O BEIJO DE JUDAS E O LUGAR DA UTOPIA

 

A gente quer viver todo respeito

A gente quer viver uma nação

A gente quer é ser um cidadão.

(Gonzaguinha)

 

As religiões têm expressões de beleza como também falam de utopia, esperança, felicidade, solidariedade. Estamos sempre em busca da felicidade. Existe uma relação histórico-teológica entre a beleza e o sagrado, como está no livro da Sabedoria: “A beleza das criaturas conduz por analogia a contemplar o seu Criador” (13, 5).  Hoje, a velocidade, a pressa, o imediatismo, a eficácia, a produtividade liquidam o cuidado, o afeto. O determinante é o consumo. Caminhar à toa, ouvir uma música ou cuidar de um jardim são crimes de “lesa-agenda”. E, assim, vamos perdendo a sensibilidade, o desejo de mudança, os gestos de gratuidade. E, assim, vamos perdendo a capacidade de contemplação, admiração e encontros. Nesse caminho, qual o lugar da utopia (a solidariedade, os sonhos...)? Em tempos de crise, imaginamos uma realidade diferente: uma cidade harmoniosa em oposição ao caos urbano, a paz em oposição à guerra, a não-violência em oposição à violência, uma religião conectada com a vida, a educação como conscientização e formação humana etc. Esse caminho transformador e utópico pretende resistir à força mantenedora do status quo. Como lembra o poeta Manoel de Barros: “A expressão reta não sonha”. A utopia é uma forma de criticar a realidade para não se permanecer passivo e indiferente diante de uma realidade desumana e de uma estrutura desumanizadora. A utopia é um caminho de busca que propõe outras organizações, outras relações e outras formas de vida. O que a utopia propõe, portanto, é um impulso da ação para o bem de todos. Enfim, a construção da humanidade em todos os aspectos. Confiança e esperança são aprendizes do sonho, da consciência e lucidez. O ser humano é um animal que crê, conquista, sonha e reinventa. O ser humano quer a paz. E paz não se delega, é construção. É respeitar o outro: o pobre, o sem-terra, o morador de rua, o desempregado, o idoso, o mendigo. Como lembra o poeta Pablo Neruda: “É terrível, e ao mesmo tempo comovedor, ser por um instante, o portador da esperança dos oprimidos”. Com tantos contrastes, as religiões têm um papel efetivo de transformação social – plantar a paz, contribuir para dias melhores, principalmente para as camadas populares. O cristianismo deve se mobilizar em forma de ‘Boa Nova’ para responder às necessidades dos povos. Os aplausos ao governador do Rio de Janeiro, em uma Paróquia Católica, fizeram com que ele avaliasse a barbárie? Ou foi uma nova versão do beijo de Judas? Diante do ocorrido, o desafio é pensar, mudar, tornar a pensar, para mudar mais uma vez. A não-violência é o caminho para a paz. Neste contexto, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ficou fora do contexto (se fez silêncio). A perda da tradição é sinal de nosso tempo como também a falência das instituições. Construir a paz é acolher (lambuzar-se no outro). É comprometer-se com as causas do povo. Sem humanidade o cristianismo se torna um adorno e perde seu projeto – o amor a Deus e ao próximo. Há muitas religiões, mas só um Evangelho e só um Deus. Se em outras religiões, as pessoas buscam a Deus, no cristianismo é Deus que vai em busca das pessoas: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10). Essa é uma questão norteadora – avivar a utopia do Evangelho para completar a criação da humanidade.

(Mauro Passos)


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