Estou
vivenciando agora, neste instante, o momento que antecede a um jogo de futebol,
onde dois times decidem o título de Campeão das Américas. Lá fora, em todas as
direções, pipocam, estouram, arrebentam foguetes. Em meio aos estouros, ouço
gritos de guerra, como se toda a população da cidade fosse marchar de encontro
a um inimigo feroz e perigoso. Não sei se vou ter o direito de assistir ao jogo
pela TV, já que minha esposa acredita que eu iria torcer pelos adversários,
embora eu jure - com os pés juntos, a mão direita estendida e espalmada, a esquerda voltada para as costas - que não, que serei solidário para com ela e
o time da cidade. Ela simplesmente não acredita nas minhas palavras, já que,
numa partida anterior, me viu dando chutes, enquanto assistia à transmissão, e
esses chutes aconteciam justamente nas horas em que o adversário ia ao ataque.
Está certo que cometi esse ato falho, ao mesmo tempo em que me dou conta de que
coração e razão nem sempre andam lado a lado. Pelo que estou vendo, não vou
poder assistir ao jogo, embora também não possa ir dormir, por causas dos
foguetes e dos gritos. Falando nisso, ainda bem que estou em casa, protegido
por quatro paredes, porque não existe algo que me assuste mais do que trovões e
estouros de foguetes. Sobre os trovões, foram muitas e muitas vezes que fizeram
com que me escondesse debaixo da cama. Os traumas quanto aos foguetes vieram da
infância quando, acompanhando as procissões lá na minha pequena terra natal, eles
eram arrebentados em profusão. Ao escutar um sendo atirado, só me tranquilizava
quando olhava para o céu e via seu estouro uma, duas e três vezes. Se o foguete
era de vara, meu medo ficava maior: e se aquilo, ao invés de subir, viesse
correndo atrás de mim? O tempo passou, mas o medo persiste. Entretanto, eu me
dou conta de não ser o único a ter tanto medo. Estou pensando nos cachorros
que, tendo uma audição muito aguçada, devem estar sofrendo como nunca neste
momento. Acho estranho a Sociedade Protetora dos Animais não ter se
manifestado, pedindo uma proibição ou, pelo menos, uma limitação quanto à
queima de fogos de artifício no dia de hoje. Agora mesmo, entre um barulho e
outro, ouço um cachorro vira-lata latindo em desespero. Ninguém fez nada para
aliviar seu sofrimento. Por que o Sr. Prefeito não tomou a providência de
remover aqueles cães de rua, aqueles abandonados pela sorte, levando-os para um
local distante por dois dias? Eu imagino que aqueles adotados por madames ou
assumidos como filhos em muitas casas irão dispor da proteção de um fone ou de
uma sala com isolamento acústico a lhes amenizar o desconforto diante de tanto
barulho. Mas e os vira-latas, os renegados da sorte, os párias do mundo-cão,
aqueles que vivem, literalmente, uma “vida de cachorro”, como irão sobreviver? Enquanto
os cães uivam em desespero, cá estou impedido de ir para a cama e dormir o sonho
dos anjos, sentindo-me coagido a ocupar meus pensamentos com os temas de
futebol e reza. O futebol me faz lembrar daquela máxima do jogador que, de tão
completo, bate o escanteio e sobe pra cabecear. Associando essa ideia com a da
reza, estou me lembrando também daquele vigário que, a seu modo, cobrava o
escanteio e subia pra cabecear. Assim ele fazia na sua paróquia, tocando o
sino, espocando foguetes e celebrando a reza. Certo dia, de tão afoito, espocou
o sino, tocou o foguete e estourou um dedo (o que me faz lembrar aquela piada
antiga, mas boa – no jargão do locutor de um programa humorístico do rádio: a
daquele sujeito que morava no 10º andar de um edifício. Toda noite, chegando ao
apartamento, ele cuspia pela janela e se jogava na cama, até a vez que em que,
distraído, cuspiu na cama e se jogou pela janela). Coitado (do padre, e não do
personagem da piada), ele que respondia por uma paróquia pobre, fato que o
compelia a sair tal qual bufarinheiro (vendedor de bugigangas ou mascate),
visitando distritos e cidades pequenas, onde não havia o conforto espiritual de
um pastor. Lá, ele se esbaldava, amealhando alguns trocados, celebrando missas
no atacado e no varejo, colocando em dia as obrigações dos moradores com seus
parentes defuntos. Numa dessas visitas pastorais e pecuniárias, participou de
um almoço, onde mostrou outra de suas habilidades: a de comer demais. Estavam
oito pessoas sentadas à mesa e a cozinheira começou a servir a refeição,
colocando uma travessa de estrogonofe em frente ao padre, que cuidou de colocar
em seu prato quase todo o conteúdo, aparentemente sem perceber que aquela
travessa se destinava a todos os presentes.
“Muito obrigado – disse ele, - mas isso é muito para mim. Peço desculpas
por deixar um pouco na travessa.” Olhando para o Monte Everest que havia se
formado à sua frente, deu um sorriso de satisfação, deixando os demais
presentes a ver navios. Certa vez, estive em sua casa e confirmei um pouco de
sua sovinice: ele trancava a geladeira com cadeado, certamente temendo que
alguém se aventurasse a lhe roubar os petiscos. Pensando bem, não me atrevo a
dizer que ele, apesar de padre, cometesse o pecado capital da gula. Por que não
considerar a hipótese de que estivesse, naquelas circunstâncias especiais,
fazendo como um camelo a se abastecer para a travessia de um deserto, ou seja,
para viver momentos de penúria em que o pão iria lhe faltar? E, mesmo que cometesse o pecadilho da gula, não
posso deixar sem registro ter sido ele um homem com o coração do tamanho do mundo. Bom,
chega de conversa, que, por hoje, é só. Vou providenciar um tampão para meus
ouvidos e tratar de dormir, porque amanhã é um novo dia e tenho muitas coisas
para fazer.
PS: Durante a madrugada e no dia seguinte, os foguetes
continuaram estourando desesperadamente (para a torcida rival e os cachorros). Quando
fui até uma padaria perto de casa, a fim de comprar um molho para uma macarronada,
o gerente disse: “Está bem que a torcida manifeste alegria pelo título, até fiz
algumas brincadeiras. Agora, entretanto, os torcedores estão passando dos
limites.” Ao que outro presente observou, e eu transcrevo, só porque estou empenhado no
registro da sabedoria popular: “Bem diz o ditado ‘quem nunca comeu melado,
quando come, se lambuza’.”
Etelvaldo Vieira de Melo
6 comentários:
Primeiramente, parabéns pela crônica ,bem humorada como sempre. Parece que o brilhante cronista é cruzeirense.... O que aconteceu com os pobres cães quando a raposa e seus adeptos pipocaram tantos foguetes por todos os cantos de bh? Afinal, a saga atleticana é digna de respeito e aplausos.Eu acreditava.
Pois é, amigo cronista,os vira-latas iriam sofrer da mesma forma se o galo tivesse perdido.Mas o caro amigo nem pensaria neles, pois estaria triunfante, de bem com o coração e a razão, não é? Quanto a ser vira-folha de dedos cruzados, parece-me mais medo da mulher que sente agora o gostinho do melado.
Normal esse tanto de foguetes e gritos... Depois de 104 anos sem nenhum título importante eles tinham que comemorar! Afinal se continuarem assim o próximo título importante vai ser comemorado somente em 2117!
Eduardo Yamassaka
As Marias-vagalumes estão piscapiscando como nunca, pois ganharam do mistão do galo. Caro Eduardo, vc se esqueceu que fomos o primeiro campeão brasileiro, em 1971? Vc está ruim de memória e de matemática...O melhor carro é o do ano, não é? Poiis é. Galo é campeão das Américas em 2013 e bi do mineiro k k k k .
Engraçadíssima. Então você corria com medo da vara( de foguete)? Eu também. Apoio um acordo com a Associação Protetora dos Animais para a proteção dos pobres bichanos. E também dos torcedores contrários. Todo torcedor é exagerado. Padre glutão era uma unanimidade. Que ideia é esta do carro do ano? Todo ano muda de carro... e além do mais tem gente que paga uma fortuna por carro de de 1900 e cafunga...Falando em melado, onde compro um, honesto?
Pois prefiro nove carros velhos e um carro novo doque um carro novo e um velho! Em 104 anos vocês conseguiram dois titulos importantes!
''Se atleticano entendesse de futebol não torceria para o atlético''
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