50ª Edição do Blog / 50 crônicas
As duas mulheres conversavam acaloradamente sobre o capítulo da novela do dia anterior. Como se fosse possível, o calor da tarde tornava a discussão ainda mais acalorada, com os tons de voz ainda mais exaltados.
- Você viu o que Bruno andou aprontando com a
Laurinha? - perguntou uma delas, com os
olhos arregalados de espanto.
Eu estava ouvindo a conversa, sentado num banco atrás do
lotação. Naquela ocasião, meus ouvidos estavam bem afiados e eu estava
entendendo direitinho tudo o que diziam as duas distintas. Entretanto,
sentia-me dividido entre a curiosidade de saber das fofocas televisivas e algo
que estava me incomodando.
Acredito que a novela faz sucesso em nosso país porque
consegue reunir numa história aqueles ingredientes que o povo gosta: muita
ruindade, safadeza, fofoca, sexo, inveja, exploração, traição, mentira e tudo
mais de ruim que alguém pode imaginar. O autor junta esses ingredientes num
liquidificador com uma pitadinha de bondade, divide entre os personagens e,
caso acerte no tempero, consegue um sucesso que se prolonga por um ano.
Andei pesquisando sobre o assunto. Aqui estão
relacionados alguns exemplos de A a Z, tirados de comentários sobre uma
determinada novela: Aborto, Brigas, Ciúmes, Divórcio, Estupro, Fofocas,
Gravidez, Homicídio, Inveja, Judiação, Lágrimas, Mentiras, Negociata, Ódio, Prostituição,
Quadrilha, Raiva, Sadismo, Traição, Ultraje, Violência, Xilique (chilique),
Zombaria, Vingança. As avaliações eram assim: “Eu queria que W... fosse matada pela L... com uma ceringa”; “Eu queria
que a W... morresse em um grave assidente de carro”; “Amo esta novela e muito
real presisamos nos concientisar”; “Eu adoraria se passace de novo eu
assistiria com todo prazer”. E mais não vou transcrever, senão acabo com o
português ainda mais arrebentado.
Com o sucesso das novelas, depreendo que coisa boa é
coisa ruim. Na ficção, quando tudo se ajeita, parece que perde a graça, cai na
monotonia. O inferno pode até ser um lugar horrível, mas é o céu que parece ser
chato. Infelizmente, ruindade não é privilégio exclusivo de novelas: os
telejornais e os impressos estão abarrotados de notícias escabrosas,
indecentes. É assim que eles se vendem, parece que as pessoas gostam de rir da
desgraça alheia, especialmente quando se trata de pessoa pobre e de pouca
instrução. Em geral, o povo é também muito preconceituoso.
Eu estava no lotação carregando, como quase sempre, um
embrulho na sacola. Tinha tido a brilhante ideia de comprar um quilo de
camarão. O vendedor até se deu ao trabalho de me explicar direitinho como o
dito cujo deveria ser preparado. Apesar do cuidado com que foi embalado, logo
percebi que a embalagem estava vazando. Foi no caixa de uma drogaria. O ar lá
dentro era condicionado, eu estava logo atrás de uma mulher para fazer o
pagamento da compra de um medicamento. Quando senti aquele cheiro estranho,
olhei um pouco enraivecido para a mulher, chegando a pensar com maldade que ela
não tinha cuidado com sua higiene pessoal. Mas logo eu me arrependi de minha
presunção, ao ver que o embrulho de camarão estava molhado e era de lá que
estava exalando aquele aroma. Tratei de me mandar o mais rápido possível para
casa, eu que –normalmente – gosto de dar uma circulada pelas lojas, em busca de
novidades, especialmente as eletrônicas.
Estava, pois, sentando em um banco atrás daquelas
mulheres que trocavam figurinhas sobre a novela. De repente, uma delas vira
para a outra e diz:
- Você não está sentindo um mau cheiro horrível?!
- Estou – respondeu a colega em tom baixo. – E cutucando
a outra com o cotovelo: - É esse sujeito perto de nós que fede desse jeito.
Ali, em pé, estava um homem moreno, trajando uma roupa
bem simples. Ele estava pagando por um crime que não cometeu. Indignado, não me
contive e, mesmo estando vermelho de vergonha, falei para as duas companheiras,
em tom discreto para que o sujeito não se desse conta:
- Peço-lhes desculpas, mas esse mau cheiro vem de um
pescado que levo para cada, mas que, infelizmente, soltou-se do embrulho.
As duas resmungaram qualquer coisa e depois se calaram.
Chegando em casa, tratei de preparar o camarão, mesmo
porque eu também não estava tolerando seu cheiro e o dissabor que me havia provocado.
Escaldei-o tanto em água fervente que, quando fui fritá-lo, havia se
transformado em uma bolotinha de nada. Conclusão da história: ninguém se
atreveu a comer aquela coisa.
PS:
Embora esteja adaptada aos tempos modernos e transcrita na primeira pessoa, não
tenho nada a ver com esta história do camarão, que aconteceu em tempo
indefinido. Vem daí o ditado “Quem vê
cara não vê camarão”. Quando ele chegou aos ouvidos de alguém que nunca
tivera conhecimento desse crustáceo da ordem dos decápodes, tal pessoa cometeu
a corruptela (Uma das 100 Palavras Exóticas Que Você Um Dia Deverá
Pronunciar) de trocá-lo por “coração”, mostrando por bem como não
devemos julgar os outros pela aparência.
Etelvaldo Vieira de
Melo
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