SONHANDO




Vive sonhando

Pensando no mar

Que mora tão distante

 

Grande desencanto

O sonho esconde

No tempo a passar

 

Quisera despertar

Converter em realidade

Seu sonho vão

 

Mas teme que ao acordar

Desapareçam sonho e mar

restando tão somente a solidão


Etelvaldo Vieira de Melo

A CAIXA

 


Encomendei à Sylvia P. uma caixa de abelhas

mínima, tipo exportação.

Bees... bees...

Sob pontuações imprecisas,

pergunto se têm futuro.

(Sílabas e voo)

Desconfiadas, confessam ignorar

a feminina minha humana histriônica raiz.

Conscientizam-se apenas

da colmeia levada a tiracolo.

Dentro dela - dizem, melosas -, moram

bolsinhas, pinturas, óculos, sabonetes,

pasta e fio dental, escova de dentes e cabelo,

toalhinhas, chaves, pocket books and money,

anéis pulseiras, meias...

Desprezo o resto, porque as melindrosas

realmente fazem cera.

Desejam abrasar-me as retinas,

vasculhar bronquíolos, coração.

A cada zoom, praticam-me filosofias de varredura

Bis bis bis

no caldeirão da manhã.

Now I fell dizzy... I need an interpreter.

 

Graça Rios

TANTO CHORO, OH, QUANTA TRISTEZA!

 

Quando Eleutério perguntou se tinham ido prestigiar Deusarina Rebelada desfilar no Bloco Duro, onde ia tocar surdo, Aleluia respondeu:

- Fomos. Demos um alô para a Deusarina. Quando estávamos voltando, chegou o Renevildo.

- Viva o carnaval! Todos gritam: Viva! Exceto o Eleutério e a Percilina Predillecta – completou Oruam.

Se não sabe, que fique sabendo, Oruam: por trás de toda ação existe uma oculta razão! É o que tento explicar, através do texto abaixo.

 

    Leovigildo– Leo, para os íntimos – teve uma infância e adolescência pra lá de difícil; até hoje, quando pensa no que passou, costuma ficar de boca aberta que nem burro que comeu urtiga. Sua mãe enviuvou cedo, tendo que dar conta sozinha do cuidado de sete rebentos, sendo Leo o que vinha na rabeira, a rapa do tacho, isso numa época em que as castas menos favorecidas não dispunham dos favores de bolsas-família, educação, botijão e outras tantas mais.

   Leovigildo foi criado, pois, com rédea curta e estômago nas costas. Sua mãe, ao contrário do que se podia imaginar, não usava de coerção física. Ela incutia na mente dos filhos princípios religiosos e morais, através dos cujos exercia seus mátrios poderes. Fazia isso tão bem que parecia o Big Brother, de 1984, o Grande Irmão, uma sombra onipresente em todos os momentos da vida dos filhos.

   Leo sentia que seus atos, pensamentos e omissões eram monitorados 24 horas por dia. Só faltava ele vislumbrar pra tudo quanto é lado placas com os dizeres “Sorria, você está sendo filmado”. O coitado não se achava livre nem nos momentos em que se trancava no banheiro, ficando naquela posição de “O Pensador”, de Rodin.

   (Estou lhe repassando esses informes para que tenha uma ideia de como era a vida de nosso personagem, ao tempo em que lhe ofereço a oportunidade de aumentar seu acervo cultural. E não precisa me agradecer por isso; só espero que tenha paciência suficiente para levar a leitura até seu desfecho.)

   A pãe de Leo (pãe = mãe que assumiu a condição de pai, ou vice-versa) acalentava o sonho de ver seu rebentinho seguindo a carreira religiosa. Por isso, foi com um arrepio pelo corpo, seguido de vertigem, que ouviu dele, já beirando a fase da maioridade, a assertiva de que iria, finalmente, a um baile de carnaval.

   - Como pode pensar em fazer isso, filho do meu coração? – falou ela com voz prestes a irromper num choro. – Você não sabe que ali é um antro de perdição, casa do capeta e de todos os seus súditos?

   - Ora, mãe – falou Leo, tentando se armar de paciência. – Ali é apenas um clubezinho, onde as pessoas vão buscar distração inocente.

   - Distração inocente... – imitou ela, em tom de deboche. – Você não faz ideia do que mocinhas são capazes de aprontar, depois de terem tomado, Deus que me livre, bebida alcoólica. – A mãe falou isso com os olhos arregalados, a ponto de saltarem das órbitas, ao mesmo tempo que se benzia com o sinal da Cruz. 

   Leo pensou: “É isso mesmo que quero ver!”, mas o que disse foi:

   - Manhê, o meu diretor espiritual falou que o carnaval é uma festa religiosa que antecede a quaresma; a palavra significa “despedida da carne”: “carnis valles”. É uma festa que abre os quarenta dias de jejum e de abstinência até a Páscoa.

   - Muito bonito o que você falou, mas não me convence.

   - Veja, mãe, a senhora não sabe e nem tem obrigação de saber, mas o carnaval é mais animado onde a tradição religiosa é mais intensa, forte, como é o caso de Salvador, Olinda e até mesmo o Rio de Janeiro, com seu sincretismo, aquilo que Stanislaw Ponte Preta, em alegoria, chamava de Samba do Crioulo Doido. Aqui em Minas, o carnaval tem destaque em cidades como Sabará, São João del-Rei, Diamantina e Ouro Preto, todas fortemente marcadas pela tradição religiosa.

- Bah... – resmungou a mãe. – Agora – desferiu ela, com os olhos vertendo lágrimas, - se quer me matar de desgosto, vai.

E Leo foi, quer dizer, tentou ir. Chegou a entrar no salão de festas, mas carregava a sensação de que todos os presentes estavam a observá-lo. Soterrado de timidez, achou por bem tomar umas bebidas para animar. Acabou passando mal, indo “chamar o mico”, seus pais, todos os familiares, a micaiada toda. Voltou para casa amarrotado e amargurado. Não deu um pulo sequer no salão, nem viu as meninas em vestidos atrevidos e cheias de liberdade.

O tempo passou. Hoje, Leogivildo carrega o trauma de carnavais que não brincou, das sacanagens que não viu nem aprontou. Ele está fazendo um curso de redação. Sabe qual o tema da semana proposto pelo professor? Logo na abertura da aula, sem saber em quantas feridas estaria pisando, foi logo dizendo que o tema da aula seria o carnaval. Pediu pros alunos fecharem os olhos e vestirem uma fantasia ou desejo; depois, que descrevessem um encontro ou um beijo. Leogivildo ficou bloqueado. Quando saiu do curso, sentia-se como quem havia sido nocauteado com um cruzado no queixo, só chegando em casa às altas horas.

Foi se recuperar três dias depois quando, em conversa com Neguinho – não o da Beija-Flor, mas um jardineiro que prestava serviço em sua residência – este lhe disse que iria trabalhar de garçom num clube durante o carnaval. Os olhos de Leogivildo, que estavam opacos, brilharam, e ele pensou: Taí uma boa ideia. Se não for adotá-la este ano, que fique para o próximo. Trabalhando num clube e servindo bebidas para homens e mulheres, vou acabar vendo coisas que irão me redimir dos traumas de carnavais que não brinquei. Sei que, até em meus pensamentos, minha mãe haverá de ficar horrorizada diante de tanta pouca vergonha, mas eu lhe direi: "Não se aflija, manhê, que tudo isso é apenas carnaval. Quarta-feira haveremos de passar cinzas, entrando de vez na quaresma da vida”.

Etelvaldo Vieira de Melo

 


APRENDIZ DE FEITICEIRA



Mil mãos madrastas enfeitaram-me

vestindo, aprendendo: Meninas-mulher

são lindas se magras, ruins de cama

boas de mesa e ponto-de cruz.


O zelo feminino fez-me estoica,

arrancando-me o gênio de transar.

Tal esmero desbotou-me

ânsias de gozo.


Então, admiro

grávidas santuzzas fugitivas neddas

mortas por armands canios turiddus

no Palácio das Angústias.


Torno-me heroína da novela ,

mas acho/perco o sapatinho

multifaces

no castelo prateado

Del Rey

&

Abrantes.
Graça Rios

SANGRANDO

 


Cláudia Botelho (*)

 

esse teu beijo carmim

carnívora boca

víbora louca

 

ainda vibra

carne viva

 

em mim

 


Cláudia Myriam Amaral Botelho, poeta e médica pneumologista, reside em Belo Horizonte.


VÊNUS DE MIRÓ

 

Joan Miró - O Carnaval de Arlequim

 

Nesta vida, não é novidade morrer.

Por isso, amarrem-na a um cometa,

enquanto - irmã de Penélope -

 

teço a palha

pra fornalha.

 

Afinal, o que fazer

com o vulcão

de

lama lava flama

 

desejante?

Graça Rios


CORAGEM PARA ENCARAR OS PROBLEMAS

 


Algumas histórias são recorrentes nas análises que faço sobre determinadas situações de vida. A que está transcrita abaixo tem a ver com essa mania quase nacional de contemporizar, ‘passar pano’, ‘jogar para debaixo do tapete’, problemas que deveriam ser encarados de frente, com coragem e sem protelação.

No campo político, é exemplo a anistia concedida a criminosos por seus atos durante a ditadura militar. Tal acordo gerou um clima de impunidade, com muitos militares achando que podem fazer o que bem entendem, chegando a extrapolar suas atribuições constitucionais. Daí, passamos a ter no país umas Forças Armadas que não se conformam em jogar dentro das “quatro linhas” – expressão cunhada por Jair Messias Bolsonaro, ele mesmo que se elegeu à custa dessa tal contemporização. Durante seus quatro anos de desgoverno, foram milhares de vezes que Imprensa, Judiciário e Congresso ‘passaram pano’ para seus desmandos. O desdobramento de tudo foi um bando de tresloucados achar que poderia acabar com a ordem democrática, chegando a invadir os prédios dos Três Poderes em Brasília, em atos de vandalismo, estupidez e terrorismo.

No entanto, preciso dizer neste preâmbulo que a história narrada a seguir se aplica a inúmeras situações de vida. Seu nome original é “A Velha Arca de Nuri Bey”, do livro “A História dos Dervixes”, de Idries Shah, publicação da Editora Nova Fronteira, 1976, p. 33-34.

 

"Nuri Bey era um albanês sensato e respeitado, que se casara com uma mulher muito mais moça do que ele.

Certa tarde, quando voltou para casa mais cedo que de costume, um fiel criado se acercou e disse:

- Sua esposa, minha patroa, está procedendo de maneira suspeita. Ela se acha em seu quarto junto a uma enorme arca, que pertenceu à sua avó, suficiente ampla para ali esconder um homem.

- Talvez só contenha roupas e bordados antigos.

- Acho que deve haver muito mais ali, agora. E minha patroa não permite que eu, o mais antigo dos seus criados, veja o que há na arca.

Nuri foi ao quarto da esposa, encontrando-a sentada, com ar desconsolado, junto à enorme caixa de madeira.

-- Quer me mostrar o que há nesta arca? - perguntou Nuri.

- Por causa das suspeitas de um servo, ou porque não confia em mim?

- Não seria mais fácil abri-la, sem se ater a insinuações? - replicou o albanês.

- Não creio que seja possível.

- Está trancada?

- Sim.

- E onde está a chave?

Ela mostrou a chave e disse:

- Despeça o criado e eu a darei.

0 servo foi despedido. A mulher entregou a chave ao marido e se retirou, naturalmente preocupada.

Nuri Bey refletiu bastante e, por fim, mandou chamar quatro de seus jardineiros. Juntos transportaram a arca durante a noite, sem abri-la, para o um recanto distante da fazenda, e ali a enterraram.

E o assunto nunca mais foi mencionado."

Espantosa esta história, não é mesmo? A gente fica se perguntando uma porção de coisas: Deveria o criado falar das suspeitas para Nuri Bey? Havia alguém dentro da arca? Foi sensata a atitude de Nuri Bey de enterrá-la? A partir daí, terá ele confiança em sua esposa?

Transpondo a história para a nossa vida, fica o sentimento de que, muitas vezes, "enterramos" determinados problemas ou dificuldades, achando que se trata da melhor solução. Ficamos calados, abafamos, colocamos "panos quentes" em situações difíceis, diante das quais não sabemos o que fazer. E isso acontece muito em casa, nas relações entre marido e esposa, entre pais e filhos, entre irmãos; acontece também no ambiente de trabalho, entre colegas e nas relações com as chefias; acontece nas escolas, entre professores, funcionários e dentro das salas; acontece no mundo da política, quando os problemas são abafados, 'varridos para debaixo do tapete'. Se tivéssemos o dom da premonição, veríamos coma o problema abafado, enterrado agora, vai explodir amanhã. São as situações mal resolvidas da vida que, mais cedo ou mais tarde, acabam batendo à nossa porta. E tudo porque não tivemos coragem de "abrir a arca", revelar o problema, ele aparece depois muito mais assustador, bem maior e quase impossível de resolver.

Etelvaldo Vieira de Melo


ANJO DE SER HÁ

 
Imagem: Wikipédia

Obtenho efeito grandeza

ou audaz pequenez.

Se invento-me deusa,

 

calço luva

de angústia.

Sei que me Sei.

 

Finjo ser

sinhá / XIX /

Belle Époque,

produzindo minhoca.

 

Se a alma é pequena,

valho a pena

do Minho

ao cal.

Graça Rios