Tem
coisas que eu não sei como são possíveis; tem coisas que até sei, mas não gosto
ou não aceito. Não sei, por exemplo, como fui desenvolver uma unha encravada,
já que minha mãe tinha o cuidado de me comprar sapatos enormes, sob a alegação
de que eu estava em fase de crescimento.
-
Logo, logo eles estarão certinhos nos seus pés – falava ela, tentando dourar a
pílula do aperto financeiro.
Assim,
acontecia de estar andando pelo passeio de uma rua e os bicos dos sapatos já
estarem dobrando a esquina, cinco metros adiante.
Do
que sei e não gosto, tem o exemplo de assistir a filmes baseados em fatos
reais. Quando eu lei no script ou na tela:
Este filme é baseado em história real
eu não quero nem saber se é
bom ou deixa de ser. Para mim, filme tem que ser pura ficção. A realidade não
reúne tempero suficiente para agradar meu paladar cinematográfico. Já o gênero
literário, no qual eu me arrisco semanalmente, o das crônicas, para mim, tem
que ser calcado em fatos reais. Vez por outra, invento uma mentirinha para
tornar o texto mais palatável. A essência, no entanto, é 100% verdadeira,
legítima, não como esses smartphones que ando namorando e que, já de longe,
cheiram a produtos falsificados. Como estou me tornando uma pessoa exigente em
minhas compras, pode até ser que eu caia na esparrela de uma compra mal sucedida,
mas que vai ser difícil, vai.
Ainda
nesse roteiro de não engolir certas coisas, achava que havia um pouco de
exagero naquela crônica de Millôr Fernandes, onde ele descrevia os sacrifícios
de uma mãe em fazer as vontades de um filho. Ela chega ao ponto de comer metade
de uma lagartixa frita em manteiga, exigência do déspota do filho. Só que na
hora dele dar conta de sua fatia, recusou-se solenemente, alegando que a mãe
havia engolido exatamente a sua parte preferida.
Depois
que minha amiga Dialinda andou me falando sobre suas desventuras familiares,
comecei a achar o texto do Millôr plausível. Minha amiga tem um filho,
Redogério, que, entre os 15 e 18 anos de vida, criava um gato himalaia, chamado
João.
João
era um gato especialíssimo, não bastasse ser da raça Himalaia – aquela
resultante do cruzamento do Persa com o Siamês. Você consegue imaginar um gato
todo peludo, ronronando para você, enquanto passa roçando o rabo entre suas
pernas, de cá para lá e de lá para cá? Pois bem, além desses atributos, ele era
muito inteligente. Redogério contou que, certo dia, passeava com João pelas
ruas do bairro quando, de repente, o animal parou, não queria sair do lugar.
Redogério puxou-o pela coleira, mas João resistiu bravamente. Quando foi ver o
motivo de tanta resistência, descobriu que o gato estava com a pata dianteira
sobre uma nota de R$100,00.
Como
diz o ditado, não há bem que não acabe; um dia, João arranjou uma infecção
urinária, fato que o deixou bem debilitado e fazia com que visitasse regularmente
o veterinário. E a Dialinda ia despendendo dinheiro para as consultas e os
medicamentos, enquanto Redogério a recriminava, com lágrimas nos olhos:
- Você
é uma desnaturada! Você não ama o João!
Enquanto
isso, o dinheiro estava indo para o ralo com consultas e medicamentos. Mas tudo
não foi o bastante e João acabou morrendo. Não foi uma morte qualquer: ele teve
direito de ter o corpo cremado, enquanto que suas cinzas foram depositadas numa
urna. Redegério até quis que o anúncio de sua morte fosse publicado na sessão
de avisos fúnebres do principal jornal da cidade.
Quando
eu quis saber onde estava a urna, Dialinda me respondeu:
-
Não tenho a mínima ideia de onde ela foi parar!
Depois
do João, Redogério mudou de espécie, adotando um cachorro, Jimi Hendrix. Apesar
de não ter tido uma vida atribulada,Jimi acabou
morrendo logo, em razão de alguma coisa que andou bebendo. A última incursão
de Redogério no mundo animal foi a aquisição de três gatas: Lana, Lena e Luna.
(Se ainda morasse com a mãe, certamente a teria deixado na lona – expressão que
significa levar à falência.) Nesta altura, Redogério já estava casado e era pai
de uma menina. Ela teve uma crise alérgica, provocada por uma das gatas, não se
sabe qual. Por via das dúvidas, as três foram descartadas e a história chegou a
seu final.
PS:
A propósito, este texto faz exceção ao meu compromisso com a verdade; portanto,
qualquer semelhança com fatos reais pode ser um pouco de coincidência.
Etelvaldo Vieira de
Melo
2 comentários:
Etelvaldo,eu fui testemunho vivo do amor de Redogério pelo João. Quando do passamento de João , eu presenciei o veterinário dando a notícia e fiquei comovido quando Redogério, em lágrimas, dizia: "Se João fosse humano, com certeza vocês não o teriam deixado morrer, usando todos os recursos avançados da medicina!" . Dialinda, com certeza, não sabia desse pequeno importante detalhe. Eu não deixei de elogiar Redogério pela sua sensibilidade ao dizer-lhe que homem também chora...
Tel, concordo com vc filmes de ficção são mais interessantes.
A história do gato me lembra o LÊ, quando a cachorrinha chegou ....papai pra cá, filhinha pra lá... Mas só durou até ele se cansar de recolher os dejetos dela pelo jardim.
Foi ótimo passar o final de semana com vocês, venham mais vezes.
Postar um comentário