Tenho
para mim mesmo, com a desconfiança de estar redondamente enganado, que o
fenômeno da autoajuda começou com aquele seriado da TV chamado Kung Fu,
produzido entre 1972 e 1975. O personagem Kwai Chang Caine, interpretado por
David Carradine, era uma espécie de andarilho que enfrentava as situações mais
instigantes e perigosas. No jargão popular, no momento em que “a porca torcia o
rabo”, ele se lembrava de um mestre oriental, completamente cego, Mestre Pô, a
chamá-lo de Gafanhoto e a incutir-lhe vários ensinamentos como: “A melhor maneira de aceitar a perda de um
ser amado é saber que, quando o amor é de verdade, nada é perdido”; “Gafanhoto, a alma não concebe o tempo.
Apenas registra o conhecimento.” Para os desavisados, Quentin Tarantino faz
uma homenagem para a série em seu filme Kill Bill, com David Carradine sendo
ator de destaque. Para os cinéfilos, tem mais: Jodie Foster, com apenas 11
anos, interpretou Alethea na primeira temporada; Harrison Ford participou da
segunda temporada, em 1974.
Os primeiros autores
declarados de autoajuda beberam na fonte desse western-filosófico; depois, cada
qual tratou de construir seu próprio poço artesiano.
Podemos perguntar: a autoajuda
não fala do óbvio? (“A força do escorpião
não está no seu tamanho, mas no seu veneno”). Sim, mas é preciso observar
que, em muitas circunstâncias, o óbvio aparenta ser obscuro (Caetano Veloso: o
que se revela “pode ter sempre estado
oculto, quando terá sido o óbvio” – Um Índio). Diante de dificuldades,
perdemos nossas referências e ansiamos por algo que acalme nossos temores,
alguém que nos dê a mão. É quando se aproximam as palavras bem intencionadas e
aquelas ditas por aproveitadores e mercenários. Mas a própria religião não é
assim? Existem aqueles que são sinceros em suas pregações, como existem os que
exploram a boa fé e a ingenuidade do povo. Embora, muitas vezes, ache-os
engraçados e infantis (“Quando você imita
outra pessoa, está deixando de ser você mesmo”), eu não ridicularizo os
autores de autoajuda. Só espero que sejam sinceros, honestos naquilo que
escrevem.
Quanto ao Mestre Pô, para
mim, sua lembrança está associada à de outro professor, Joaquim, e que não
tinha nada de bonzinho. O homem era uma fera, tínhamos que andar na linha,
pois, diante de qualquer vacilo, ele não se importava em nos punir severamente,
seja com uma reprimenda, seja com um “zero” no boletim. Nas suas aulas, a gente
nem piava; nas suas provas, não olhávamos para os lados nem em pensamento. Como
ele era tão esperto, não sei; só sei que parecia que ele enxergava sombras
pelos cantos dos olhos e isso lhe era suficiente para entender o que se passava
à sua volta.
Certa vez, ele se deu mal.
Nossa turma havia mudado de sala e de prédio. Como ele se orientava pelo número
de passos, um colega, o Baianinho (Baianinho, onde anda você?), ofereceu-se
para encaminhá-lo até a sala, que ficava logo ali na entrada. O Baianinho, no
entanto, fez uma volta pelo mundo até chegar ao destino: subiu e desceu
escadas, passou por todos os corredores, chegou aos banheiros... Quando, enfim,
entraram na sala, o professor transpirava e mostrava-se totalmente tonto, de
tanto virar o rosto de um lado para o outro, tentando memorizar o percurso.
Houve uma vez em que ele
entrou de licença para um tratamento de saúde, deixando um colega em seu lugar,
outro cego, só que esse outro era genuíno, legítimo, sem tirar nem por. E o
coitado pagou pelos crimes que não cometeu: colocávamos um jarro de flores,
numa cantoneira, bem na frente, perigosamente afastada do canto. E a aula
transcorria naquele suspense, o professor caminhando de lá para cá e nós na
expectativa de quando ele iria derrubar a jarra. Outras vezes, ele tentava ir
até o fundo da sala, mas ajuntávamos as carteiras de tal modo que ele tropeçava
e quase caía.
Naquela época, não havia
hipertensão e colesterol; não existia a palavra bullying e a neurose que ela
provoca nos pais e educadores; não existia o fenômeno da autoajuda e Paulo
Coelho ainda não se tornara aquele inteligente parceiro musical de Raul Seixas;
naqueles tempos, éramos boas pessoas, mas tínhamos essas pequenas maldades que
coloriam ainda mais nosso dia a dia.
Etelvaldo Vieira de
Melo
3 comentários:
Kung Fu marcou a minha adolescência. Não perdia nenhum episódio que para mim era profundo e instrutivo. Me identificava com Gafanhoto: perdido, solitário, em busca de sei lá o que. Só não gostava dos olhos cozidos do mestre Pô que você associou ao seu professor mauzinho, por quê?
Adorei você me fazer lembrar de Kung Fu. Adorava e procurava não perder nenhum episódio (gostava também do Daniel Boone). Foi tão marcante que usei uma frase dele - que me marcou muito - ao dar curso de Inteligência Emocional: Se eu me preocupar mudarei o futuro?. Ah, bons tempos estes do Gafanhoto.
Achei muito legal. Que malvadeza com o professor!
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