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Imagem:pausaprumcafe.blogspot.com.br |
Por essas contingências do Tempo,
Eleutério sente necessidade de usar um aparelho auditivo. Seu otorrino - aquele
que se parece
um pouco com Mr. Magoo, personagem de desenho animado, e que faz lembrar também
Yoda, de Star Wars - é radicalmente
contra; ele acha que devemos nos conformar com os percalços da idade. No
entanto, Eleutério se vê pressionado por pessoas próximas, talvez cansadas de
terem de repetir frases por várias vezes.
Você sabe: a gente só dá
atenção àquilo que nos interessa. Por isso, acho bom você não considerar este
tema desinteressante, já que, mais cedo ou mais tarde, ele vai bater à sua
porta. Com Eleutério acontece agora, na flor de sua velhice.
Mas ele está em dúvida:
usar ou não usar um aparelho para surdez? Para ter uma melhor resposta, procura
observar as pessoas, trocando ideias com umas e outras. Viu – antes nem tinha
reparado – que o amigo Adamor usava um aparelho. Eleutério quis saber o custo e
como era usar o dito cujo.
- Cara Pálida, é o maior barato,
putzgrila – (ele tem mania de usar gíria antiga). – Comprei há dois anos, e
custou R$25 mil.
- Putzgrila digo eu – falou Eleutério,
indignado. – Eu não quero um aparelho para ouvir até pensamento dos outros,
não.
Outro que usa aparelho é
o Marízio. Quando adolescente, os colegas diziam que ele era surdo por
conveniência. Foram muitas as vezes em que, nas aulas, durante arguições,
respondia coisas que o professor não havia perguntado. Quando esse chamava sua
atenção, vinha com a desculpa: “- Peço desculpas, professor, mas entendi outra
coisa”. O professor se conformava: “- Deixa por isso mesmo”. E o Marízio se
dava bem.
Em casa, assim que vai
dormir, ele pergunta para a mulher:
- Maria, você tem mais alguma coisa para
me dizer?
- Não – fala a Maria. – Está tudo bem.
- Então, boa noite – ele diz, enquanto
retira o aparelho.
Eleutério gostou da
ideia, achou tudo muito poético.
Um vizinho, o Nô, além de
surdo é analfabeto, nem sabe olhar as horas num relógio. Diz que se orienta
pelo Sol; quando chove ou o tempo está nublado, deixa-se levar pela barriga
(hora de almoçar ou de jantar). Perguntado se não gostaria de usar um aparelho,
falou:
- Comigo não tem mais jeito. Com 87 anos
de idade, agora é só esperar a hora de ir – diz ele, apontando para o céu,
enquanto uma lágrima teima em rolar pelo seu rosto.
Nô é uma pessoa emotiva e
de muita fé. Já falei sobre ele em texto passado. Lembra quando teve que tirar
o dedão do pé numa cirurgia? Quando perguntado onde estava o dedo, respondia:
“- O dedo ficou com o doutor Alfredo”.
Fazendo pesquisa de
preços, Eleutério ouviu de uma fonoaudióloga:
- Um cliente aqui da loja já refez seu
testamento três vezes, depois que passou a usar um aparelho...
Usar ou não usar um
aparelho? – Eleutério continua se perguntando. Fazendo o teste proporcionado
pelas lojas de revenda, tem hora que pensa que sim: quando ouve sons antes não
percebidos, como o cantar de pássaros soltos nas árvores. No entanto, tem
momentos em que pensa que não é melhor, não. Como, por exemplo, quando ouve o relógio
da cozinha de casa com um tic-tac parecido com aquele do filme “Matar ou
Morrer”, ou, então, quando está dentro de um lotação. Se antes o barulho do
motor mais as conversas pareciam fundo musical, agora parecem uma sessão de
tortura, sem que ele possa ficar fazendo o que gosta: pegar uma caneta e papel,
ficar escrevendo suas bobagens. Na verdade, o mundo está parecendo para ele uma
grande sala de cinema, cheio de efeitos surrounds. Ao ouvir, por exemplo, a
freada de um ônibus, ele quase enfarta.
Tem outra coisa mais
séria. Eleutério sofre de um distúrbio neuropsíquico chamado PFL. Não se trata
de uma sigla de time de futebol nem de partido político, mas de uma invenção
sua (Prolapso de Fim de Curso), quando sua filha começou a estudar medicina e
ele frequentava um curso de eletrônica. Tal nome não passa de uma forma
delicada para designar lerdeza. Eleutério quer crer que seu PFL, ou retardo
mental, se deve à sua surdez. Ele que, até agora, viveu conformado com sua
lerdeza, está preocupado: vai que ela não tem nada a ver com sua perda auditiva
e seja coisa dele mesmo. Coitado, como irá conviver com a verdade?
Etelvaldo Vieira de Melo