LEIAM-ME, SE FOREM CAPAZES


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Imagem: acijs.com.br
                                             
Perder-me no exílio da memória de navegantes cativos, vencidos, afogados.
O olhar blasé em constante mobilidade guarda em mim a potência da viagem.
O objetivo: chegar ao porto impossível da linguagem.
Sapho na escritura, sirgo entre zonas inquietíssimas do corpo.
Figuro esse desejo: o oco, o vazio, a palavra copiosa.
Um malogro de linhas cruza o itinerário deste discurso.
Daqui o país é estrangeiro. É preciso ancorar o navio no espaço.
Sei: as letras fazem-se plásticas na ponta escura do cais.
A impermanência, afasia do fantasma, solta-me as páginas do livro sem causa ou finalidade.
Miro no ponto cego do mapa um lar hipotético: residência no refluxo dos termos.
Busco a loucura de fazer uma volta ao dia em oitenta mundos.
Portadora de passaporte em heteroglossias, finjo-me simulacro de todos os desejos.
Viajante de papel, tento escapar pelo espaldar da cadeira onde me inscrevo.
Escrevo...

Graça Rios

LET IT BE, SÔ!

Ivani Cunha

ENCONTRO DESMARCADO

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Imagem: fatosdesconhecidos.com.br

FÁBULA NEBULOSA 32: ENCONTRO DESMARCADO (*)
    Vô João era Raimundo de nascença. O apelido veio com a profissão, servente de pedreiro. A cor de sua pele era de um pardo indefinido, que ficava escondida por trás de uma mistura de cimento, poeira e cal. O cabelo encarapitado estava sempre grisalho, como se estivesse coberto de neve.
    Raimundo era conhecido pelo nome somente em casa, pela esposa e pelos sete filhos. Sua esposa, Clotilde, ora o chamava de Reimundo, nos momentos de braveza, ou de Mundinho, quando o mau humor lhe dava trégua. Os filhos invariavelmente o chamavam de paiê. Já Raimundo chamava sua mulher de Crotildes.
    Vô João, o Raimundo, morava na periferia da periferia da cidade, em um aglomerado próximo a uma fábrica. Todo dia da semana, quando o apito da fábrica tocava para a troca de turno das seis horas, ele já estava quase chegando ao centro da cidade. Ali, deveria tomar outra lotação até o serviço, pois era assim sua rotina: duas conduções pra ir, duas pra voltar.
    Durante o dia, ficava por conta do trabalho, com direito a uma pausa de uma hora para o almoço. Então, vô João se afastava discretamente dos companheiros e, de cócoras, abria a marmita. Via de regra, a comida era constituída de arroz, macarrão e feijão; de mistura, uma couve ou um tomate fatiado. A comida estava fria, mas ele não se importava, pois se achava também um boia-fria.
    Quando voltava para casa, de tardezinha, vô João passava num supermercado para comprar alguma coisa encomendada pela Crotildes. Nos dias de pagamento, a sacola ficava mais pesada.
    Foi justamente num dia de pagamento, estando já a caminho de casa (ele tinha que andar por cerca de 25 minutos, depois de descer do lotação), que vô João, estando muito cansado, sentou-se no chão, junto a uma pedra que estava à beira do caminho. Fechou os olhos e respirou fundo. Não sabe quanto tempo passou, mas se lembra de estar dizendo:
- Que vida mais ingrata a minha, sô. Melhor seria se me aparecesse a morte.
Nem bem pronunciou tais palavras, um vulto de negro surgiu à sua frente, carregando uma enorme foice ao ombro.
- Chamou, chamou? – perguntou a figura, com voz cavernosa.
Raimundo se encolheu, apavorado. A outra repetiu:
- Pois não, seu Raimundo. Em que posso ajudar?
Redobrando um pouco a coragem, Raimundo disse:
- Não dá pra senhora me ajudar a levar esses mantimentos até em casa?
Raimundo não sabe se, como concordância ou ameaça, a senhora de negro se aproximou. Ele, em desespero, começou a correr. Foi quando acordou e viu um cachorro preto roubando da sacola um pacote de salsicha. Colocando o cão pra correr, Raimundo pensou:
- Estou vendo: quem abre a boca sem pensar acaba engolindo sapo sem querer.
Outra Moral
Se é preciso ter cuidado com as pedras que estão no meio do caminho, mais ainda é preciso com as que estão lá pelas beiradas.
(*) Invento e/ou leitura de Fábulas Universais

Etelvaldo Vieira de Melo


SALVAR, COMO?

Graça Rios

POR QUE TER PRESSA?

Ivani Cunha

BBCr: CINCO ANOS DE VIDA!


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Imagem: Google Sites

Olá, amigo leitor.
Há cinco anos, Graça Rios e eu nos reunimos e, orientados por Cleber Silva – que cuidou de toda a parte técnica e legal, criamos este blog (para o Cleber, onde estiver, nossa gratidão). No dia 26/10/2012, surgiu a primeira postagem. O que irei relatar, a seguir, tem a ver com impressões minhas e não refletem, necessariamente, o que pensa a Graça. Ela, em outro momento, irá anotar sua opinião.
Pois bem. O título da primeira postagem era uma apelação e uma provocação: “Blogu’eus” apelava para um nome reconhecido e famoso (BBC) como uma espécie de “isca” para atrair distraídos leitores. Tive receio de empregar o termo, mas, depois de muito pensar, me convenci a deixar os escrúpulos de lado, já que a Internet me parecia "uma terra hostil e sem lei, frequentemente assaltada por bandoleiros modernos, denominados hackers, que infestam os computadores com vírus letais”; no entanto, justamente por isso, ali não era lugar para modéstia e eu deveria aproveitar todas as chances para aparecer. “Como cantava Tim Maia – aqui vale tudo”.
Desde o início, deixei claro que meu propósito era tratar os temas com leveza e bom humor. E assim foi, até o momento em que esbarrei nas questões políticas. Aí, tudo desandou: tornei-me ácido, agressivo, com a leveza e o bom humor indo “pras cucuias”. No entanto, não me arrependo do que andei dizendo. Para se ter uma ideia, já na segunda postagem, “Terrível, Assustador, Perigoso” – 03/11/2012, chamava a atenção para uma das causas de todo o desarranjo subsequente da política no país: os sistemas político e eleitoral (“o sistema político é que torna possível a corrupção; o sistema eleitoral impede a escolha dos melhores candidatos”). Em postagem de 28/12/2013, “Dia de Ano Novo: Morada das Fantasias e Desejos, dos Sonhos e Esperanças”, fiz uma espécie de premonição sobre os conflitos sociais que haveriam de explodir três anos depois: “Vivemos uma nova ordem... As autoridades, mais por culpa própria (pelos desmandos, pela impunidade e pela corrupção) perderam o controle social. Com isso, as pessoas se sentem soltas, mas perdidas, porque lhes faltam referências”.
Quero dizer que não gosto de tratar desses temas, aborrecidos e estressantes, mas não posso fugir deles. Uma reflexão crítica tem me ajudado a afastar do sectarismo, do dogmatismo. E isso é muito bom nesse momento conturbado, onde as agressões destemperadas correm soltas.
Em “Tudo Passa”, de 25/10/2014, comemorando dois anos do Blog, registrei: “Ao longo desse tempo, que se estende desde outubro de 2012, creio que mudei muito, que me tornei uma pessoa melhor, mais interessante... uma pessoa mais atenta à vida e aos acontecimentos, agucei minha curiosidade frente ao que é novo, melhorei meu vocabulário, aprendi muito ao compartilhar ideias com minha parceira de blog, retomei o hábito da leitura, produzi textos (104 publicados até hoje; em 2017, são 260) que, em outras circunstâncias, não haveriam de vir à luz. Resumindo, quero dizer que desenvolvi o hábito da reflexão. Hoje, posso fazer minhas as palavras de Aristóteles ao afirmar que ‘a vida sem reflexão não merece ser vivida’”.
Reafirmo tudo isso, agora que o Blog completa cinco anos de existência. Ao longo desse tempo, todos os sábados, religiosamente, com chuva ou com sol, estamos fazendo nossa postagem (a do dia 16/02/2013, “O Copo Vazio e o Papa”, foi feita do leito de um hospital, depois de ter tido um enfarto). A todos vocês que arranjam um tempo para a leitura destes textos, meu particular agradecimento. Espero continuar fazendo por merecer sua atenção, prometendo sempre retribuir com o melhor possível.
Finalizando, quero registrar com orgulho a presença de um novo parceiro, Ivani Cunha, ele que está postando especialmente cartuns, embora seja exímio com as palavras.
O Blog apresenta uma aparência moderna, graças ao trabalho do designer Lincoln Gileade.
Juntando tudo isso: Graça, Ivani, Lincoln, os cinco anos e vocês, não estou cabendo dentro de mim mesmo, tamanha a alegria.
Etelvaldo Vieira de Melo

O ANJOZIL

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Imagem: mestrekamel.blogspot.com.br
Quando eu nasci
um anJozil a jato
falou:
Ó brutal produto interno
que a linguagem delimitas
vai, escreve no espaço em branco
a impostura da Vossa história.
Tua palavra será citada
na geleia geral do país.

Eis o que o louco me disse
como roteiro de um caminho sem volta.
Ouvi o querubim
mascarado
mas o marasmo me tomou
pois caiu sobre a minha cabeça
o avião que ele tripulava.

Hoje desfolho bandeira
na maior leseira
y passo a limpo esta poesia
conformada sobre a imagem de mim.
Graça Rios


AH, ADOLESCÊNCIA...

Ivani Cunha

PERDAS

Para a criança que cada um deveria carregar consigo pela vida toda.


PERDAS
Um balão ficou preso
nos galhos de uma árvore
uma enorme árvore.
Não tem como tirar o balão de lá.

O balão é colorido
tem a forma de peixe.
Quando o vento sopra, fica balançando
de cá para lá, de lá para cá.

É muito bonito o balão preso
mas não vejo um menino sequer
aos pés da árvore
chorando, lamentando a perda do balão.

Será por quê? – pergunto pra mim mesmo.

Talvez, penso depois, porque
os brinquedos hoje
sejam descartáveis
e ninguém se apega de verdade
a um brinquedo.

A não ser eu, talvez
que na minha infância (desprotegido)
nunca tive um balão
um balão tão bonito, tão colorido.

Etelvaldo Vieira de Melo

OU ISTO OU AQUILO

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Imagem: thiagosurian.wordpress.com
Tu queres sono: eu, vigília
Tu queres calma: eu, Bastilha
Tu queres olhar e isenção: eu, fúria e indignação
Tu queres silêncio e saúde mental: eu, grito de morte e punhal
Tu queres eternidade: eu, o aqui e liberdade
Tu queres deliberação: eu, denúncia e punição

Tu queres o congresso dos maus
Eu, sobre ele, uma arena de sangue
e sal
Graça Rios


NÃO À CARESTIA

Ivani Cunha

DÚVIDA CRUEL

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Imagem:pausaprumcafe.blogspot.com.br
Por essas contingências do Tempo, Eleutério sente necessidade de usar um aparelho auditivo. Seu otorrino - aquele que se parece um pouco com Mr. Magoo, personagem de desenho animado, e que faz lembrar também Yoda, de Star Wars - é radicalmente contra; ele acha que devemos nos conformar com os percalços da idade. No entanto, Eleutério se vê pressionado por pessoas próximas, talvez cansadas de terem de repetir frases por várias vezes.
Você sabe: a gente só dá atenção àquilo que nos interessa. Por isso, acho bom você não considerar este tema desinteressante, já que, mais cedo ou mais tarde, ele vai bater à sua porta. Com Eleutério acontece agora, na flor de sua velhice.
Mas ele está em dúvida: usar ou não usar um aparelho para surdez? Para ter uma melhor resposta, procura observar as pessoas, trocando ideias com umas e outras. Viu – antes nem tinha reparado – que o amigo Adamor usava um aparelho. Eleutério quis saber o custo e como era usar o dito cujo.
       - Cara Pálida, é o maior barato, putzgrila – (ele tem mania de usar gíria antiga). – Comprei há dois anos, e custou R$25 mil.
       - Putzgrila digo eu – falou Eleutério, indignado. – Eu não quero um aparelho para ouvir até pensamento dos outros, não.
Outro que usa aparelho é o Marízio. Quando adolescente, os colegas diziam que ele era surdo por conveniência. Foram muitas as vezes em que, nas aulas, durante arguições, respondia coisas que o professor não havia perguntado. Quando esse chamava sua atenção, vinha com a desculpa: “- Peço desculpas, professor, mas entendi outra coisa”. O professor se conformava: “- Deixa por isso mesmo”. E o Marízio se dava bem.
Em casa, assim que vai dormir, ele pergunta para a mulher:
       - Maria, você tem mais alguma coisa para me dizer?
       - Não – fala a Maria. – Está tudo bem.
       - Então, boa noite – ele diz, enquanto retira o aparelho.
Eleutério gostou da ideia, achou tudo muito poético.
Um vizinho, o Nô, além de surdo é analfabeto, nem sabe olhar as horas num relógio. Diz que se orienta pelo Sol; quando chove ou o tempo está nublado, deixa-se levar pela barriga (hora de almoçar ou de jantar). Perguntado se não gostaria de usar um aparelho, falou:
       - Comigo não tem mais jeito. Com 87 anos de idade, agora é só esperar a hora de ir – diz ele, apontando para o céu, enquanto uma lágrima teima em rolar pelo seu rosto.
Nô é uma pessoa emotiva e de muita fé. Já falei sobre ele em texto passado. Lembra quando teve que tirar o dedão do pé numa cirurgia? Quando perguntado onde estava o dedo, respondia: “- O dedo ficou com o doutor Alfredo”.
Fazendo pesquisa de preços, Eleutério ouviu de uma fonoaudióloga:
       - Um cliente aqui da loja já refez seu testamento três vezes, depois que passou a usar um aparelho...
Usar ou não usar um aparelho? – Eleutério continua se perguntando. Fazendo o teste proporcionado pelas lojas de revenda, tem hora que pensa que sim: quando ouve sons antes não percebidos, como o cantar de pássaros soltos nas árvores. No entanto, tem momentos em que pensa que não é melhor, não. Como, por exemplo, quando ouve o relógio da cozinha de casa com um tic-tac parecido com aquele do filme “Matar ou Morrer”, ou, então, quando está dentro de um lotação. Se antes o barulho do motor mais as conversas pareciam fundo musical, agora parecem uma sessão de tortura, sem que ele possa ficar fazendo o que gosta: pegar uma caneta e papel, ficar escrevendo suas bobagens. Na verdade, o mundo está parecendo para ele uma grande sala de cinema, cheio de efeitos surrounds. Ao ouvir, por exemplo, a freada de um ônibus, ele quase enfarta.
Tem outra coisa mais séria. Eleutério sofre de um distúrbio neuropsíquico chamado PFL. Não se trata de uma sigla de time de futebol nem de partido político, mas de uma invenção sua (Prolapso de Fim de Curso), quando sua filha começou a estudar medicina e ele frequentava um curso de eletrônica. Tal nome não passa de uma forma delicada para designar lerdeza. Eleutério quer crer que seu PFL, ou retardo mental, se deve à sua surdez. Ele que, até agora, viveu conformado com sua lerdeza, está preocupado: vai que ela não tem nada a ver com sua perda auditiva e seja coisa dele mesmo. Coitado, como irá conviver com a verdade?
Etelvaldo Vieira de Melo