. Como estamos vivendo o mês da Black Friday, estão com uma promoção chamada “Semana Maluca”, com todos os livros disponíveis a R$5,00. Eleutério comprou quatro de uma vez e pensa retornar logo para “garimpar” outros. Ele manda dizer que, se alguém se interessar pelo endereço, é só perguntar pelo blog, que ele informa.
Muito satisfeito com tudo que havia feito, caminhou em direção ao ponto do ônibus.
Passando sob a marquise de um prédio, viu uma senhora com duas crianças, acomodadas sobre caixas de papelão desmanchadas. Quando olhou para as meninas, sentiu uma pontada no peito, mas seguiu em frente. No entanto, ficou pensando assim:
- Você é engraçado. Fala sobre a pobreza, lamenta as condições a que muitos são submetidos e, no entanto, só fica na falação. De que adianta só ficar dizer “coitado”?
Estando já duzentos metros adiante, Eleutério decidiu retornar e, tirando R$5,00 do bolso, o estendeu para a senhora:
- É para comprar um pão para as meninas – falou.
A mulher, com os olhos brilhando, só disse:
- Obrigado.
Já no ponto do ônibus, olhando para os lados, viu nas proximidades duas moças namorando. Com ares apaixonados, ficavam alisando o rosto uma da outra e se abraçando. Eleutério sentiu outra pontada no peito. Lembrando aquele jogador de futebol que, a exemplo do beija-flor, flutua no ar, pensou consigo mesmo: “O amor é lindo!”.
E assim, assim que se encontrou comigo, pediu para que registrasse todos os acontecimentos de seu dia. Estou fazendo isso agora, na esperança de que lhe seja útil de alguma maneira, estimado Leiturino.
Etelvaldo Vieira de Melo

DIM DIM DOOM


- Um game over comigo, well loved  granny?
- Se vou acabar, antes de começar, pra que jogar e caducar?
- Boas rima, vó. E o gameStart?
- Claudinha, o almoço. Pior a emenda que o soneto
- Quem fez verso agorinha foi você, bolas.
- Topamos.
- E aí, nóis fumo pro jogo. O contrário de fumo?
- ???
- Vortemo, claro.
- Uma partida e pronto.
- Não dá. Eu faço 5000, e você, nem 10 pontos. Daí, thongs thongs na minha bunda.Tem que ter zilhões de outras.
- É pegar ou largar. Uma!
- Bombom. Já liguei o computador.
- Pra computar dor da sua perda. Cláudia!
- Terrible, grandma!
- Veja que bonito: Amor tece dor. Um hai-kai, gostou?
- Incrivelmente dor-loroso, depois dos exercícios no órgão.
- Quer aprender um trecho de Jesus, alegria dos homens?
- Você me ensinou cinco notas. Chega!
- O almoço está na mesa, dona Graça.
- O David astronauta nele!
- I’ve never been good to you, tuiú.
- Prefere jogar ou exibir o Inglês, dramática neta puxandavó?
- Começou. Seleciono esse Doom? Isso! Pode destruir os inimigos, e capturar os bônus, Maria!
- Por que não o Okami? Ele é interessante. O significado de Doom...
- Estou no Brasil. A Ásia hoje funciona é para o manotão do Trono. Doom, vó.
- Certo. Lá vai a vovó, faturar uns 1000. A neta pode tratar de abandonar o navio Pirata. Doom e Doom! Resultado...
- Pena de gato! Pena de rato! Penas de porco! Fez merely 20. May you rest in peace.  Avança claramente, Ana! Fiz…
- 10, tô vendo os 10. Viva eu, viva tudo. Viva o Chico barrigudo!
- 10 é a minha idade. 1000. Onde esqueceu os óculos?
- Querem um cafezim? Acabei de fazer.
- Traz, Cláudia. O Rodrigo e a Karine saíram com o neto. Vamos parar.
- Ah, ah, ah. Afinow, dona Graça?
- O Diablo XII era muito superior. Ou o Fantasy III.
- Doom, Doom. Vavindo, vorivéia.
- Respeito, Clara!
- O cereal do vampiro?
- ???
- Aveia, minha véia. Aveia. Vai, vê, e vê se vence!
- Vou arrebentar com 10000.  Puuuum!Catapuuum! Pum!Resultado...
- Com o primeiro, 100. Pena de pum!
- Continuar em vão, não, João. Ninguém merece ser enterrado jogando videogame.
- Dramática, veja este Manual. 1. Domine, primeiro, os níveis mais fáceis. 2. Respire profundamente. 3. Repita o mantra: A cada ponto perdido, respiro leve, porque estou me derretendo num oceano de luz e paz. 4.Libere a raiva nas almofadas dispostas em frente ao computador.  5. Chame um neto para desabafar: Você sabe, não foi culpa minha. 6. Faça uma pausa, a fim de se acalmar. 7. Celebre, quando fizer muitos pontos. E, principalmente, jamais desista! Don’t worry. Be calm.
- Chinelaada!
- Então, vory, me passa a vitória, e chispa daqui!
- Uai, tá me expulsando? Pois não dou mesmo! Sigo tentando a sorte.
- Não matou nem quatro inimigos, nem os bônus. Eu matei mais de 500.
- Muita violência e niilismo no Doom, sinônimo de fracasso, e na neta, mas vou...
- ...embora, graciosa? Drama, drama e drama.
- Nada. Vou nadar de braçada em cima da sua derrota.  Eiavó! AH! Resultado... Tem pudim, Cláudia? Brigadus.
- Game over, como sempre. Conquistei a batalha, peguei todos os bônus. Vamos à chocolateria, pra você me pagar uns mil browns de prenda, iguaizinhos aos de ontem à tarde.
- Vou respirar fundo, ensaiar o mantra da Karine, liberar a raiva e insistir na Sagração, do Igor Stravinsky. Caso o Beethoven esteja preso, pelo menos o órgão não debocha de mim.
- Take it easy, grandma. Amanhã tem jogo de fogo aqui e no Mineirão.
- Chá de Doom, e dim dom no órgão, Claudinha.
Graça Rios

VICE-VERSA

A eterna juventude não dura mais que alguns anos.
Ivani Cunha

RESCALDO ELEITORAL


Nem sempre me tem sido possível atender ao propósito de levar a vida com leveza e bom humor. Às vezes, por causa de minha condição de brasileiro, de estatura mediana, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior, chego a pensar ser de todo impossível atender a tal intenção. Nos últimos tempos, por exemplo, tenho tratado, você sabe, estimado Leiturino, de temas bem sombrios, tudo por conta das eleições que aconteceram no país. Por sua culpa, queimei muitos neurônios, tive muitas gastrites e fiz não sei quantas inimizades.
Agora, tudo acabou, a poeira começa a assentar e meu coração volta a bater compassadamente. Antes, porém, de retornar ao sonhado estado soft, preciso fazer um rescaldo do que aconteceu e das lições que aprendi com tudo. Contudo, será coisa rápida, assim espero.
Alguém disse, suponho que tenha sido Einstein, que o ateu leva desvantagem em comparação com o crente na questão de vida após a morte. Se ela não existe, teremos empate, pois nenhum poderá cobrar vitória; agora, se ele existir, a vida após a morte, o crente estará ganhando, pois apostou nisso.
De maneira semelhante, estou me sentindo com relação às eleições próximas passadas. Perdi, mas estou com um sentimento de vitória. Se tivesse ganho, o outro lado iria jogar nas minhas costas um tanto de responsabilidade: por exemplo, se alguém tivesse uma gripezinha qualquer, logo seria incriminado; se o cachorrinho da madame amanhecesse com dor de barriga, ela iria até a TV e seu Jornal Continental esbravejar ser eu culpado.
Agora, não, posso respirar aliviado. Mas sei que nem tanto, porque o outro lado se acostumou a dizer que sou responsável por tudo de errado que acontece no país, se acostumou a me ver como bode expiatório. Ontem mesmo, durante o discurso – inteligente e sensato – de meu candidato derrotado, logo já vieram as más línguas dizer que ele deveria ter sido mais comedido, proclamando seu sentimento de profundo amor para com o vitorioso. É querer demais, não é mesmo?
Vamos navegar no terreno das hipóteses, projetando o que possa acontecer com o novo governante. Vamos, imaginar, primeiro, que ele, conhecido como “O Mito”, faça um bom governo. Levando em conta que se sabe muito pouco de suas propostas, tirando os aspectos morais (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”), podemos levantar algumas hipóteses do que seja um bom governo.
Para mim, um bom governo significa: respeito à democracia e às liberdades; atenção, cuidado e promoção daqueles menos favorecidos, os pobres; respeito com as ditas minorias e com as mulheres; empenho em defender a soberania nacional, promovendo um crescimento sustentável, de preservação e de respeito ao meio ambiente, com o brasileiro, em geral, tendo condições de vida decentes, com acesso à educação e à saúde. Se o mito atender a isso, terei cometido um erro de avaliação, darei “o braço a torcer”. Não haverá de minha parte má vontade, pois não sou dos que apostam no “quanto pior, melhor”. Será com alegria que enviarei mensagens para meus desafetos, parabenizando-os pelo acerto de votação. Se as condições financeiras permitirem, poderei mandar construir um banco, com uma placa alusiva, para ser instalado numa das praças do bairro, com dizeres em homenagem ao, agora, meu mito (os termos podem ser esses: “Ao Mito: nossa eterna gratidão”).
Pelos outros lados, fica difícil dizer o que seria um “bom governo”.
Pergunto: - O que é um bom governo para os milicianos bolsonaristas, muitos deles, declarados fascistas? (Logo após o resultado das eleições, um deles quis saber: “Já está liberado para matar petistas, negros, gays e baianos?”.) – O que é um bom governo para o “Mercado”, ele que, afinal, dita as regras da economia e dos negócios? – O que é um bom governo para os antipetistas, que preferiram uma aposta no escuro, com risco de ver naufragar a democracia? – O que é um bom governo para evangélicos e religiosos, seduzidos pela cantinela nem sempre honesta de seus pastores e líderes?
Um bom governo pode ser vários. Se ele respeita a democracia e não atropela a Constituição, devemos acatá-lo, pois é fruto da decisão de uma maioria. Ao fim, haverá sempre alguém rindo e batendo palmas, mesmo que a maioria fique chorando e rangendo os dentes.
Ao fim deste texto, construído mais em cima de perguntas e de suposições do que de respostas e de verdades assentadas, quero dizer que tenho medo, muito medo, um enorme medo, que só não é maior do que um sonho, o sonho de um futuro feliz para minha pátria-mãe, o Brasil.
Etelvaldo Vieira de Melo