O brasileiro, via de regra, enxerga mais
com o tato do que com os olhos. “Deixa eu ver isso aí”, diz o fulano,
estendendo a mão para pegar o objeto.
Se com a visão acontece assim, por via
de consequência, o que podemos dizer com relação às emoções, especialmente o
sentir?
A palavra “circo” anda perdendo seu
sentido originário e passou a ter um sentido mais figurativo. “Aquele sujeito
está armando um circo” quer dizer que ele vai aprontar qualquer coisa, comprar
uma briga, por exemplo. “Circo” deixa de ter aquele significado de uma trupe de
artistas, malabaristas, trapezistas, palhaços, que faz suas apresentações sob
uma lona armada.
Tempos e tempos atrás - quer dizer: faz
muito tempo – caiu sobre minha cidade natal, assim feito um meteorito, um
desses circos mambembes que rodam pelas pequenas cidades do interior. A
curiosidade para o que vinha de fora foi natural, todos ficaram sabendo que um
circo estava se instalando lá na rua do Lava-Pés. Tratava-se de um circo bem
ruinzinho mesmo, não dispunha de atrações animais, nem apresentava o sempre
bem-vindo e assustador “Globo da Morte”.
Para a população, restava fazer o quê?
Todo mundo disponível foi assistir às apresentações. Em uma semana, tudo estava
resolvido, mas o pessoal do circo queria fazer o que a gente fazia quando
criança ao chupar uma laranja: queria ir até o bagaço. Enquanto houvesse alguém
com disposição (e dinheiro) para repetir a dose, eles não iriam embora!
Foi nesse ‘fim de curso’ que cheguei à
cidade e resolvi, certa noite, ir ao circo. Fiquei muito tempo fora das
dependências, observando o movimento que, por ser final de semana, era até
razoável. O locutor, usando de um alto-falante dependurado lá em cima do
mastro, chamava o povo para o espetáculo. Percebi que, enquanto houvesse alguém
na dúvida shakespeareana de ir-ou-não-ir, o pessoal do circo não começaria o
espetáculo. Por isso, tratei logo de comprar o ingresso e entrar.
Lá dentro, tratei de subir com cuidado
as arquibancadas mal amarradas, já que, em dias anteriores, alguém sentara numa
ponta da tábua e havia derrubado um que estava sentado do outro lado. Achei um
lugar razoável, com uma boa visão do palco, uma vez que haveria também a
apresentação de uma peça teatral (“E o Céu Uniu Dois Corações”). Forrei
com um lenço o local onde ia me assentar, olhei para os presentes e para a lona
toda remendada. Por seus furos, vi a Lua e as estrelas no céu. E fiquei
esperando.
E começou o espetáculo. Desfilaram pelo
picadeiro malabaristas, trapezistas e palhaços. Após cada apresentação, os
artistas se curvavam, aguardando os aplausos. Tive que me desdobrar, deixando
as mãos doloridas, porque as pessoas reagiam muito mal, quase ninguém aplaudia.
Vi que a situação estava ficando dramática, os artistas estavam ficando
desanimados!
De repente, aconteceu o inusitado: as
luzes do circo apagaram. As pessoas soltaram um Ohhh... de espanto, que foi
silenciado quando um gerador foi posto a funcionar. Com o circo às escuras,
somente o palco ficou iluminado.
A partir daí, o comportamento da plateia
mudou completamente. O desânimo evaporou, tomou doril, só ficando o entusiasmo
e a alegria. Tudo era motivo de aplauso, até as piadas sem graça dos palhaços
provocavam gargalhadas.
Confesso que, na hora, fiquei sem
entender. Depois é que me ocorreu essa descoberta fenomenal: o brasileiro,
melhor dizendo, o mineiro, ou – para ser mais preciso – as pessoas lá da minha
terra natal têm seus sentimentos melhor aflorados quando se encontram no
escuro! Talvez isso também explique o sucesso do único cinema da cidade, o Cine
Teatro Nossa Senhora Aparecida, do Antônio Procópio, apesar do desconforto das
poltronas de madeira e do assédio sem trégua de vorazes pulgas!
Etelvaldo Vieira de
Melo
PS: Este texto, especialmente a parte
onde falo com carinho das pulgas do cinema do Antônio Procópio, motivou uma
crítica feroz de certa conterrânea. Ela disse que, além de mentiroso, sou
péssimo escritor, sem nenhuma originalidade. Isso me deixou deveras magoado e,
não fosse o aconselhamento terapêutico da sobrinha e psicóloga Adriana (Dri),
meu trauma iria perdurar para sempre, com o risco de nunca mais conseguir
colocar uma caneta na mão. Cruz credo!