Não sei se aconteceu com você, mas já me
senti como aquele personagem do conto “O Idiota Na Cidade Grande”. Vindo do
interior e chegando à cidade, ele foi tomado de pavor, com medo de se perder em
meio a tanta gente.
Chegando a noite, ele procurou se
acomodar em frente a uma casa de comércio, tendo o cuidado de amarrar uma corda
no seu tornozelo e prendê-la numa estaca.
Um sujeito brincalhão, vendo aquilo,
assim que o idiota adormeceu, desamarrou a corda e amarrou-a no seu próprio
tornozelo, deitando-se ao lado do outro.
Pela manhã, ao acordar, o idiota,
vendo a corda amarrada no tornozelo de um estranho, perguntou-lhe:
- Ai, ai, ai, ai, ai! Se você é eu,
por favor, me diga o que eu sou, afinal? – ele dizia isso se apalpando, todo
apavorado.
“Quem Sou Eu?” – esta é a pergunta que
atormenta todo ser humano, desde tempos imemoráveis. Para os desavisados, quero
dizer que existem duas ciências, uma do comportamento e outra esotérica, que se
propõem a dar resposta a tal questão.
Bom demais, não é mesmo?
Seria, se não viessem, à moda dos
medicamentos, com rótulos e bulas, a descreverem suas aplicações,
contraindicações e efeitos colaterais.
Mas o que estou querendo? Não somos um
somatório de características físicas e psicológicas, um cardápio de qualidades
e defeitos?
Somos, e eu não tenho como discordar.
O nó da questão é que não aceito e acho que ninguém deve aceitar rótulos.
Coisa mais desagradável é alguém falar
para mim:
- Não faça isso, Eleutério, pois não é
capaz, e eu conheço você muito bem.
Pronto: já me sinto todo podado,
amarrado e amordaçado, enjaulado, encurralado.
A ciência esotérica, que se propõe
responder a essa pergunta escabrosa e que não quer calar, tem seus pressupostos
baseados no giro da Terra em torno do Sol e leva em conta a posição dos astros;
daí, o seu nome: Astrologia. De acordo com o alinhamento da Terra frente ao Sol
e considerando o posicionamento dos astros no dia de seu nascimento, pimba!,
você é enquadrado num dos doze signos zodiacais.
Como exemplo, eu, Eleutério, nasci sob
o signo de Peixes (acabei de colher uma flor no jardim de minha existência),
tido e havido como a sucata, aquele que vem por último, na rabeira. É por isso
que os nascidos sob este signo têm a incumbência, a exemplo de Atlas, de
carregar as dores do mundo.
Temos que dar crédito ao que diz a
Astrologia? Não sei, mas pessoas, via de regra, recorrem a ela em suas
conversas, nem que seja para perguntar:
- Qual é mesmo o seu signo?
Com o avanço tecnológico, a Astrologia
criou ares de sofisticação, incluindo em seu repertório os signos ascendente e
descendente, a regência dos astros, alinhamento dos planetas, ano bissexto,
horário de verão e outros detalhes mais. Em resumo, é muita coisa para ser
levado em conta, o que cansa a beleza e provoca uma leve dor de cabeça.
Como a Terra tem saído de seu eixo,
pode ser que isso acarrete uma mudança na caracterização dos signos. Para mim,
seria ótimo pegar um pouco do atrevimento do ariano e da ousadia e liberdade do
aquariano, signos vizinhos.
Se está difícil engolir os desaforos
próprios de meu signo, posso recorrer a outros horóscopos, como o chinês – por
exemplo, que leva em conta a data de nascimento e não a posição dos astros.
Andei pesquisando a respeito e não gostei nada do que li a meu respeito, saindo da brasa e caindo no espeto. De
qualquer modo, horóscopo chinês deve ser bom para os chineses, que deveriam estar lá do outro lado do
mundo. A única palavra em mandarim que sei pronunciar é “Han Gai”, nome de um
china que me atendia lá no shopping popular, onde ia fazer minhas compras de
eletrônicos, e que não esqueci por associá-lo com “rango”.
A ciência que se propõe a dar uma
resposta à pergunta “Quem Sou Eu?” é a Psicologia. Estou dizendo isto - usando
de referências passadas, e não sei se o software ou aplicativo requer
atualização - com base em um Teste Caracterológico que leva em conta a emotividade,
a atividade e a secundariedade, enumerando oito tipos possíveis de indivíduos.
Penso que, se formos dar crédito ao
que dizem a Astrologia e algumas ciências, o ser humano já nasce com várias
marcas, algumas de qualidade e algumas defeituosas. Não estou afirmando nada de
extraordinário com isso, mas sinto-se reconfortado ao pensar assim, já que tal
pensamento me redime do sentimento de culpa por me considerar um ser desprezível.
Passando para considerações
científicas, informo ter feito o tal teste caracterológico, cujo resultado
disse ser eu do tipo sentimental ou melancólico. Os três elementos do caráter
afirmavam que eu era uma pessoa emotiva, não-ativa e secundária. Em síntese, a
análise apontava ser uma flor delicada: um nada me fazia murchar, ou seja, um
gesto ou uma palavra descortês poderia causar-me uma ferida profunda.
Como exemplo, lembro-me de um fato
ocorrido num encontro com familiares de minha esposa. Pela tarde, vesti uma
blusa, o que provocou o seguinte comentário de uma cunhada:
- Velho é friorento mesmo – falou,
dando uma gargalhada. E aquelas palavras nunca foram apagadas de minha memória.
Peço para que as pessoas entendam minha
herança genética e que fez de mim uma pessoa sensível, honesta, confiável,
impressionável, reflexiva, sincera. Também espero que compreendam a lentidão
com que respondo aos estímulos, o fato de sonhar grandes projetos e não
realizar nenhum, meu medo, insegurança, minha timidez.
Ao relatar tudo isso, estou dando crédito ao
que diziam Astrologia e Psicologia? Vamos dizer que sim, mas com um reparo: não somos produtos em série; por trás da pessoa (cuja etimologia remete a "máscara", "personagem") está o indivíduo, que é ser único, irrepetível. Enfim, eu, Eleutério, o crédulo, sinto que, também por
questões genéticas ou zodiacais, sou portador de muitos defeitos que poderiam me
tornar infeliz. Não realizei grandes projetos e passei a vida na quase obscuridade.
Entretanto, aprendi a valorizar as pequenas coisas e a encontrar beleza no que
é simples. É com essa maneira de ver a vida que construo meu projeto de felicidade.
Etelvaldo Vieira de Melo