Para
o Waldemar Carabina, amigo de tempos passados e que, agora, tenho a alegria de reencontrar.
Por
esses dias, através de uma rede social, conterrâneos têm repassado a Elidério várias
fotos de sua infância junto a colegas de Ensino Primário, hoje chamado de
Ensino Fundamental.
Além
da dificuldade inicial em se reconhecer, Elidério foi tomado de agradável
surpresa: como ele era um menininho danado de bonito!
Não
vale dizer que todos os filhotes são bonitos, até mesmo um de crocodilo ou de
hiena. Comparado com seus colegas, Elidério se destacava por traços diferenciados,
ao ponto de um conterrâneo comentar: “- Até parece um anjo!”.
Entretanto,
Elidério não quer que eu fique aqui “rasgando seda” sobre sua antiga beleza,
mesmo porque “águas passadas não movem moinho”, e ele concorda muito bem com as
palavras de Millôr Fernandes, quando diz que “toda fotografia antiga é uma
punhalada”; o que ele quer é organizar uma enciclopédia de antigos ditos
populares, explicando seu sentido e dando exemplos. Assim como as fotos de sua
infância, essas expressões populares, pelo desuso, podem cair no esquecimento
coletivo. Resgatá-las seria, no mínimo, trazer um pouco de luz para determinado
momento histórico.
Como
Elidério só sabe falar, não dispondo de um mínimo de habilidade de redação (já
teve), ele sempre recorre aos meus préstimos quando quer documentar algo. Eu
funciono como um ghost writer, embora não receba um “tostão furado” pelo meu
trabalho. (Está aí um tema para futura investigação, onde poderei desenvolver a
tese de que o “dólar furado” foi plágio do “tostão furado”.)
Os
verbetes surgem aleatoriamente, dependendo
do momento. Assim é que iremos começar falando sobre um, que será alinhado na
letra “Q”.
QUANDO A ESMOLA É DEMAIS, O SANTO
DESCONFIA
lidério
conta que, em seu tempo de adolescente e começo de juventude, viveu dias de
penúria, não dispondo de dinheiro para quase nada.
Naquele
tempo, a medicina não havia se tornado esse balaio de encrenca que é hoje, com
quase tudo sendo proibido. As pessoas cultivavam sem traumas ou sentimentos de
culpa os mais variados vícios, como o de fumar, por exemplo. Fumava-se em tudo
quanto era lugar: nos ônibus, as escolas, nos cinemas.
Um
jogador de futebol, veja bem, chegou ao desplante de se tornar garoto-propaganda
de uma marca de cigarro. O mote da publicidade era: “É preciso levar vantagem
em tudo, certo?”. Outra, com conotações sexuais, falava de um “fino que
satisfaz”.
As
pessoas fumavam nos cinemas, já disse. O foco do projetor na tela, visto de
lado, mostrava a fumaceira em que a sala de projeção estava infestada, infectada. Enquanto
isso, a película exibia artistas mais fumando do que fazendo outra coisa. Em Casablanca, Humphrey Bogart, antes de
dar um beijo na estonteante Ingrid Bergman, tinha que soltar suas baforadas.
Assim,
com tantos maus exemplos, Elidério começou a fumar quando tinha seus quinze
anos de vida. Raramente comprava um maço; os cigarros eram, segundo expressão
da época, “filados”. Quando alguém era muito “filão”, também era chamado de
“serrote”.
Waldomiro
Espingarda, que tinha esse apelido porque soltava “pum” pra tudo quanto era
lado, em qualquer hora do dia ou da noite, pois
bem, Waldomiro, apesar de peidorreiro, tinha um coração generoso. Um seu parente
trabalhava numa fábrica de cigarros, fábrica essa situada em bairro próximo ao
centro da cidade. Esse parente repassava ao Waldomiro cigarros que apresentavam
defeitos de fabricação, mas que eram fumáveis e tragáveis. Elidério recebia
muitos como doação.
Waldomiro
também chegava a “filar” cigarro de
Elidério, quando esse tinha algum. Não chegava a “filar” um cigarro inteiro;
ele só se aproximava e dizia;
- Me deixa dar uma tragada aí.
Elidério
suspirava angustiado; sabia o que viria pela frente: Waldomiro aspirava
profundamente e punha o cigarro na boca. Elidério via o cigarro, com uma só
tragada, ir se transformando em cinza. Quando ele só tinha um toquinho para ser
segurado, era devolvido com as palavras:
- Obrigado, vô.
É
que, não sabemos por que, Elidério tinha apelido de veio (é), de vô.
A
pior desventura de Elidério com cigarro aconteceu quando começou a fazer o
antigo Curso Científico, agora chamado de Ensino Médio. Então, ele era assíduo
“filador” de um colega chamado Loprefâncio Celestino, podendo mesmo ser catalogado
por este como “serrote”.
Todo
dia, pelo menos por uma vez, lá vinha o “pidão”:
- Você pode me emprestar um cigarro?
Loprefâncio
nunca fez um gesto de recusa. Houve até o dia em que se antecipou ao pedido,
oferecendo a Elidério um cigarro.
Um
tanto surpreso com tanta atenção, mas nem um pouco desconfiado, pegou o cigarro
e foi fumá-lo, sentado em sua carteira, enquanto aguardava o início das aulas.
Viu que seus colegas o olhavam apreensivos; sorriu para todos, enquanto dava
suas baforadas.
Em
determinado momento, quase foi arrancado da cadeira e saiu voando feito um Sputnik.
Foi como se tivesse havido um estouro de foguete, seguido de muita fumaça:
Loprefâncio havia descascado a pólvora de vários palitos de fósforo e colocado
tudo no meio do cigarro. O riso foi geral.
Para
este tipo de história, a cultura popular ensina: “quando a esmola é demais, o
santo deve desconfiar”. O “santo” do presente relato, Elidério, não desconfiou
da tramoia que Loprefâncio estava lhe aprontando por dois singelos motivos: 1º)
para fazer jus ao ditado de que “toda regra tem exceção”; 2º) por causa de sua
lerdeza mental, também denominada PFC (Prolapso de Fim de Curso).
Etelvaldo Vieira de Melo