A PROMESSA


Tertuliano já havia atingido o cume do pico da Neblina, numa alegoria de que viver seja escalar o tal do pico da Neblina. Quando lá chegou (no cume do pico), o tempo estava nublado e não se via nada da paisagem. Por isso, Tertuliano tratou de descer a encosta, tendo cuidado para não levar um escorregão fatal. Já haviam lhe falado das três coisas que derrubam, mandam para o além aqueles que atingiram a melhor idade (eufemismo para dourar a pílula da velhice): pneumonia, caganeira e tombo. Por isso, ele descia a ribanceira com cautela, segurando nos ramos e troncos das árvores.
            
Quando mais novo, e os relógios eram movidos à corda e os telefones públicos usavam o sistema de fichas, Tertuliano fez uma promessa. Ele era torcedor fanático de um time que se vangloriava, em seu hino, ter sido campeão do gelo. Ninguém sabia o que isso queria dizer; muitos imaginavam que seria alusão a um torneio entre fábricas de sorvete e picolé. De qualquer modo, seu time só abiscoitava títulos regionais, chegando uma vez somente ao título nacional.
      
O sonho de Tertuliano era ver seu time conquistando um título continental de expressão. Num rompante de paixão, prometeu: - Vendo uma propriedade, extremamente valiosa, e faço doação para as famílias pobres da cidade, caso meu time conquiste o mais importante título continental: a Taça Libertadores.
            
O tempo passou, com Tertuliano torcendo para que seu time abiscoitasse a segunda maior glória de uma agremiação de futebol, a de campeão da Taça Libertadores da América. E não é que seu time acabou chegando lá?
            
Na noite da decisão, Tertuliano ficou com o coração na mão, emocionado; enquanto isso, foguetes espocavam pela cidade de forma ensurdecedora, levando cães à loucura.
            
No dia seguinte, as salas de psiquiatria canina ficaram abarrotas de clientes, todos tomados pela síndrome do pânico. Deixaram de comparecer à consulta os cães das classes C e D, mais os párias dos vira-latas. Enquanto isso, Tertuliano ficava rindo por fora, mas tomado de angústia por dentro. A ficha havia caído, isto é, ele estava pensando na promessa descabida que havia feito em tempos idos.
            
Tertuliano se sentia na obrigação de cumprir a promessa; por outro lado, abrir mão de hum milhão e duzentos mil reais (valor atualizado de sua propriedade)... Pensou, pensou, buscando uma alternativa para dar um desfecho ao seu drama.
            
Quando estava indo buscar a Luluzinha, sua cadelinha de estimação, lá no Psiquiatra, veio a ideia luminosa. Mais do que depressa, através das redes sociais e sites de vendas, fez publicar o seguinte anúncio:
            
VENDE-SE PROPRIEDADE EM ÁREA NOBRE POR 120 REAIS. O INTERESSADO DEVERÁ ADQUIRIR, NO ATO DA COMPRA, UM CÃO DE RAÇA E PEDIGREE, NO VALOR DE HUM MILHÃO, CENTO E NOVENTA E NOVE MIL, OITOCENTOS E OITENTA REAIS.
         
Entre as várias ofertas, Tertuliano acabou fechando negócio com um interessado que lhe pagou a quantia em dinheiro vivo. Os 120 reais foram repassados para uma instituição de caridade. Deste modo, Tertuliano julgou que a promessa estava sendo religiosamente cumprida. Os hum milhão, cento e noventa e nove mil e tantos reais foram usados em aplicações variadas.
            
Caso você esteja com a suspeita de que o cão da venda é a Luluzinha, acertou. Tertuliano prevê dias gloriosos para seu time do coração, não está nem pouquinho disposto a gastar com psiquiatras tratando de seu cachorrinho, por mais Luluzinha que seja.
            
Ao final de tudo, Tertuliano ficou rindo à toa: seu time conquistou o título continental; com a venda da propriedade, ficou livre dos impostos territoriais; desfazendo-se de Luluzinha, economizou na compra de rações e gastos com veterinário e psiquiatra animal; finalmente, as aplicações financeiras lhe renderam bons dividendos. Agora, ele está sonhando mais alto: quer fazer doação a partir de um condomínio residencial de luxo, caso seu time conquiste o título maior de campeão mundial. Ele está achando que encontrou a fórmula de atrair a sorte, usando de falsas promessas e de muita esperteza. Pode?
Etelvaldo Vieira de Melo


             

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