Ó
TEMPORA, Ó MORES! Expressão
latina, muito usada por Cicero, e que um vestibulando se deu ao
trabalho de traduzir por: “Oh temporais, oh mares!”.
Declaração óbvia é a de que vivemos um tempo em que
somos, a cada momento, surpreendidos por inovações tecnológicas que
desencadeiam mudanças nos hábitos e costumes.
Você já se perguntou, muitas e muitas vezes, se vale a
pena gastar um pouco mais na aquisição de um produto top, uma vez que, logo,
ele já estará superado e com preço bem mais em conta. Essa é uma das vantagens
do capitalismo moderno: quando a pessoa depara com um produto novo que se torna
seu objeto de desejo, mas o dinheiro está curto, ela pode ter o seguinte pensamento:
“Hoje não é possível, mas ainda vou ter você em minhas mãos!”
O avanço tecnológico não afeta apenas os hábitos de
consumo; ele vai além, abalando e reestruturando a maneira da pessoa ser e
estar no mundo. Durante muito tempo, em uma das avenidas da cidade onde moro,
havia uma loja de papelaria e armarinho que mantinha na sua entrada, como
atração e destaque, um conjunto de cinco peças de baú – uma espécie de mala de
madeira em forma de caixa – que estavam dispostos de forma empilhada. O mundo
dava suas voltas, a Lua repetia suas fases, a ameaça de guerra pairava no ar,
as crises econômicas se sucediam, mas lá estavam, firmes, as cinco peças de
baú, como se formassem uma família. Para mim, elas representavam um ponto de
segurança, como se fossem a própria arca de Noé, que iria me salvar do dilúvio prestes
a cair por sobre a humanidade. Eu pensava que, enquanto ali estivessem, eu não
teria com que me preocupar, pois eram o meu porto seguro, minha balsa
salva-vidas.
O crescimento urbano e o aumento assustador de veículos
fizeram com que o trecho daquela loja fosse desapropriado, para dar lugar a uma
manta de asfalto, a acolher em sua superfície os transportadores do progresso a
vomitar monóxido de carbono, em meio a rugidos de motores, freios e buzinas. E,
assim, os baús desapareceram, ficando comigo o sentimento de faltar apoio aos
pés, de perda de minhas referências e de que o mundo já não era mais a minha
casa. A partir de então, eu estava perdido.
Apesar de estranho ao mundo, ou talvez por isso mesmo,
observo curioso as transformações cada vez mais rápidas que ocorrem no dia a
dia. Sem me dar ao trabalho de um exercício de futurólogo, observo,
simplesmente, a destruição em massa que a modernidade promove. Meu medo é que
as outras pessoas também percam suas referências, como perdi a minha, quando da
destruição daquela Papelaria. O ser humano foi, até hoje, um ser de raízes,
construídas nas relações interpessoais, na aquisição de valores e formação de
hábitos. Esse foi o terreno no qual ele se sedimentou. Vejo agora, talvez por
influência de uma invenção sua – o cultivo de plantas hidropônicas - que também
ele se transforma em um ser aerícola, sem raízes, sem laços, voltado sobre si
mesmo, sem ligações aos outros humanos, além do interesse próprio.
Quando me lancei nesse mergulho de refletir sobre os
tempos modernos, não esperava encontrar águas tão profundas, que quase me fazem
afogar – eu que não sei nadar em tais profundidades. Vamos retornar para a
superfície, para a parte rasa, embora falando sobre um tema que assusta muita
gente: a morte. Mas não há motivo para preocupação, já que tocaremos apenas em
seu aspecto comercial.
Até bem pouco tempo, a morte era tratada com
encomendação, velório, enterro, caixão, cemitério e outras coisas mais,
dependendo do status do defunto. Já foi também reverenciada em prosa e em
verso, como nos escritos de Brás Cubas, de Machado de Assis, quando, falando a
seu respeito, deixa a dedicatória “ao verme que primeiro roeu as frias carnes
do meu cadáver”, ou no poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo
Neto, musicado por Chico Buarque, quando – falando da terra onde o defunto era
enterrado – dizia “é uma cova grande pra tua carne pouca, mas à terra dada não
se abre a boca”.
Até bem pouco tempo, havia os cemitérios, que eram
reverenciados pelo menos uma vez por ano, no dia de finados, e todo aquele
ritual de respeito aos parentes e famosos que já partiram dessa vida. E havia
uma indústria e um comércio em torno disso: as fábricas de caixões, urnas,
mausoléus, lápides, o comércio de flores, arranjos e cotas.
De repente, surge uma novidade que joga no chão todo esse
aparato: já agora o defunto não mais necessita de um pedaço de terra para
descansar seu corpo, ele pode ser submetido a um processo de cremação em forno
com temperatura entre 500ºC a 1200ºC. De sua massa corpórea restarão apenas algumas
partículas inorgânicas, que serão trituradas até formarem cinzas, pó. E, assim,
um corpo pesando cerca de 70 quilos fica reduzido a menos de um quilo de cinzas,
embaladas em uma pequena urna, entregue aos parentes.
Dias desses, um amigo chegou perto de mim e disse:
- Dou-lhe um doce se adivinhar onde estive ontem.
- Uma dica, pelo menos.
- Dou-lhe várias: Era um local muito bonito, com som
ambiente, poltronas, bufê com salgados, doces, sucos e cafés dos mais variados
gêneros, sinal de Internet sem fio, TV para filmes e canais abertos,
sanitários, fraldários, ambiente climatizado e vários apartamentos.
Meu amigo estava se referindo a um cemitério moderno, que
oferece o serviço de cremação, com velório “on line” para visitantes virtuais.
Quando surgiu a injeção eletrônica, muitos mecânicos de
fundo de quintal não se adequaram à nova tecnologia. Meu medo é que o mesmo
venha a acontecer com aqueles que trabalham no ramo funerário. Com a cremação,
como fica a produção de retratos emoldurados em bronze? E os mausoléus, os
túmulos? E o próprio cemitério com o dia 2 de novembro, se a moda de cremação
for para frente? As homenagens sobram somente para os mortos antigos, que logo
acabam caindo no esquecimento. Assim, eles acabam matando de vez os defuntos,
finando o Dia dos Finados!
Se a moda de cremação pega, os túmulos, mausoléus e
lápides irão acabar. E é aí que mora o perigo: para onde irão os epitáfios,
essas sínteses singelas de desejos, experiências e filosofias de vida? Alguém
já se deu conta de que ali, em frases simples, pode estar a resposta para todo
o dilema existencial: quem sou eu, de onde vim, para onde vou? Vocês não se dão
conta de que, acabando com os epitáfios, estarão como que destruindo aqueles
cinco baús, uma das últimas raízes a ligar os humanos entre si?
Por tudo isso, peço aos legisladores do país, à nobre
classe política, aos juízes e governantes para que revejam a legislação
pertinente ao processo de cremação, já que não basta apenas atender aos
interesses dos donos dos cartórios com a obrigatoriedade de requerer registro,
com documento assinado por testemunhas. É preciso dificultar essa prática crematória
ao máximo. Vamos salvar os mausoléus e os cemitérios! Que o epitáfio não seja
apenas letra de música e registro da história! A propósito, já pensou qual
seria o seu?
Etelvaldo Vieira de
Melo
2 comentários:
Ótima crônica, tio. Vc escreve muito bem. Vou até pensar em meu epitáfio. Abraço.
Papelaria Rex, na Praça Sete? Nao é favor da cremaçao? Já pensou eu - ou melhor, minhas cinzas sendo jogadas sobre o Rio Turvo em Andrelândia? Logo eu que tinha medo de nadar lá, vou ficar boiando por uns tempos nele. Dominei-o depois da morte.
É uim prazer ler suas crônicas. Um prazer quase mortal.
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