Imagem/Texto:Augusto de Campos |
inha filha anda implicando
comigo por causa de alguns deslizes que cometo ao pronunciar determinadas
palavras (“poblema” e “restorante” são exemplos). Não adianta eu alegar que
estou empregando um termo coloquial ou usando de uma figura de linguagem - uma
síncope , por exemplo (embora não saiba se esse bicho existe de fato e se
presta para redimir meu erro verbal). Ela diz que isso é sintoma de que meu nível
(intelectual/econômico) anda lá embaixo, rastejando quase.
De
minha parte, temo que ela já esteja jogando no time daqueles que andam com
nariz empinado, exalando metidez e afetação. Se for assim, fico preocupado,
pois antevejo sérios conflitos entre nós, daqui para frente.
Como
tive uma formação onde me foi incutida a máxima de que a virtude está no meio,
tenho a tendência em enxergar virtudes e defeitos nos dois extremos da escala
social, dos ricos e dos pobres. Para não cansar a paciência de quem quer que
seja, vamos destacar somente um defeito da porção pobre. Quanto a falar mal dos
ricos, quero, primeiro, afiar minhas armas para aplicar-lhes um golpe fatal.
Eles não perdem por esperar.
Sei que
estarei agindo errado, atirando pedras naquela que é a mais vilipendiada das
classes sociais, os párias da sociedade moderna, principal vítima de uma
imprensa sensacionalista, que faz dela atração de seu cardápio carregado de
notícias ruins e maldosas. Sei que ser pobre numa sociedade capitalista é a
maior danação, é ser tratado como cachorro vira-lata, morrendo de fome, frente
a uma máquina de frango assado, contentando-se em comer aqueles deliciosos
petiscos somente com os olhos. Mas não é isso que o pobre visualiza através da
TV? Tanta ostentação, enquanto sua casa e sua vida caem aos pedaços...
Apesar de tudo e falando
dos pobres, alguns deles acham que podem alugar os ouvidos dos outros,
despejando ali algo indescritível, mas que chamam de música. Um deles faz isso
usando de potentes alto-falantes de um carro, estrategicamente instalado na
descida de uma rua e que proporciona a maior ressonância possível. Ele aprecia
um gênero musical chamado funk, cujas letras jogam por terra meu resto de
inocência. Minha esperança é de que as crianças das redondezas não entendam
nada daquilo; caso entendam, o mundo está definitivamente perdido.
Aquele
som horripilante, que bate nos meus ouvidos e arrebenta meus restantes
neurônios, acontece invariavelmente nos fins de semana e nos feriados. (Antes
que alguém se sinta ofendido, quero dizer que concordo com o que diz Sérgio
Vaz, poeta da periferia: “O que é lixo para uns é luxo para outros”.) Certo
dia, peguei um binóculo para conferir visualmente o que acontecia: o carro
estava com o porta-malas aberto; junto dele, uma jovem, vestida de short,
dançava, balançando a bunda e se achando a tal. Não percebi o dono do carro e
responsável por aquela chacina auditiva. Ele devia estar no quintal da casa, junto
com outros amigos, tomando umas e comendo churrasco de gato ou de costela de
boi.
Bem sei
que ele estava socializando seu gosto musical e sua alegria de final de semana.
Também sei que essa é uma das virtudes do pobre, essa de compartilhar o pouco
que tem. Reconheço sua boa intenção, mas preciso dizer que, de pessoas bem
intencionadas, o inferno anda cheio. Aquele som nas alturas e aquelas letras
indecentes abalam meu estado emocional. Talvez seja por isso que meu
vocabulário anda caindo pelas tabelas, isso de estar, todo fim de semana,
esbarrando com tamanho “poblema”.
Etelvaldo
Vieira de Melo
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