SER OU TER, EIS A VERDADEIRA QUESTÃO


 

Quando caminhava na linha da pobreza, costumava proclamar aos sete ventos que o importante na vida é o ser, não o ter. Quando era pobre nem tanto, começou a ter suas dúvidas. Pensava assim: se a felicidade não é um estado definitivo, mas algo constituído de momentos, é bem provável que o ter pode, sim, ser importante, ou seja, o ter pode ter valor, ser um bem. Quando a China passou a disponibilizar, através das chamadas marketplaces, bens de consumo a preços acessíveis, chegou à conclusão acabada de que ser e ter caminham lado a lado na obtenção dos chamados momentos felizes, ambos com seu grau de importância, nunca um podendo se sobrepor ao outro. Como chegou a tal veredicto? Observando que o Humanismo é uma ideologia inerente ao ser humano e o Capitalismo é o sistema econômico que conseguiu sobreviver ao longo dos séculos. O Humanismo proclama que o Ser é a base da Felicidade, enquanto o Capitalismo diz que é o Ter.

Nosso amigo em questão buscou um arranjo existencial entre esses aparentes opostos, estabelecendo para si mesmo este princípio:

- Eu serei na medida em que tiver, assim como terei na medida em que eu for. Se não sou, não poderei ter; se não tenho, não poderei ser. Porque sem ser não há ter, assim como sem ter não há ser. Por via de consequência, terei sendo, do mesmo modo que serei tendo.

Acha que esse amigo está querendo “dourar a pílula” de sua compulsão para o consumismo? Que seja. Mas você precisa ter certeza de uma coisa: ele estava se sentindo muito bem entre uma comprinha e outra, tomado de discreta alegria pela vida ter lhe proporcionado as possibilidades de ter e de ser.

Não obstante o promissor andar da carruagem, cabe não esquecer que vivemos no Brasil, e o Brasil é aquele país das possibilidades mais absurdas e inusitadas, conforme podemos inferir da fala de Marcelo Claure, presidente do conselho consultivo da Shein para a América Latina, ao dizer que “o Brasil é um país complicado em termos de estruturas tributária, logística e regulatória”.

Se um alto executivo, acostumado com todas as tramoias possíveis e imagináveis, pensa assim, imagina o que pode suceder com um vulgar brasileiro.

Tempos atrás, estando esse nosso amigo fazendo compras numa loja de produtos para casa, o balconista lhe fez esta pergunta:

- Quer com nota fiscal ou sem nota?

Pego de surpresa, retrucou:

- O que você acha melhor, tendo em vista o bem de nosso Brasil varonil?

- Penso que é sem nota fiscal – respondeu o indivíduo, sem pestanejar. – Assim, você não estará segurando a escada para as roubalheiras nas altas esferas.

Quando o atual governo quis fazer média com o dito comércio nacional e com os governos estaduais, ao mesmo tempo em que amealhava algo para seu próprio bolso, que ninguém é tão altruísta assim, instituiu um programa chamado “Remessa Conforme”, a fim de regular as compras feitas por meio das plataformas voltadas para produtos importados.

A regra instituída já veio com uma pegadinha: compras até US$50 estão isentas de imposto, sendo aplicados tão somente 17% de ICMS sobre o valor do produto e seu frete; as compras acima de US$50 serão taxadas com um imposto de 60% mais o ICMS de 17%, chegando ao total de 92% (aí está a pegadinha do juro sobre juro).

- Está bem, eu engulo essa aritmética, já que não pretendo fazer compras que ultrapassem os US50 – falou o amigo em questão para seus botões. – Vamos às compras, já que meu Ter está ficando defasado em relação ao meu Ser.

Assim que a Remessa Conforme começou a vigorar em agosto/2023, foi ele fazer uma singela compra de um desumidificador de aparelho auditivo na sua plataforma de compras favorita. O produto custou no total a importância de R$67,81. Poucas semanas depois, foi notificado de que o aparelho havia ficado retido em Curitiba por causa de tributos a serem pagos. Os Correios recomendavam gerar o boleto para pagamento, algo mais do que 90 reais. Indignado, o já não tão amigo se recusou a pagar, enviando os dados comprobatórios do preço da mercadoria. Dias depois, a Receita repassou os valores “corrigidos”:

- Imposto de Importação: R$40,68

- ICMS:                             R$38,42

- Multa:                             R$  6,68

- TOTAL:                           R$85,88

O já inimigo, analisando os valores cobrados, chegou às conclusões:

- A Receita Federal reconheceu o valor da compra como sendo de R$67,81, uma vez que cobrou o imposto de R$40,68 (60% do total pago), valor abaixo de US$50 – o que seria isento de tributação;

- Cobrou, também, fora de propósito – por reclamar um direito? -, uma multa R$6,78 (10% de R$67,81);

- Sendo mais realista do que o rei, anexou uma taxa de R$38,42 ao valor da compra, a título de ICMS.

O agora inimigo visceral da Receita Federal, do Ministério da Fazenda e afins, tenta entender o porquê da cobrança do imposto e do ICMS. Ele se perdeu em cálculos, tentando encontrar uma resposta. Acompanhe seu raciocínio:

- Se a taxa de ICMS fosse de 17% sobre o valor do produto, teríamos: 17% de 67,81 = R$11,57 (valor que estaria atendendo às normas baixadas pela Receita e que teria aceitação do querelante);

- Se a taxa de ICMS fosse de 17% sobre o valor do produto + imposto de importação, teríamos (67,81 + 40,68) X 17% = R$21,84;

- Se a taxa de ICMS fosse de 17% sobre o valor do produto + imposto de importação + multa, teríamos: (67,81,81 + 40,68 + 6,78) X 17% = R$23,00.

Em todas as situações, a taxa de ICMS nunca chegaria ao valor de R$38,42.

Sendo assim, ou seja, considerando que as cobranças do imposto, da multa e do ICMS se afiguram ilegais, irracionais e imorais (não estou falando de você não,  Alexandre), meu amigo desiste do aparelho desumidificador. Diz que pode ser doado para leilão dos BBB (Bens para o Bem do Brasil). Como o aparelho auditivo que dispõe corre risco de estragar por causa da umidade, o amigo pensa encaminhá-lo para esse tal leilão. Aceita, dona Receita?

Etelvaldo Vieira de Melo  

0 comentários:

Postar um comentário