ESTUDEMOS

Imagem:La lectrice - Jean Honoré Fragonard



Estudemos,                                                                  
que o estudo
é o caminho
de quem não
nasce em berço de ouro
e só pode viver
no meio da guerra.

Estudemos,
que o estudo
produz o senso crítico
capaz de analisar
o país em que vivemos.

Uma vez que
não somos políticos,
mas fazendeiros do ar,
só o estudo
pode ser a bússola
no meio do Brasil
sem leme e sem rumo.

Através do estudo
separamos o óleo
das águas cristalinas.
O raciocínio lógico
combate os corruptos,
vai para a rua
e estabelece a lei.

Vamos aos estudos
bandeira e espada
contra a situação inflacionária
do Brasil.

Abaixo os que não leem
e ainda se vangloriam
do desgosto da literatura.
Com sua ignorância
roubam e rebaixam
o magro povo que aprende
a também não estudar.




SUTILEZAS

HONESTIDADE
Senhor Gerente:
uma informação, poderia?
Onde está aquela garçonete
aquela pequenina que
delicadamente
dizia quando o doce ou salgado

não era fabricação do dia?





Esta foto foi tirada depois que a arvorezinha sofreu uma intervenção cirúrgica.

NETINHO(A)

Imagem: orleyantunes.blogspot.com

A CASA DE IRENE

E
ra uma vez duas irmãs que moravam num bairro afastado do centro da cidade, numa época em que era no centro que as coisas aconteciam. Estando na flor da puberdade, elas tinham, pois, motivo para se sentirem infelizes, não fosse o acaso de estarem próximas a um internato masculino, numa época em que ainda existia esse tipo de estabelecimento.
            Como tinham acesso às dependências do prédio, por ocasião dos torneios de futebol e das apresentações teatrais, fica fácil traçar um perfil físico-psíquico das duas.
            Adelaide, a mais velha, um algodão-doce de simpatia, tinha os cabelos castanho-claros. O inconveniente era o rosto coberto de espinhas, fato que a deixava um tanto quanto complexada. Por qualquer motivo, ficava vermelha como pimentão maduro. Ela se esforçava, fazia o possível para atrair a atenção dos rapazes do internato, mas eles só tinham olhos e corações para a irmã, Irene.
            Além da pele lisa feito veludo, Irene tinha os cabelos castanho-escuros e um corpo com tudo no lugar, sem necessidade de tirar ou colocar mais nada. E seus olhos eram verdes e todos os rapazes daquele imenso internato (os que puxavam para +, porque havia também aqueles que puxavam para – e outros que ficavam no ±), todos os rapazes positivos, portanto, sonhavam em poder conquistá-la.
            Enquanto Adelaide atirava pra tudo quanto é lado, armando suas redes para pegar qualquer peixe, mesmo sendo um mandi (para mim, o mais bobo e desprezível dos peixes) ou uma piaba, Irene fez uma seleção, tipo vestibular, escolhendo uma meia dúzia de pretendentes para o que seria uma antecipação dos reality shows do mundo moderno.
            Esse seleto grupo passou a ter o direito de frequentar a casa de Irene, enquanto os demais pretendentes ficavam chupando o dedo, a ver navios.
            Inspirados nessa situação, Maresca-Pagano compuseram a música A Casa d’Irene, interpretada por Nico Fidenco, um dos grandes hits da década de 60.
            




         Faziam parte do grupo de Irene: Baianinho, Adilcente, Feliciano, Adolocil, Tikatomo e Inocêncio.
            Baianinho impressionava Irene pela versatilidade com a bola nos pés. Apesar da baixa estatura, era um excelente jogador. Além desse predicado, tinha uma obturação a ouro, o que tornava seu sorriso luminoso.
            Adilcente tocava violão e cantava com voz de barítono. Nos encontros na casa de Irene, ele fazia espetáculo com “L’amour est bleu”, grande sucesso da época.
            Enquanto Adilcente dedilhava um fundo musical, Feliciano declamava poemas. O problema era que, geralmente, seus textos caiam num impasse. Por exemplo, este aqui:
Vou.
Será que vou mesmo?
Não, não vou.
Mas não posso ficar assim.
Melhor dizer:
Acho que vou
ou
acho que não vou?
               
Adolocil impressionou Irene pelo amor que demonstrava à sua terra de adoção, uma cidade chamada Divinópolis. Adolocil dava conta de todos os detalhes da cidade. Sem exagero, era capaz de nomear o número de homens, mulheres e crianças, a quantidade de postes elétricos distribuídos pelas ruas, o número de ônibus que partiam da cidade para a capital, com o número médio de passageiros. Era capaz, até mesmo, de dizer o índice pluviométrico registrado na cidade nos últimos dez anos. Tanta riqueza de detalhes impressionava Irene. Ela pensava: “- Se ele ama assim sua cidade de adoção, imagina o amor que ele poderá ter por mim!” Outra qualidade de Adolocil que encantava Irene era o fato de fazê-la rir. Foi baseado neste fato que Caetano Veloso compôs aquela música onde diz “quero ver Irene rir”.
            Tikatomo era um fisiculturista capaz de quebrar com a cabeça meia dúzia de tijolos empilhados. O físico de Tikatomo fazia Irene ter pensamentos esquisitos e que lhe causavam palpitação.
            Inocêncio, o último da relação, não apresentava nada de especial, a não ser o fato de ser o mais bonito de todos os concorrentes. Ao fim da avaliação, foi ele o escolhido por Irene para ser seu namorado.
            Estou relatando essas ocorrências para mostrar que os ditados populares nem sempre encontram correspondência nos fatos; “beleza não põe mesa”, por exemplo. Para Irene, pôs até sobremesa, um bebê que apareceu assim, de repente.

Etelvaldo Vieira de Melo 

QUEM É?

Imagem: postmania.org
          (Para Vicente)

Olhos argutos,                                                  
bico achatado
mundo redondo
bem formatado.

Penas tão lisas
e tão cinzentas
sobre umas asas
bem corpulentas.

Representa o saber
e a inteligência
para entendê-la
dê cá ciência.

Se chove está ela
no topo da igreja
quentinha e macia
nem sacoleja.

É tão bonitinha
na sua armadura
as garras são sempre
matéria dura.

Se você não sabe
ela rima com uja
em cima do mastro
fica dona Coruja.


TRÊS PASSOS PARA FRENTE, UM DE LADO

E
stava Alterliano todo entusiasmado, comentando com seu amigo Elidério as novidades de seu dia:
           

- Como está sabendo, voltei a fazer Análise, e hoje foi um dia especial. Sou uma pessoa impulsiva, não avalio as condições do momento e tomo atitudes erradas. Por isso, foi extremamente proveitoso o terapeuta ter me repassado a Técnica das Três Competências (TTC).
           
- E quais são essas competências? – quis saber Elidério.
           
- A terminologia é um pouco complicada, mas acredito que seja assim:
           
1ª) Sensibilidade Situacional – onde você procura contextualizar o fato, buscando compreendê-lo em todos os seus ângulos, fazendo uma leitura adequada das demandas;
           
2ª) Flexibilidade de Estilos – quando analisa as diferentes posturas possíveis de serem tomadas;
           
3ª) Gestão Situacional – quando, após refletir sobre a situação de conflito e ter escolhido a mais adequada alternativa de ação, você parte efetivamente para uma intervenção de mudança.
           
- Entendi sua explanação – disse Elidério. – Gostaria que me repassasse um exemplo concreto, se possível.
           
- Veja você que, no Dia das Mães, minha esposa levantou, segundo expressão antiga, com a “avó atrás do toco”. Ela estava muito aborrecida e eu não sabia explica o porquê daquilo. Pensei comigo: “- O que fiz de errado?”. Como não encontrava resposta, achei que nosso relacionamento estava “indo pro brejo”, isto é, estava acabado. Fiquei deprimido e comecei a somatizar aquilo: palpitação, dormência nos pés, suor frio. Só no dia seguinte é que a situação foi esclarecida. Minha esposa era muito ligada à mãe, já falecida, e foi precisamente no Dia das Mães que seu pai, com quem ela se dava às mil maravilhas, também morreu. Conclusão: aquela data não lhe trazia boas lembranças; daí, o seu mau humor e aborrecimento. Se eu tivesse aplicado a Técnica das Três Competências (TTC), teria me saído melhor. Eu tinha conhecimento de seu histórico de vida, seria fácil ter uma sensibilidade situacional, saberia como me posicionar diante do fato, além de ter tomado uma atitude condizente com o que acontecia.
           
- Brilhante a sua colocação, meu amigo – falou Elidério. – Só um detalhe é que lhe escapa.
           

- Qual? – quis saber, curioso, Alterliano.
           
- Que essa terminologia rebuscada nada mais é do que uma roupagem nova para o velho Ver, Julgar e Agir de seu tempo de JOC e Ação Católica.
           
- Caramba! Não é que você tem razão?
           
- Quero dizer que devemos levar mais a sério a Lei de Lavoisier (na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma) e a máxima de Chacrinha (nada se cria, tudo se copia), sendo esta uma cópia daquela. Não importa. A propósito, minha amiga Isaurina diz que ser original é saber a quem copiar.
           
- Muito engraçada essa ideia de que a história se repete.
           
- Você quer saber onde está o princípio de tudo? Esses métodos nada mais são do que a explicitação da inteligência humana.
           
- Um exemplo, por favor.
           
- Vamos supor que exista um adolescente chamado Juquinha e que esteja estudando, enquanto ouve uma Rádio FM tocando músicas orquestradas. Isso é apenas uma suposição, principalmente a ideia de ter um adolescente estudando. De repente, o rádio fica mudo e Juquinha se pergunta: “- O que aconteceu?”. Antes de ligar para a distribuidora de energia ou pegar uma chave de fenda para desmontar o rádio (e depois não saber onde recolocar tanto parafuso), Juquinha vai até o Quadro de Distribuição de Energia (QDE) e constata um fusível queimado. Como não havia um sobressalente, faz uma ligação direta, tomando o cuidado de anotar a compra de fusíveis para reposição. Depois, volta a estudar, ouvindo as músicas do rádio. Isso, caro Alterliano, que é ser “inteligente”: interrogar-se sobre uma situação, buscar compreendê-la e agir em consequência. É daí que brotam todas as invenções e todos os métodos, inclusive os terapêuticos.
           
- Gostaria de saber, meu caro Elidério, se eu posso aplicar esse método, TTC, na política, numa situação eleitoral, por exemplo.
           
- É possível, mas existe um problema: como o sistema eleitoral coloca os políticos afastados dos eleitores, fica difícil a sensibilidade situacional e, por consequência, o voto consciente. É por isso que um ex-esportista disse que o brasileiro não sabe votar. Ele não pode saber mesmo, nesse contexto.
           
- Elidério, eu gostaria de repassar esta nossa conversa para o Avercílio, para que ele a postasse no Blog (ele que se encontra acometido de insônia, sem Rivotril que dê conta, buscando ansiosamente material para suas crônicas). Acontece que nossa conversa tem um tom muito sério. Você não tem um exemplo leve para ilustrar a TTC?
           
- Pois não, caro Alterliano. Estava eu e minha esposa no interior de um supermercado. Um outro casal estava em frente ao caixa e discutia aparentemente sobre a conveniência de levar um produto. Eles aparentavam um ar de mau humor, o que levaria outras pessoas a julgá-los chatos e aborrecidos.  Desenvolvendo uma Sensibilidade Situacional, procurei visualizar o produto que tinham à mão: era um desentupidor à base de soda cáustica, cujo nome não vou mencionar (para não fazer publicidade gratuita). Quanto à Flexibilidade de Estilos, considerei que não há nada mais desagradável do que um vaso sanitário entupido numa manhã de domingo (era domingo). Daí, entendi perfeitamente o mau humor e o ar de aborrecimento do casal. E a Gestão Situacional, quer saber? Caso eu conhecesse e tivesse intimidade com o casal, poderia ajudá-los na avaliação do produto ou na sugestão de outras alternativas. Como se tratava de ilustres desconhecidos, tratei de passar adiante, com os olhos abaixados, só fazendo esse comentário com minha esposa; “- Quem vê cara não vê coração; bem sabemos que não existe coisa mais aborrecida do que uma rede de esgoto entupida, especialmente numa manhã de domingo”.
Etelvaldo Vieira de Melo  

VARREDEIRA

Imagem: paulamar.blogspot.com








A senhora que está ali,
varrendo a rua,
merece ter mais
que os do Congresso,
porque seu trabalho
é forte e digno,
sem falcatruas.

                   Um dia muito próximo,
                   o anjo varredor dirá à varredeira:
                   - Benditas sejas
                   entre as mulheres
                   porque fizeste o mundo
                   limpo, sem sujeira.

                   Tu, mulher, também és estrela,
                   porque mesmo vestida
                   do pó do asfalto,
                   por dentro de teu coração
                   está brilhando a lua.

                   Formiguinha do lixo,
                   não deixaste que a torrente
                   poluída dos homens
                   te contaminasse.

                   Prosseguiste com tua roupa
                   íntima muito alva
                   e até à alva ficaste varrendo
                   flores mortas e folhas murchas
                   de ontem.

O teu semblante agora
não é mais desta terra,
o teu olhar caminha
catando o imundo,
mas a tua alma,
como as rosas,
retira seu perfume
do estrume.
                   

PIMENTA NOS OLHOS DOS OUTROS


M
elidônio Ferrara, morando “onde não mora ninguém, onde não passa ninguém, onde não vive ninguém”, sente-se razoavelmente confortável para falar o que “lhe dá na telha”, isto é, o que bem quiser, sem se preocupar com a veracidade de suas palavras.
            Assim, ele recorre ao Dalai Lama, pedindo-lhe emprestados os termos “compaixão” e “empatia”. Pensando bem, ele quer mais: quer que o guru venha ao Brasil ministrar uma série de palestras sobre o tema compaixão, tentando sensibilizar o brasileiro para as agruras alheias.
            Que vai ser duro de roer tentar amolecer o coração do povo, isso vai. Melidônio chega à suposição de que o Dalai vai gastar todo seu estoque de cândido sorriso. Quanto ao resultado final, o tempo dirá.
            Por enquanto, Melidônio anda colhendo uma decepção atrás da outra, quando vê que ninguém se toca com suas aperturas. Até o Amador (que ama a dor – segundo expressão do Cleber), aquele da “Atração Fatal”, postagem de 13/04/2013, pessoa de grande coração, outro dia, falava que quase tivera um derrame cerebral, com sua pressão arterial indo lá nas alturas. Quando Melidônio falou que havia tido um infarto, o outro ponderou, rapidamente, sem querer maiores detalhes:
            - Foi um infartozinho à toa, não é mesmo? – e continuou a discorrer sobre suas próprias mazelas.
            Melidônio confabulou com seus botões: “Bem diz o ditado que pimenta nos olhos dos outros é colírio”. E arrematou o pensamento: “Até tu, Amadeus?”.
            Outros já deram mostras de insensibilidade, como foi o caso do Floriano Fatiota, aquele do bode velho, personagem de postagem em 22/03/2014. Estava ele fazendo um serviço na residência de Melidônio, quando este foi chamado ao portão. Tratava-se de Clotoaldo Ribelino, um rapazinho que se acostumara a retirar o entulho da calçada a troco de alguns trocados e de um cafezinho com pão. Melidônio explicou ao dito cujo que seria melhor esperar um pouco até que o volume de entulho fosse maior. E perguntou: “- Quer um cafezinho com pão?”, ao que o outro respondeu: “- Quero, sim”.
            Melidônio buscou o lanche, mas, na hora de descer o lance de três degraus da escada, escorregou, levando o maior tombo, caindo de costas e batendo com a cabeça no piso da área. Os ajudantes de Floriano acorreram e levantaram Melidônio, pálido feito uma cal – de susto e de dor.
            Quando ficou sabendo do acidente, Floriano (que estava nos fundos da casa), ao invés de mostrar condolência e preocupação, foi logo dizendo:
            - O meu tombo foi pior do que o seu. Caí de cima de uma escada e bati com a cabeça numa tampa de caixa d’água.
            Melidônio pensou: “- Pode ser que seu acidente tenha sido mais grave, mas é o meu que está na parada de sucesso; o seu é água passada”. Essa falta de apoio moral deixa Melidônio aborrecido.
            É na soma desses pequenos detalhes que Melidônio resolve recorrer aos préstimos de Dalai Lama. O país gasta horrores com segurança e policiamento, quase tudo a troco de nada.
            Falando de policiamento e querendo chegar a um desfecho para esta dissertação, Melidônio lembra que foi abordado no centro da cidade por um senhor, que lhe perguntou:
            - Por acaso, polícia é bom para dor de garganta?
            - Sei lá – respondeu Melidônio. – Por que a pergunta?
            - Porque – falou, rindo, o outro – esbarrei sem querer num jovem e ele me falou: “- Quando eu chamar a polícia, você, velho, vai ver o que é bom para tosse”.
            Melidônio aguarda ansioso a visita do Dalai Lama. O país vive um clima de violência, de agressividade sem igual. Insufladas por parte da imprensa, sensacionalista e inconsequente, pessoas influenciáveis fazem linchamento de mãe de família; por causa da ganância e de um egoísmo exacerbado, mulher envenena enteado. O país parece estar sentado sobre um barril de pólvora. Não será dinheiro que irá nos tirar dessa. Porque tudo é uma questão de ética, uma questão de valores e que começa com um gesto simples de julgar que “pimenta nos olhos dos outros é colírio”. Mais do que polícia, o país necessita de compaixão, conclui Melidônio Ferrara.
            Etelvaldo Vieira de Melo