A CANETA BIC FICOU SEM TINTA

 

Para a Professora Elisabeth Tenreiro

 

Quando li a notícia da morte da Professora Elisabeth Tenreiro, esfaqueada por um aluno de 13 anos, pensei: como será o mundo dos nossos bisnetos? Este não é um caso isolado, pois os casos de violência estão aumentando nas escolas.  O quê vai restar da educação? Da educação escolar? A educação se tornou uma camisa de força para os estudantes do Ensino Fundamental e Médio e os professores(as) É preciso recolocar a educação nos trilhos. É preciso dar um basta ao mercado educacional na condução dos projetos. O espectro profissionalizante que treina a juventude para o mercado e para puxar alavancas não é suficiente para formar e humanizar (Charles Chaplin que o diga!). A educação é um ofício (um exercício) de reflexão e ação. Educação implica encontro, relação, articulação, valores. É um caminho para a gente pensar e olhar para o futuro. Um convite à liberdade, criatividade e autonomia. A educação escolar é um espaço para despertar o conhecimento, irradiar o bem e o respeito ao outro, valorizar a criatividade. Não é de qualquer educação que o mundo precisa.

E a valorização do trabalho docente? Que desafios enfrenta o magistério? A vulgarização do ensino tem suas raízes nos poderes públicos. Onde estão os ideais, a utopia, os valores, o prazer de uma educação saudável?  Explico-me: a educação tem união estável com a palavra humanidade. Humanidade está atrelada com a palavra solidariedade; solidariedade vive de amores com a palavra partilha. E a sabedoria? Foi gerada da palavra sabor. A tinta da caneta Bic precisa voltar a mostrar o mundo maravilhoso dessas palavras para os estudantes. Com essa cordilheira de sabedoria, eles poderão escrever e relembrar “da professorinha que ensinou o beabá”. Isso significa mover-se na direção do encontro e cuidado. Aí está o jogo da tinta, dos espaços, do conhecimento e dos sentimentos. O resto é derivação.               

A humanidade carece de educação, afeto e paz. É preciso trocar o verbo profissionalizar pelo verbo humanizar. Um detalhe: o verbo ‘amar’ gerou muitas letras, palavras, sentimentos, lutas, mistérios e melodias.  Por isso, amplia os gestos humanitários. A arte, a literatura, a filosofia, a sociologia e a história precisam voltar a compor o cardápio da educação. De mãos dadas, essas palavras (tão siamesas!) ajudarão a gerar sonhos. Um outro mundo é possível!

(Prof. Mauro Passos)


CINTILAÇÃO

Ruga de figurino

ao viver

intimidade em ruína.

Aparece em público

rapinando

memória de lençol.

 

Travestimento de papel,

tem paixão

pela babel beleza

excessiva e lacunar.

 

E se funde num short violeta borboleta violada

cheia de pontos russo brasileiro barroco mandarim

com as medalhas medonhas de chifres espalhadas.

Graça Rios


SOBRE A FELICIDADE

 


Felicidade e infelicidade dependem da maneira como nos posicionamos diante dos acontecimentos e da própria vida. Você já observou aquela pessoa que, aparentemente, tinha tudo pra ser feliz e, no entanto, se sentia frustrada, infeliz. Também viu aquela outra que tinha tudo para não estar de bem com a vida, tantas eram as dificuldades que enfrentava. Todavia, encontrava motivos para estar feliz.

Explicar tal contradição é até simples. É como se você fosse a um estádio assistir a uma partida de futebol. Sua visão do jogo será determinada pela posição onde você irá ficar: na arquibancada ou cadeira; no fundo, na lateral ou na parte central. De maneira semelhante, sua visão da vida será melhor ou pior dependendo da maneira que enxerga e se coloca diante das coisas que acontecem. Daí, a necessidade de se escolher o melhor ângulo, escolher a melhor posição, para se aproximar o melhor possível do todo.

E aqui cabe a pergunta: está você escolhendo a melhor posição para enxergar os acontecimentos e as pessoas?

"Um pouco além de Ghor havia uma cidade. Todos os que ali viviam eram cegos. Certo dia, surgiu um rei com seu séquito. Trazia seu exército e acampou fora da cidade, no deserto. Viera com ele um elefante de grande porte, usado pelo rei para atacar e para intensificar o temor do povo.

As pessoas do lugar estavam ansiosas para ‘ver' o elefante, e alguns cegos da população cega se precipitaram como loucos procurando encontrá-lo. E assim que o acharam, se puseram a tateá-lo.

Cada um pensou saber algo sobre o animal, porque podia tocar uma parte dele.

Quando retornaram para junto de seus concidadãos, estes logo formaram grupinhos, ávidos de esclarecimento. Todos estavam ansiosos, buscando, equivocadamente, conhecer a verdade dos lábios daqueles que estavam enganados.

Perguntaram sobre a forma e aspecto do elefante, escutando com interesse tudo que lhes era dito.

O homem a quem coubera tocar a orelha do elefante foi indagado sobre a natureza particular do animal. E ele informou:

- É uma coisa grande, rugosa, larga e grossa como um tapete felpudo.

E aquele que apalpara a tromba disse:

- Eu conheço a realidade dos fatos, trata-se de um tubo reto e oco, horrível e destruidor.

Um outro, que tocara as patas do animal, declarou:

- É algo poderoso e firme como uma pilastra.

Cada um tinha conhecido e tocado apenas uma parte das muitas do animal. E cada um o percebera erroneamente. Ninguém conhecia o todo...”

SHAH, Idries. História dos Dervixes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p.27.

Caso estivessem organizados para executar a tarefa e as avaliações fossem somadas, a população teria uma visão mais acertada sobre o que é um elefante. De forma semelhante, a vida merece diferentes olhares. As experiências e a reflexão possibilitam essa multiplicidade de olhares e tornam a vida mais saborosa e plena de sentido.

Albert Einstein disse que “a medida da inteligência é a capacidade de mudar”. Hoje, com a redes sociais, assistimos ao fenômeno dos indivíduos viverem confinados em bolhas, compartilhando as mesmas ideias impostas. A partir daí, cada um julga conhecer e ser dono da verdade, quando, de verdade, nem sabe reconhecer o rabo de um elefante. Coitado!

Etelvaldo Vieira de Melo


ANÔMALA FORMA

 
Imagem: Wikipédia

Desconfie das efemérides.

O jeitinho interrogador

nas fotos de família?

Neca, boneca.

Nada sinistro. Até engraçado,

O fotógrafo lhe tosa todaprosa

seu paradoxo, tonto artifício.

Vista-se de árabe para atravessar

clara fronteira tendo lasca na cara.

Lápis crayon sobre o hábito repetido

na grama na cama mosteiro coletivo.

Impossível flagrar a ladroagem sex

na beira do sofá, viúva negra.

Graça Rios

TUDO JOIA?

Imagem: Internet
 

Na vida tudo deve ser visto, analisado e interpretado de acordo com as circunstâncias. Uma coisa que é considerada absurda em determinada situação, numa outra pode ser aceita como normal e correta. Assim, não é de admirar que, na Antiguidade, julgavam ser a Terra plana. Pensar dessa maneira hoje pode ser visto como sinônimo de estupidez.

Se precisamos contextualizar os gestos e as falas, fico pensando como deve ser difícil o papel de Deus no Juízo Final. Uma mesma atitude dos humanos poderá ser motivo de salvação ou de condenação eterna. Eu que não queria estar no papel de Deus, Ele que, afinal de contas, vai ter que usar do famigerado ditado “dois pesos, duas medidas”, mandando pros quintos do Inferno alguém que foi aparentemente santo e dando a salvação para outro que não prestava.

Mais um exemplo de como pode ser complexo o juízo de valor:

Na Idade Média Baixa era sinônimo de santidade uma pessoa se deixar infectar de piolhos. Quanto mais piolhos ela tinha, mais era tida como santa. Hoje, tal gesto fica na conta da falta de higiene, do desmazelo.

Em época anteriores a Bolsonaro, dificilmente você ouvia  palavras de baixo calão, palavrões, obscenidades. Com Bolsonaro, passaram a ser comuns palavras que deixariam o maior dos indecentes enrubescido.

Falando no dito cujo, se você chegasse perto dele e perguntasse: “Tudo joia, meu mito?”, ele responderia:

- Tudo talquei.

Hoje, se dissesse isso (“Tudo joia, Bolsonaro?”), ele responderia:

- Joia é a p* da sua mãe, seu fdp*. Joia é o car*. Tenho vontade de te arrebentar de por*.

Tudo porque veio à tona uma de suas milhares de falcatruas enquanto presidente da república: a de querer se apoderar de um “presentinho” do ditador da Arábia Saudita, umas joinhas avaliadas em milhões de reais.

Fico imaginando os “presentes” que ele deve ter surrupiado ao longo de seus quatro anos de desgoverno (você faz ideia do que havia naqueles caminhões de mudança, quando ele deixou o Palácio da  Alvorada?). Por isso é que ele ficava sempre rindo (quando não estava soltando palavrão), comendo camarão, passeando de jet ski ou fazendo suas motociatas. Enquanto isso, milhares de pessoas morriam de Covid; outras, se acotovelavam nos açougues para pegar ossos, enquanto vacinas e medicamentos raríssimos e caros eram jogados no lixo. Também havia os bocós de seus adeptos, que ficavam babando de paixão nos cercadinhos, nos templos, nas igrejas e nas bolhas das redes sociais.

- Bolsonaro, não fique apoquentado, amofinado, chorando feito criança mimada  com a perda das joias. Estou sabendo (mas será fake News?) que o presidente do PL – a exemplo do que fez famoso jornalista durante a Ditadura, arrecadando “Ouro para o Bem do Brasil” – está pensando em mobilizar patriotas, conservadores, pessoas de bem (aqueles que colocam Brasil acima de tudo e Deus acima de todos) para que se cotizem, comprando para você um kit de joias similar ao que a Receita lhe confiscou. Viu, joia rara?

Etelvaldo Vieira de Melo

CÍRCULO DE FOGO


Pássaros voam ariscos. Dois elefantes, amarrados, rompem correntes. Astros fogem do ar, ante eruptivas pressão e calor. Tremem crateras submersas, expelindo lava. O magma abre fendas sob manto ígneo do par Herculano, Pompeia. Na caldeira da câmara, hiberna-se dantesco Inferno. Incendeiam-se oceanos de ativo sensual prazer.

Graça Rios


SER FELIZ



Ser feliz é você conhecer e se orgulhar de sua história

É honrar aqueles que lhe deram a vida e o ajudaram a crescer

É descobrir em sua dimensão corpórea caminhos nunca antes sonhados

É buscar o autoconhecimento, fonte de autoaceitação e valorização

É reconhecer sua dignidade de ser humano, de ser gente

 

Felicidade é você ter disposição para a convivência, para relacionar-se com os outros

É descobrir a amizade como um tesouro

É encontrar a felicidade própria na felicidade do outro, pelo amor

É não deixar adormecer seu espírito jovem, a capacidade de lutar por suas fantasias e desejos

 

Ser feliz é você ter sensibilidade para ouvir o mundo  e suas necessidades

É ler e responder de forma consciente aos apelos da vida

É não se deixar triturar pela publicidade e massificação

É não perder a capacidade de se indignar diante das injustiças e exploração dos mais fracos

 

Felicidade é você se libertar das amarras, dos condicionamentos

É aprender a dar respostas próprias, cuidando de sua vida

É descobrir suas potencialidades, cultivando seus talentos

É olhar para além do horizonte, reconhecendo sua dimensão de fé

 

Ser feliz é você misturar tudo isso: o eu, o nós e o mundo

Caminhar seu caminho e estar atento a tudo

Vivendo cada momento de forma intensa e única

Encantado igual a criança que abre os olhos para o deslumbramento da vida. 

Etelvaldo Vieira de Melo

AURORA

 
Imagem: Depositophotos



A primeira vez em que vi tia Tereza,
ela cantava em dueto com Zé Gato
no Teatro Saltimbancos.
(Nem toda a paixão de ambos pôde
tirar o noivo afogado na cisterna,
embriagado de cachaça e lua.).

A segunda vez em que vi tia Tereza,
ela arrastava os tamanquinhos,
açoitando um ínclito motor da casa
para que desse luz ao arraial.
Capim Branco não tinha clínico.
Então, trazia os pais doentes
de jardineira para a Capital.

Chico Aquilo Roxo propôs-lhe casamento,
enquanto lavava copos no bar de meu avô.
A moça apenas o apartou
com tal e qual beiço enojado.

A terceira vez em que vi tia Tereza,
ela usava grinalda de angélicas tão
jovens ainda, sobre marmórea mesa.
Depois da missa, felinos saltaram o muro
do cemitério, mia miando jubilosos.
Graça Rios

OLHANDO PARA ALÉM DO HORIZONTE


 

Numa cidade do interior, um juiz de Direito, tomado de profundo tédio existencial, propôs aos moradores da localidade o seguinte desafio:

- Quero provar para vocês que Deus não existe. Quem quiser debater comigo, que se atreva.

Os moradores, tomados de espanto, olharam uns para os outros. E um pesado silêncio caiu sobre eles. Até que alguém, logo identificado com Chico da Fiinha, falou:

- Pois não, seu doutor. Com sua licença, aceito o desafio.

Cuidaram de acertar os detalhes do embate, dia, horário, local, tinha que ser lugar bem espaçoso para caber tanta gente, etecétera e tal.

A curiosidade começou a tomar conta do povo, todos queriam saber quem haveria de ganhar o desafio, até começaram a fazer apostas. O Chico, coitado, tido e havido por todos como verdadeiro bocó, perdia feio, coisa de 20 por 1.

E chegou o esperado dia. O salão cheio. E o juiz, bem vestido, solene e bem-falante, propôs, arborizou, podou, floriu, dissertou, dissecou, amassou, enrolou, embrulhou, empacotou, argumentou e provou por A mais B, pela prova dos nove, tintim por tintim, que Deus não existia, que era invenção do homem, fantasia, projeção, desejo frustrado, compensação, muleta, amuleto e outras coisas rebuscadas que não consegui traduzir. O povaréu, boquiaberto, balançava a cabeça, concordava, “... e não é que o seu juiz tem mesmo razão?”, tinha pena do Chico coitado, “como vai se defender?”, “tá é perdido”. E o Chico, enquanto o juiz desfilava e destilava sua jactância, o Chico cuidava de descascar uma laranja!

Depois de falar e falar, o juiz se deu por satisfeito.

- E agora, senhoras e senhores, cavalheiros e damas, cedo a palavra ao senhor Francisco, para que defenda a tese de que Deus existe. Alea jacta est!

Ao que muitos, em tom de deboche, gritaram:

- Segura esta, Chico!

Outros falaram com incentivo:

- Vai que é sua, Chico!

E Chico falou assim:

- Seu juiz, para provar pro senhor que Deus existe, é preciso que o senhor me diga, primeiro, qual o gosto desta laranja que acabo de descascar. Ela é doce ou azeda?

- Como assim? – espantou-se o juiz, sem entender bem a pergunta. - O senhor quer que eu diga o sabor da laranja?

- Justamente, é isso mesmo.

- Como eu vou saber sem experimentar? Deixe-me experimentar, que eu posso dizer para o senhor se ela é doce ou azeda.

- A mesma coisa é com Deus, seu juiz. O senhor não pode, não é capaz de dizer o sabor da laranja só de olhar. Assim é com Deus. Só podemos falar de Deus quando experimentamos Deus em nossas vidas.

Assim, desta maneira, o caipira acabou derrotando o juiz. E esse fato se tornou tão famoso que, desde então, pais o recontam para  os filhos. E foi dessa maneira que ele chegou ao meu conhecimento.

Pois bem. Falar e viver. Falar de Deus é muito bom, é muito importante. Neste mundo, de tanta notícia ruim, tanta coisa feia, violência, miséria, injustiça, exploração, é bom ouvir falar daquele que representa Amor, Verdade, Liberdade, Justiça. Acontece que não basta falar, ou não é o mais importante falar. Desconfio de que muitos falam, mas são poucos os que vivem Deus. Nos fins de semana, nas igrejas, templos, assembleias, as pessoas rezam, oram, falam muito de Deus, desculpe a expressão, “é Deus pra cá, é Deus pra lá”, enquanto que, durante a semana, parece que Deus some, desaparece da vida das pessoas. Se as pessoas que falam de Deus vivessem realmente Deus em suas vidas, o mundo seria bem melhor do que é. O mundo está desse jeito aí porque existe muita gente mentirosa, fingida, que fala uma coisa e vive outra bem diferente.

Até pouco tempo atrás, tivemos um presidente que apregoava “Deus acima de tudo”, ao mesmo tempo em que debochava das milhares de pessoas morrendo, vítimas da Covid. Esse mesmo incentivava o uso de arma de fogo, enquanto se indispunha contra mulheres, pobres e minorias. No Brasil, tivemos padres, pastores e pessoas que se dizem cristãs compactuando com essas ideias demoníacas, propalando o ódio e a mentira, em nome de Jesus Cristo.

Assim é que, tenho para mim, viver Deus é muito mais importante que falar de Deus. Além disso, a linguagem da vida tem muito mais riqueza e sabor que a complexa linguagem das palavras.

Etelvaldo Vieira de Melo

A CAMINHO DO DIVÃ

Imagem: Dreamstime


 

Vestido de bolas, botas, bovarismo. Paixão do pormenor.

Nacionalidade brasileira, lendo Baudelaire traduzido para o espanhol

prefaciado por alemão em ótimo inglês, ao cruzar Pequim. Coquetterie.

O que se há de fazer por melhorar o visual e fechar a ferida narcísica?

Sapiens mulier ensaia um sorriso pro alto, tipo anjinho barroco.

(Assim meia Athaíde meia Górgona arrepiando os cachos.).

Abre o espelhinho de observar hímen, desfaz com corretivo pequena ruga de expressão.

Elle vit dans le maquillage.

Wie? As? Hoe? Comment?

Como existir sem Lacan sem pathos sem ecstasy?

Graça Rios