Algumas histórias são recorrentes nas
análises que faço sobre determinadas situações de vida. A que está transcrita
abaixo tem a ver com essa mania quase nacional de contemporizar, ‘passar pano’,
‘jogar para debaixo do tapete’, problemas que deveriam ser encarados de frente,
com coragem e sem protelação.
No campo político, é exemplo a anistia
concedida a criminosos por seus atos durante a ditadura militar. Tal acordo
gerou um clima de impunidade, com muitos militares achando que podem fazer o
que bem entendem, chegando a extrapolar suas atribuições constitucionais. Daí,
passamos a ter no país umas Forças Armadas que não se conformam em jogar dentro
das “quatro linhas” – expressão cunhada por Jair Messias Bolsonaro, ele mesmo
que se elegeu à custa dessa tal contemporização. Durante seus quatro anos de
desgoverno, foram milhares de vezes que Imprensa, Judiciário e Congresso
‘passaram pano’ para seus desmandos. O desdobramento de tudo foi um bando de
tresloucados achar que poderia acabar com a ordem democrática, chegando a
invadir os prédios dos Três Poderes em Brasília, em atos de vandalismo, estupidez
e terrorismo.
No entanto, preciso dizer neste
preâmbulo que a história narrada a seguir se aplica a inúmeras situações de
vida. Seu nome original é “A Velha Arca de Nuri Bey”, do livro “A História dos
Dervixes”, de Idries Shah, publicação da Editora Nova Fronteira, 1976, p.
33-34.
"Nuri Bey era um albanês sensato e
respeitado, que se casara com uma mulher muito mais moça do que ele.
Certa tarde, quando voltou para casa
mais cedo que de costume, um fiel criado se acercou e disse:
- Sua esposa, minha patroa, está
procedendo de maneira suspeita. Ela se acha em seu quarto junto a uma enorme arca,
que pertenceu à sua avó, suficiente ampla para ali esconder um homem.
- Talvez só contenha roupas e bordados
antigos.
- Acho que deve haver muito mais ali, agora.
E minha patroa não permite que eu, o mais antigo dos seus criados, veja o que há
na arca.
Nuri foi ao quarto da esposa,
encontrando-a sentada, com ar desconsolado, junto à enorme caixa de madeira.
-- Quer me mostrar o que há nesta arca? -
perguntou Nuri.
- Por causa das suspeitas de um servo, ou
porque não confia em mim?
- Não seria mais fácil abri-la, sem se
ater a insinuações? - replicou o albanês.
- Não creio que seja possível.
- Está trancada?
- Sim.
- E onde está a chave?
Ela mostrou a chave e disse:
- Despeça o criado e eu a darei.
0 servo foi despedido. A mulher entregou
a chave ao marido e se retirou, naturalmente preocupada.
Nuri Bey refletiu bastante e, por fim,
mandou chamar quatro de seus jardineiros. Juntos transportaram a arca durante a
noite, sem abri-la, para o um recanto distante da fazenda, e ali a enterraram.
E o assunto nunca mais foi
mencionado."
Espantosa esta história, não é mesmo? A
gente fica se perguntando uma porção de coisas: Deveria o criado falar das
suspeitas para Nuri Bey? Havia alguém dentro da arca? Foi sensata a atitude de
Nuri Bey de enterrá-la? A partir daí, terá ele confiança em sua esposa?
Transpondo a história para a nossa vida,
fica o sentimento de que, muitas vezes, "enterramos" determinados
problemas ou dificuldades, achando que se trata da melhor solução. Ficamos
calados, abafamos, colocamos "panos quentes" em situações difíceis,
diante das quais não sabemos o que fazer. E isso acontece muito em casa, nas
relações entre marido e esposa, entre pais e filhos, entre irmãos; acontece
também no ambiente de trabalho, entre colegas e nas relações com as chefias;
acontece nas escolas, entre professores, funcionários e dentro das salas; acontece no mundo da política, quando os problemas são abafados, 'varridos para debaixo do tapete'. Se
tivéssemos o dom da premonição, veríamos coma o problema abafado, enterrado
agora, vai explodir amanhã. São as situações mal resolvidas da vida que, mais
cedo ou mais tarde, acabam batendo à nossa porta. E tudo porque não tivemos
coragem de "abrir a arca", revelar o problema, ele aparece depois
muito mais assustador, bem maior e quase impossível de resolver.
Etelvaldo Vieira de Melo
1 comentários:
Brasil está cheio de Nuri. Um detalhe: vive-se engarrafando problemas e adiando soluções. Diante do quadro trágico da política brasileira, a solução não é mais enterrar a arca. Esta afundou com Noé e, no naufrágio, vieram evangélicos e carismáticos com mel de abelha e água do rio Jordão. Com este quadro, é melhor tomar café de Campos Altos, pois está acima dos tapetes e fora da arca.
Mauro Passos (via WhatsApp)
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