Antes da “entrevista”, preciso adiantar que tenho andado um pouco
arredio de grupos de rede social. Ultimamente, as manifestações têm sido tão
raivosas que prefiro não ler nada. O trabalho que tenho é só de apagar as
mensagens. Quando lia as postagens, estava sempre mal humorado, irritadiço e me
sentindo “emburrecido”. Agora, pelo menos, estou respirando melhor. A própria
Eliane Brum, para quem adianto um pedido de desculpas pelo atrevimento desta
“entrevista”, dizia que “não podemos ter os neurônios infectados pelo ódio, já
que uma das características do ódio é ser burro”.
ET: Eliane, vivemos um momento muito conturbado, de verdadeira
guerra ideológica, com ódio e burrice aflorando à flor da pele. Em meio a tudo
isso, chamou-me a atenção seu texto “Lula, o inconciliável”, que me pareceu
sério e comprometido com a verdade. Creio que ele pode nos fornecer valiosos
subsídios para entender e nos posicionar frente à atual conjuntura. Tomo a
liberdade de transcrevê-lo resumidamente, ordenando as ideias no formato de
perguntas e respostas.
Sendo o Brasil um dos lugares mais desiguais do mundo, como foi possível
a eleição de Lula para presidente em 2002, ele que não era um representante da
elite?
EB: Lula se comprometeu com o mercado a manter as principais
linhas da política econômica. Este foi o pacto. Já sua mágica foi conciliar as
desigualdades, promovendo melhoria das condições das camadas mais pobres, sem
tocar na renda dos mais ricos nem fazer mudanças estruturais que atingissem
seus privilégios.
ET: E quais foram as conquistas das camadas mais pobres?
EB: Enumerando algumas: - aumento real do salário mínimo; -
redução significativa da miséria; - ampliação do acesso à universidade; -
melhorias importantes no sistema único de saúde (SUS); - criação do Estatuto da
Igualdade Racial; - garantias de crédito para os mais pobres.
ET: Por que essa mágica não deu certo?
EB: Porque num país tão desigual quanto o Brasil, não é possível
fazer justiça social sem mudanças estruturais – ou sem pelo menos mexer na
renda dos mais ricos, redistribuindo a riqueza existente.
ET: Como a elite do país vê a pobreza e a miséria?
EB: Eu me pergunto se há quem goste que o Brasil tenha tanta
miséria e desespero. É duro não se incomodar com a miséria, a não ser que você
seja um psicopata. Por mais segurança que se bote nas portas, por mais vidros
blindados nos carros, a miséria acaba transportando os muros e ameaçando essa
paz armada.
ET: Incomodar com a miséria não deixa de ser também uma questão de
inteligência. Durante seus dois mandatos, Lula teve aceitação da elite?
EB: Sim. A elite se sentia bem vendo Lula dando mais visibilidade
e popularidade internacional ao Brasil. Depois, durante o governo Lula, os
ricos ficaram mais ricos.
ET: Lula conseguiu mais popularidade internacional do que FHC, com
todos seus diplomas e títulos. No entanto, apesar de todas as conquistas
sociais e de todo o crescimento econômico, a conciliação que ele vendeu se
mostrou frágil, insustentável. Por quê?
EB: Já no governo de Dilma Rousseff, quando a economia piora, tivemos
a perda da ilusão por parte dos mais ricos e de setores da classe média de que
é possível reduzir a pobreza sem perder privilégios. A elite brasileira
(econômica, política, intelectual) nunca esteve e não está disposta a perder
privilégios. Depois, nos últimos anos do governo Lula e nos primeiros de Dilma
Rousseff, os efeitos de algumas medidas sociais começaram a se fazer sentir: -
a ampliação do acesso dos negros às universidades colocou os privilégios em
xeque, já que mexeu em algo estrutural no Brasil: o racismo. Aí a tensão se
tornou explícita.
ET: Explique melhor esse ponto.
EB: O Estatuto da Igualdade Racial, desde sua elaboração, foi combatido
com fúria por setores da elite. A presença dos negros nos espaços do poder e em
lugares simbólicos muito caros também para parte da classe média incomoda e
muito. O avanço do protagonismo negro mostra o quanto mexer nos privilégios
mais subjetivos é um tema explosivo no Brasil.
ET: O que os programas sociais e as ações afirmativas dos governos
do PT proporcionaram ao país?
EB: Ações afirmativas contra o racismo e programas sociais (Bolsa
Família, por exemplo) colocam algo muito potente, forte, em movimento. Se os
bolsos das oligarquias e dos rentistas permaneceram cheios, algumas bases eram
solapadas pelas beiradas. Por outro lado, tais programas e ações acabaram por
colocar em risco a conciliação vendida por Lula.
ET: A sua mágica de conciliação...
EB: Mas não havia mágica. Havia uma fissura que expôs o óbvio. A
questão mais profunda do Brasil continuava a ser a mesma: para ter conciliação
de fato é preciso que uma parcela da população perca privilégios. E isso, para
as elites e também para setores da classe média, era – e continua sendo –
inaceitável.
ET: O que é privilégio?
EB: Privilégio é tudo que custa, é difícil perder. Mesmo quem tem
poucos se agarra aos seus, o que explica um tanto de ódio mesmo entre pobres
urbanos. Há sempre algo a perder, mesmo que seja uma pequena superioridade
sobre o vizinho.
ET: Lula vendeu para o Brasil um projeto de conciliação
impossível.
EB: Sim. E foi tal projeto permitiu que Lula se elegesse e
reelegesse, mesmo após o “Mensalão”. Foi nessa conciliação que ele se lambuzou
por vários anos.
ET: Sei que estou em falta com sua fala, notadamente quando se
trata dos erros de Lula, e depois Dilma, com a Amazônia, em especial a Usina de
Belo Monte. Isso é bom porque enseja o convite para que leiam seu texto na
íntegra. Finalizando, só mais uma questão: qual o atual legado de Lula?
EB: Para compreender o legado de Lula, o conciliador, é preciso enfrentar
o inconciliável em Lula.
ET: Muito obrigado, Eliane Brum.
Etelvaldo
Vieira de Melo
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