DENOTAÇÃO, CONOTAÇÃO, EXTENSÃO

O filósofo Norberto Bobbio, se não for para colocar em dúvida as palavras de seu filho Marco – famoso cardiologista italiano – bem como as do tradutor de sua entrevista a uma revista de circulação nacional, dizia que “o homem de cultura valoriza a dúvida”.
Preciso retomar a entrevista para verificar a precisão dos termos. Estou em dúvida se ele disse: “o homem de cultura é aquele que valoriza a dúvida”, ou: “o homem de cultura gosta de valorizar a dúvida”, ou: “o homem de cultura sabe valorizar a dúvida”, ou – em última instância: “o homem de cultura costuma valorizar a dúvida”. Veja você que todas as proposições remetem a interpretações diferentes.
Mesmo não dispondo dos termos exatos da declaração do filósofo, lembro-me que fiquei em desacordo com suas palavras. Num primeiro momento, usei daquela clássica saída tantas vezes citada nos romances de Agatha Christie: a culpa é do mordomo, ou seja, do tradutor. Tudo porque não faz sentido um filósofo colocar a dúvida em patamar tão elevado, no nível da admiração ou espanto – ponto de partida da disposição filosófica.
Existe uma incongruência, uma discrepância entre dúvida e admiração. Colocadas lado a lado, a dúvida sufoca e mata a admiração.
Vou me servir de um exemplo bem simples para ilustrar esta suposição: Olavo Rocha duvida que algum diretor de cinema nacional possa produzir um filme que preste. Entre se aventurar a ir até uma sala de exibição e a dúvida, prefere ficar com a dúvida. (Antes que alguém venha com pedras pra cima do pobre coitado, é bom considerar que ele possui uma leve perda auditiva, e as salas de exibição deixam a desejar no quesito sonoplastia.)
Continuando: você duvidar do potencial de alguém com personalidade formada, isso pode ser um ato inconsequente, mas vai duvidar da capacidade de um adolescente, mais inseguro e tremiliquento que doce de “maria mole”... Minha autoconfiança como aprendiz de redação certamente sofrerá um abalo sísmico se meu professor manifestar de público suas dúvidas sobre minha capacidade literária. Ele pode pensar assim, mas que esse seu pensamento fique trancado a sete chaves!
Dando um desfecho à dúvida, para que não reste mais nenhuma, sendo todas demolidas como pedras sobre pedras, só resta acrescentar que ela é o vestíbulo do preconceito, um mal que atinge as pessoas, quando chegam a certo estágio de vida e passam a achar que sabem das coisas.
Norberto Bobbio, na citação anotada acima, emprega uma expressão que avalio como extremamente perigosa: “homem de cultura”.
O que ele está querendo dizer com isso? Estará se referindo a alguém instruído, de muita leitura? Afinal, o que quer dizer “uma pessoa culta”?
Quando o tema é “cultura”, as pessoas, em geral, ficam intimidadas e não se atrevem a dizer o que pensam, mesmo sendo a constatação óbvia de que “o rei está nu”. Deixam a crítica para os críticos profissionais. Aí, o galinheiro fica por conta das raposas, sendo que não existe nada mais confuso do que a cabeça de um crítico profissional. Isso tanto é verdade que Millôr Fernandes, no alto de sua sabedoria, chega a perder a compostura quando fala a respeito: “Às vezes só ao ler a crítica percebemos que a merda de filme que vimos no dia anterior é uma obra genial”.
Com o respaldo das palavras do próprio Millôr (“Não precisamos ser especialista em nada para fazer crítica. Sem jamais usar um martelo ou um formão qualquer pessoa sabe se uma cadeira incomoda ou não o seu traseiro. Em arte ou sabão de roupa, criticar é direito de todo mundo”), tenho notado, não me servindo da dúvida, mas da observação e análise cuidadosa, que muitas manifestações ditas “culturais” não passam de verdadeiras mediocridades.
Assim, mesmo correndo o risco de provocar arrepios de indignação, conto que, dias desses, estive fazendo um passeio em Inhotim, nas proximidades de Belo Horizonte, lugar conhecido pela exuberância de sua flora, e onde galerias de arte e exposições tentam um diálogo, nem sempre bem sucedido, com a natureza.
É claro que uma obra artística está sujeita a diferentes leituras, podendo dizer muito para determinada pessoa e quase nada para outra. Entretanto, o que vi em Inhotim pareceu-me algumas vezes absurdo. Os guias tentam “dourar a pílula”, inventando um tanto de explicações. Apesar do esforço, achei de absoluta falta de sentido umas paredes chapiscadas próximas a uma mata. Poderia dar ideia de um labirinto, o que faria sentido: a ação do homem sobre a natureza muitas vezes o leva a perder seu rumo, deixando-o num beco sem saída. Entretanto, com tal interpretação estaria procurando “chifre em cabeça de cavalo”.
Quando vi três carros fusquinhas alinhados sobre um terreno de grama, eu me adiantei ao guia e comentei:
- Era uma vez três viajantes que rodavam em seus carros pelo interior de Minas. Quando aqui chegaram, aconteceu da gasolina acabar; então, tiveram que deixar os carros e eles assim ficaram até hoje. Tal fato deu origem ao nome do local, já que os nomes dos viajantes eram Ivo, Totonho (conhecido como Nhô) e Vicentino (apelidado de Tim). Juntando suas iniciais e apelidos, o local ficou conhecido como Inhotim.
É isto que eu sei e é isto que deduzi depois de intensa caminhada, com muitas subidas e descidas sob um sol ainda mais intenso. Se tivesse utilizado daqueles carrinhos de aluguel, talvez minha avaliação tivesse sido também outra. Talvez venham daí as observações mal-humoradas sobre a parede com chapisco e os fusquinhas alinhados.
Infelizmente, a cultura em nosso país custa caro, e eu não passo de um pobre coitado pobre.
Etelvaldo Vieira de Melo

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