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Leovigildo
– Leo, para os íntimos – teve uma infância e adolescência pra lá de difícil;
até hoje, quando pensa no que passou, costuma ficar de boca aberta que nem
burro que comeu urtiga. Sua mãe enviuvou cedo, tendo que dar conta sozinha do
cuidado de sete rebentos, sendo Leo o que vinha na rabeira, a rapa do tacho,
isso numa época em que as castas menos favorecidas não dispunham dos favores de
bolsas família, educação, botijão e outras tantas mais.
Leovigildo
foi criado, pois, com rédea curta e estômago nas costas. Sua mãe, ao contrário
do que se podia imaginar, não usava de coerção física. Ela incutia na mente dos
filhos princípios religiosos e morais, através dos cujos exercia seus mátrios
poderes. Fazia isso tão bem que parecia o Big Brother, de 1984, o Grande Irmão,
uma sombra onipresente em todos os momentos da vida dos filhos.
Leo
sentia que seus atos, pensamentos e omissões eram monitorados 24 horas por dia.
Só faltava ele vislumbrar pra tudo quanto é lado placas com os dizeres “Sorria, você está sendo filmado”. O
coitado não se achava livre nem nos momentos em que se trancava no banheiro,
ficando naquela posição de “O Pensador”, de Rodin.
(Estou
lhe repassando esses informes para que tenha uma ideia de como era a vida de
nosso personagem, ao tempo em que lhe ofereço a oportunidade de aumentar seu
acervo cultural. E não precisa me agradecer por isso; só espero que tenha paciência
suficiente para levar a leitura até seu desfecho.)
A
pãe de Leo (pãe = mãe que assumiu a condição de pai, ou vice-versa) acalentava
o sonho de ver seu rebentinho seguindo a carreira religiosa. Por isso, foi com
um arrepio pelo corpo, seguido de vertigem, que ouviu dele, já beirando a fase
da maioridade, a assertiva de que iria, finalmente, a um baile de carnaval.
-
Como pode pensar em fazer isso, filho do meu coração? – falou ela com voz
prestes a irromper num choro. – Você não sabe que ali é um antro de perdição,
casa do capeta e de todos os seus súditos?
-
Ora, mãe – falou Leo, tentando se armar de paciência. – Ali é apenas um clubezinho,
onde as pessoas vão buscar distração inocente.
-
Distração inocente... – imitou ela, em tom de deboche. – Você não faz ideia do
que mocinhas são capazes de aprontar, depois de terem tomado, Deus que me
livre, bebida alcoólica. – A mãe falou isso com os olhos arregalados, a ponto
de saltarem das órbitas.
Leo
pensou: “É isso mesmo que quero ver!”, mas o que disse foi:
-
Manhê, o meu diretor espiritual falou que o carnaval é uma festa religiosa que
antecede a quaresma; a palavra significa “despedida da carne”: “carnis valles”.
É uma festa que abre os quarenta dias de jejum e de abstinência até a Páscoa.
-
Muito bonito o que você falou, mas não me convence.
-
Veja, mãe, a senhora não sabe e nem tem obrigação de saber, mas o carnaval é
mais animado onde a tradição religiosa é mais intensa, forte, como é o caso de
Salvador, Olinda e até mesmo o Rio de Janeiro, com seu sincretismo, aquilo que
Stanislaw Ponte Preta, em alegoria, chamava de Samba do Crioulo Doido. Aqui em
Minas, o carnaval tem destaque em cidades como Sabará, São João Del Rei, Diamantina
e Ouro Preto, todas fortemente marcadas pela tradição religiosa.
- Bah... – resmungou a mãe. – Agora –
desferiu ela, com os olhos vertendo lágrimas, - se quer me matar de desgosto,
vai.
E Leo foi, quer dizer, tentou ir.
Chegou a entrar no salão de festas, mas carregava a sensação de que todos os
presentes estavam a observá-lo. Soterrado de timidez, achou por bem tomar umas
bebidas para animar. Acabou passando mal, indo “chamar o mico”, seus pais,
todos os familiares, a micaiada toda. Voltou para casa amarrotado e amargurado.
Não deu um pulo sequer no salão, nem viu as meninas em vestidos atrevidos e
cheias de liberdade.
O tempo passou. Hoje, Leovigildo
carrega o trauma de carnavais que não brincou, das sacanagens que não viu nem
aprontou. Ele está fazendo um curso de redação. Sabe qual o tema da semana
proposto pelo professor? Logo na abertura da aula, sem saber em quantas feridas
estaria pisando, foi logo dizendo que o tema da aula seria o carnaval. Pediu
pros alunos fecharem os olhos e vestirem uma fantasia ou desejo; depois, que
descrevessem um encontro ou um beijo. Leovigildo ficou bloqueado. Quando saiu
do curso, sentia-se como quem havia sido nocauteado com um cruzado no queixo,
só chegando em casa às altas horas.
Foi se recuperar três dias depois
quando, em conversa com Neguinho – não o da Beija-Flor, mas um jardineiro que
prestava serviço em sua residência – este lhe disse que iria trabalhar de
garçom num clube durante o carnaval. Os olhos de Leovigildo, que estavam
opacos, brilharam, e ele pensou: Taí uma boa ideia. Se não for adotá-la este
ano, que fique para o próximo. Trabalhando num clube e servindo bebidas para
homens e mulheres, vou acabar vendo coisas que irão me redimir dos traumas de
carnavais que não brinquei. Sei que, até em meus pensamentos, minha mãe haverá
de ficar horrorizada diante de tanta pouca vergonha, mas eu lhe direi:
"Não se aflija, mãe, que tudo isso é apenas carnaval. Quarta-feira
haveremos de passar cinzas, entrando de vez na quaresma da vida”.
Etelvaldo Vieira de Melo
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