Pessoas
enganam a gente de tudo quanto é jeito. Um dos mais ardilosos é quando se fazem
passar por vítimas, coitadinhas e crédulas. Agindo assim, deixam você
desprevenido e, quando se dá conta, já lhe “passaram a perna”, você “caiu no conto
do vigário” ou acabou sendo extorquido.
Conheço um desses distintos, o
Ronivaldo, que, com sua lábia, acaba “dando nó em pingo d’água”.
Vez por outra, esbarro nele pelas
ruas do bairro. Toda vez, ele vem com aquela conversa de quem mastiga chicletes,
soltando asneiras através de uma boca cheia de dentes.
O Ronivaldo é assim. Trabalha numa
firma de aluguel de máquinas de terraplanagem, onde presta serviço de
manutenção. Ele é magro, aparenta uns quarenta anos de idade, com os cabelos
ficando grisalhos. Quando ele fala, seus dentes, muitos e enormes, mal
conseguem ficar dentro de sua boca. Ele trabalha nessa firma, mas o que gosta
mesmo é de fazer uns trambiques.
Da primeira vez em que ouve suas
desditas, é bom provável que você acabe chorando ou com um nó na garganta. Isto
porque Ronivaldo tem um repertório imenso de aventuras, onde sempre se dá mal.
Uma vez, é a mulher que, num acesso
de fúria, atira-lhe um prato de louça e, por pouco, muito pouco, não arrebenta
a sua cara; numa outra, está ele querendo ir até o supermercado comprar ovos e
fazer omeletes, para enganar o estômago, dele, da mulher e filho; de outra vez,
é o cigano trambiqueiro que lhe vende um carro todo bichado, onde nem a carcaça
se salva.
Este carro tem tomado conta da
atenção de Ronivaldo, roubando-lhe noites de sono. Ele o chama de “carro de
garagem”, já que de casa não pode sair devido aos inúmeros defeitos. Sua
situação legal também é complicada, pois acumula mais multa que prontuário de
preso de penitenciária de segurança máxima.
Todos os profissionais com quem se
envolve, tentando dar um acerto no carro, acabam – segundo Ronivaldo –
“passando-lhe a perna”: lanterneiros, pintores, mecânicos, lojas de peças
usadas.
Quando ouvi tanta choradeira,
repassei-lhe, mesmo sabendo que a fundo perdido, a quantia de cinquenta reais.
Pra que! Quando me vê, seus olhos brilham na expectativa de mais algum trocado.
Ronivaldos existem aos montões; você
mesmo deve cruzar com vários deles.
No ramo literário, outro dia
esbarrei com um poema de Manuel Bandeira chamado “Auto-retrato”. Pensei comigo:
“- Taí o Ronivaldo das letras!”.
Cheguei a esta suposição porque não
acreditei um tiquinho daquilo que ele escreveu. Caso estivesse sendo sincero em
suas palavras, Manuel teria dado conta de sua vida, no mínimo, com um tiro no
meio da testa. Pelo que me consta, ele viveu até bastante, chegando aos oitenta
e dois anos de vida.
No poema em questão, ele se coloca
lá embaixo, considera-se um poeta ruim, um cronista de província, arquiteto e
músico falhado, um pobre de espírito. Eu pergunto: tem sentido dizer estas
coisas aquele que, com o poema “Os Sapos”, foi o abre-alas da Semana de Arte
Moderna de 1922, tornando-se, depois, membro da Academia Brasileira de Letras?
Sei que, ao longo de sua vida, enfrentou
problemas de saúde e a ameaça da morte lhe era frequente. Entretanto não deixo
de considerar que seu histórico tem a ver com o de Ronivaldo ou até mesmo com o
de uma conhecida.
Caso eu quisesse deixá-la de mau
humor, bastava lhe dizer: “Puxa, como sua aparência está agradável!”. Então,
ela fechava a cara, aborrecida. Se eu lhe dissesse: “Puxa, seu aspecto está
sombrio e abatido, sua palidez me assusta!” – ela, então, dava um sorriso
feliz.
Com o que andei dizendo, vi que tem
gente assim, que passa ar de infelicidade para ser feliz escondido.
O Professor de Redação mandou que eu
botasse pra fora o animal que existe dentro de mim:
- Liberte o animal que existe em você –
vociferou ele!
Fiquei por longo tempo pensando com os meus botões (de onde
será que veio esta expressão esquisita?), tentando encontrar um animal com quem
me identificasse. Por princípio, descartei os animais selvagens. Acho o mundo
deles muito selvagem, com um querendo comer o outro, cada um tendo que comer
pra não ser comido – ou seja (e possíveis leitores de mente poluída não façam
inferências maliciosas): no mundo animal, é “matar
ou morrer”, numa alusão ao famoso western estrelado por Gary Cooper.
Imagem: televicentro.hn
Definitivamente, pelo que vejo nos
programas de TV, esses animais não têm um minuto de sossego, vivem em
permanente estado de tensão. Talvez exista um que fuja à regra, e que seria o
caso das hienas. Entretanto, uma hiena é a última coisa que eu queria ser na
vida: aquele animal feio, horroroso, e que, ainda mais, fica dando risada. Uma
hiena ri porque ninguém ainda teve a ideia de colocar na sua frente um espelho.
Se ela se visse no espelho, iria chorar amargamente, quem sabe, chegando ao
ponto de dar um tiro na própria cabeça. Vai ser feia assim lá no caixa-prego!
Entre os animais domésticos, existem os
jumentos, cavalos, burros e bois. A possibilidade de ser um boi não é de todo
ruim, caso eu dê crédito ao Madurino Cruz que, quando vai até Iguaçu, tem tido
longas e agradáveis conversas com a vaca Mimosa, aquela de olhar afetuoso.
Quanto a ser burro, precisei de um
tempo para pesquisar seu sentido. Por princípio, confundia burro com o asno, o
que não tinha nada a ver. Debruçado em
laboriosa pesquisa, para atender às exigências intelectuais dos leitores, vi: quando
um jumento (asno) “pula a cerca” e cruza com uma égua, nasce uma mula ou um
burro; quando uma jumenta cruza com um cavalo, sai um bardoto. Estou falando
isto por duas razões: primeira, restabelecer a dignidade dos jumentos, jegues
ou anos; segunda, dizer que os burros, as mulas e os bardotos são os párias na
escala animal, ao ponto de serem estéreis. Portanto, quando quiser, de fato,
falar mal de alguém, chame-o de burro, mula ou bardoto, já que jumento (ou
asno) não é burro coisíssima nenhuma (as éguas que o digam). Fechando a
estafante pesquisa, quero dizer que descarto a possibilidade de ser um burro;
um jumento, talvez.
Agora, retomando o fio da meada, que
quase havia se partido por causa de preocupações genealógicas, o que eu não
gostaria é de ser um cachorro. Está certo que muitos deles atingiram patamares
de astros, estrelas. Já foi o tempo em que o cão comia o pão que o diabo
amassou com o rabo. Agora, ele come de caviar para cima, com o quilo de ração
ultrapassando o preço do filé mignon.
Depois, tem mais um detalhe
desabonador: de tanto conviver com os humanos, os cães começaram a adquirir
suas neuroses. Outro dia, fiquei sabendo, um pequeno burguês, chegando de uma
viagem internacional de passeio, teve que levar correndo seu animalzinho de
estimação ao psiquiatra, pois apresentava sintomas de stress e depressão. Está,
agora, o queridinho, fazendo terapia, com duas sessões semanais.
Quando estudante, meu tio Elidério
quase foi expulso do colégio. Um dia, ele foi chamado à sala do diretor. Esse
lhe disse:
- Os bedéis falam que você é um
adolescente autossuficiente, indiferente e revoltado. Estou pensando seriamente
em expulsá-lo do colégio.
Não fez isso porque nem ele mesmo sabia
o significado do termo “autossuficiente”. O diretor ficou na dúvida se aquilo
era uma crítica ou um elogio. Meu tio foi salvo por um termo obscuro.
Voltando à minha pesquisa de um animal
confiável, creio que o gato reúne esses predicados ditos acima. Além disso, ele
é afetuoso, gosta de passar o rabo entre as pernas das pessoas, é tido como o
maior amigo dos poetas (!), é discreto, muito diferente do cachorro, que faz de
tudo para chamar a atenção e, no fim, acaba passando a perna nos próprios
antigos donos, agora chamados tutores.
O gato também fica muito na dele, tem
um senso de independência que admiro. O inconveniente é, como sempre, a
proximidade dos humanos e o risco de virar carne para churrasco.
Chegando aos termos, lembro-me de
Pierre Weil quando disse que cada ser humano carrega dentro de si estes três
animais: um boi, um leão e uma águia. Talvez por isso a vida seja essa luta
irreconciliável do indivíduo consigo mesmo em busca de uma paz inalcançável,
com o boi arrebentando com a camada de ozônio, a águia dando bicadas no leão,
que tenta comer o boi. Quando chega à outra margem, o sujeito está em
frangalhos, sem nenhum tipo de conclusão sobre o que veio fazer aqui deste lado
do rio.
De minha parte, eu já disse, em tempos
passados, que tudo érelativo, até o pronome relativo. Se
está certa a teoria da transmigração, fazem bem os hindus que cultuam animais,
notadamente os bois, as vacas e os ratos. Se for de todo impossível driblar a
ordem do professor de redação, vou me mandar para a Índia na pele de um desses
animais.
A razão desta carta é particular,
mas, por falar de um tema provocativo, acho por bem torná-la de domínio
público.
Estarei falando de meu amigo
Elidério e de seu descrédito em relação a um dos valores mais cultuados pelo
ser humano: a amizade.
Elidério chegou a um ponto da vida
em que passou a duvidar da existência desse sentimento, e tudo por causa de uma
decepção grave com uma pessoa que ele tinha na conta de grande amigo, o Maurilênio.
Como provocação, eu lhe pergunto,
Leiturino: acredita você na amizade sincera? Ou será que você acredita que as
pessoas só se aproximam das outras movidas por interesses?
No fundo e a bem da verdade, acho
que estou me precipitando ao fazer estas indagações. Melhor será narrar os
fatos, para que você tire suas próprias conclusões.
A amizade entre Elidério e
Maurilênio começou na adolescência e perdurou por muitos anos, já adultos. Em
certos momentos, por razões profissionais, ficaram alguns anos sem se ver, mas
sempre procuravam repassar notícias um para o outro. Nos últimos anos, ficaram
bem próximos, tendo, inclusive, feito juntos várias viagens de passeio.
Anos atrás, Maurilênio propôs a
Elidério escreverem um livro. Tinha ele relações com editores, fazendo crer não
ser difícil encontrar um que levasse em frente a publicação do trabalho.
Elidério se entusiasmou com a proposta, logo dando conta da parte que lhe
coube.
Foi então que Maurilênio começou um
jogo de protelar a ida até a editora, fato que deixava o amigo cada vez mais
frustrado.
Como a situação não se resolvia,
Elidério resolveu publicar por conta própria o que havia escrito. Mas ele
precisava de alguém para fazer uma revisão do texto. Pediu esse favor ao
Maurilênio que, mais uma vez, ficou adiando sua avaliação. Adiou tanto até
Elidério perder a paciência:
- Sinto muito ter tomado o seu tempo
– falou ele, certo dia, estando sentados á mesa em sua casa. – Peço-lhe
desculpas por querer que você se ocupe com coisas menores, insignificantes.
No fundo e a bem da verdade, foi a
partir daí que eles cortaram as relações, não mais se falaram.
Elidério recorreu, então, a uma
ex-cunhada que, prestativa, fez a revisão e o prefácio do livro, editado com
recursos particulares.
- Que coisa feia a atitude do
Maurilênio, enchendo a cabeça de Elidério de promessas não cumpridas! – estou,
aqui, falando por você, Leiturino.
- Mas isso não foi tão ruim –
haveria de ponderar o Elidério. – Acabou que eu mesmo banquei a edição do
livro.
A partir de agora, Leiturino,
transcrevo um diálogo que tive com Elidério.
- Que ótimo! – falei. No fundo e a
bem da verdade, quer dizer que valeu o ditado “há males que vêm para bem”.
- Em termos, porque, como não tenho
jeito para vendas, o livro saiu pouco e acabei tendo prejuízo financeiro.
- Que pena! Isto é ruim, deveras.
- Mas não, não foi tão ruim assim.
Teve uma amiga que, ela só, comprou cinquenta exemplares para presentear alguns
conhecidos, fazendo questão de pagar o dobro do valor de cada livro. Ela disse
que o preço que eu cobrava era irrisório, muito aquém do valor real.
- Que bom! Só por essa, teria valido
todo seu sacrifício.
- Embora tenha tido o caso de uma
pessoa que, mesmo tendo recebido o livro como doação (contrariando o ditado “de
cavalo dado não se olha os dentes”), achou que eu estava ofendendo o povo de minha
cidade natal em um dos textos, quando disse que o cinema de lá tinha pulga, além
de falar outros desaforos.
- Que coisa! Um escritor está
sujeito a ouvir elogios e críticas.
- Como desdobramento – falou
Elidério – acabei fazendo parceria com minha ex-cunhada e criamos um blog, que, no próximo vinte e seis de outubro, completa três anos de vida, tendo, só eu, publicado 156 crônicas.
- Isso é que é coisa boa, não é
mesmo?
- Em termos, pois não conseguimos
expandir o número de leitores, o que não deixa de ser frustrante.
- Está aí uma coisa chata.
- Pode ser, mas eu penso que escrevo
para as “nuvens”, isto é, para leitores do futuro. E tem também a frase dita
por minha parceira que eu acho bonita: “escrever é a arte de resistir”, embora
eu não saiba a que estou resistindo.
- Esta frase é meio enigmática, mas,
no frigir dos ovos, tudo acaba bem, não é mesmo?
- Sei não. Com os escritos, passei a
frequentar ambientes literários.
- Que ótimo!
- Foi lá que me dei conta de que
escritores são ególatras, não suportam concorrência. Quando são especialistas
em gêneros diferentes, até que há certa tolerância; agora, quando são do mesmo
gênero, aí eles não se bicam mesmo.
- Puxa, eu não sabia desta!
- É o que acontece. Quando você lê
entrevista de um escritor, ele só tem elogios para os que estão mortos e enterrados.
Estou falando assim porque tem escritor morto, mas que ainda não foi enterrado.
- É, eu li, tempos atrás, entrevista
de um famoso que, perguntado sobre os autores que admira, só teve elogios para
Shakespeare e outros que se foram há muito tempo; para os atuais, nem uma
palavrinha de elogio.
- É o que você está vendo.
- Pelo que consta, estou vendo
também que a falta de consideração e respeito é generalizada. Daí, no fundo e a
bem da verdade, eu não entender sua mágoa com Maurilênio.
- Eu não estou magoado de maneira
séria. É só uma magoazinha e, pelo que você viu, a enrolação do Maurilênio
acabou me proporcionando alguns bens. Eu quero que você conte isso para o
Leiturino, para que ele repasse ao Maurilênio.
- Algum outro recado?
- Pode dizer que tive um infarto,
mas que me recuperei bem.
- Algo mais?
- Pode falar também que fizemos,
minha esposa e eu, juntamente com sua irmã e marido, um passeio até a Europa,
com visita a três países.
- Você está falando isto para deixar
o Maurilênio mordendo o dedo de raiva e inveja?
- Absolutamente. Ele é muito mais
viajado que eu. Meu currículo de viagens é fichinha diante dele. Mas fala
também do livro, só a parte boa: que a capa ficou bonita e a impressão bem
feita. Não se esqueça de mencionar o blog, que já teve acesso de leitores de
vários países.
- Estou achando que você pede para
dizer estas coisas porque está se sentindo magoado.
- Que nada! Estou bem, mas não faz
mal deixar o Maurilênio com um pouco de sentimento de culpa. Fala para o
Leiturno não se esquecer de mencionar que minha filha já está terminando a
segunda residência médica, que ela já passou num concurso da Prefeitura.
- Algo mais?
- Aproveita para dizer que fizemos
uma reforma na casa (o Maurilênio gostava muito de passar umas horas aqui); ela
ficou tão acolhedora que muitas pessoas dizem que nem preciso sair para buscar
distração e descanso.
Leiturino, este foi o teor de minha
conversa com Elidério. Peço-lhe o favor de repassar todas estas informações
para o Maurilênio.
Quanto à minha opinião, no fundo e a
bem da verdade, eu creio que uma amizade sincera só mesmo naquela música de
Renato Teixeira, que estou lhe enviando em anexo, via Youtube. As pessoas
tendem a tolher o potencial dos amigos, por não acreditar em suas capacidades.
Não foi isso que ocorreu quando Maurilênio desacreditou da capacidade do Eleutério?
Será que não existe amizade com pesos iguais, tendo sempre um que se destacar?
Será que nossos piores inimigos são os nossos amigos?
Desculpe, Leiturino, mas, depois da
conversa com Elidério, minha cabeça anda um tanto confusa, ainda amais com esse calor de "rachar mamona" e estorricar os neurônios. No fundo e a bem da
verdade, não seriam todos os humanos ególatras? Será que só poderei encontrar
amor sincero no cãozinho lá de casa, o Thor? Pensando em tudo isso, estou me
lembrando da frase pronunciada pelo Maurilênio, ele próprio: “As pessoas só se
aproximam de você motivadas por secretos interesses. Em outras palavras, não
existe amizade desinteressada”. Estas foram as suas palavras, no fundo e a bem
da verdade.