RINDO PRAS PAREDES: CAPITALISMO EM QUARENTENA

Imagem: Vanda Martins

Sem dúvida, o mais afetado pela presente pandemia do coronavírus foi o próprio sistema capitalista, nas suas vertentes de consumir e exibir.
Quanto ao consumo, por causa do confinamento, ficou restrito aos itens de comes & bebes (quase mais bebes do que comes), higiene pessoal e limpeza, além do vestuário básico (pijama, bermuda, camiseta-regata e chinelo havaiana).
Se o consumismo foi violentamente afetado, nem mesmo existe palavra para descrever o sentimento de dor diante da impossibilidade das pessoas se exibirem umas para as outras, ostentando suas posses, seja uma sandália Scarpin Valentino Rockstud (bagatela de R$1.415,50), seja um colar Life Rosé, da Vivara (R$1.050,00) ou um casaco com aplicação de tachas, da Moncler (em torno de R$12.362,00).
Não chegou ao meu conhecimento, mas fico imaginando que está nesse bloqueio da ostentação a causa da depressão das pessoas, levando muitas a boicotar as regras da quarentena. Na minha modesta visão, quando o gado de Bolsonaro sai pelas ruas e avenidas em carreata, mais do que em protesto contra os comunistas do Congresso e do Supremo, está mesmo é buscando pretexto para se exibir, ostentando seus carrões.
Não me eximindo do ‘mea culpa’, devo dizer que até mesmo eu estou sentindo uma carenciazinha de exibicionismo. Pouco antes da pandemia, lá pelo final de janeiro, comprei um moedor de café deveras chique. Meu sonho era poder exibi-lo para as visitas aqui em casa com um cafezinho moído na hora. Com o isolamento, a ideia acabou gorando, me deixando um gosto amargo de frustração, que não chega a ser amenizado nem quando preparo um café arábico, com grãos selecionados.
Hoje, em conversa com o mano Jovelino Floriano, o Jojó, ocorreu-me uma ideia de resgatar um pouco da nossa carência de ostentação. Ele havia me enviado pelo WhatsApp três fotos onde aparece sorrindo, junto com a seguinte mensagem:
- Eu tinha que compartilhar o grande acontecimento de minha vida, aos 74 anos: estou com a boca cheia de dentes... terminei hoje os implantes. Ufa! Aumenta as fotos para ver melhor...
Ela já havia me notificado, com outras fotos, as diversas etapas do processo de implante. Quando a parte superior ficou pronta, seu dentista avaliou:
-  Seu sorriso Leonardo di Caprio está pronto. Daqui a um mês, será a vez do sorriso Reynaldo Gianecchini.
- Agora, você vai rir à toa – falei, vendo finalmente sua boca cheia de dentes.
E acrescentei:
- Como não pode sair (e, quando sair, terá que usar máscara), sugiro produzir algumas “lives” pra mostrar seu novo e radioso sorriso. Pode até agendar um patrocínio comercial com seu consultório odontológico.
- Boa ideia – Jojó falou. – Quem diz que é só cantor que pode produzir “live”?
- Para não ficar tão ostensiva a exibição dos dentes novos, você pode pegar o violão e cantar algumas músicas, como “L’amour est bleu”, “Aline”, “Les Marionettes”, Luar do Sertão e outras, intercaladas por largos sorrisos. Ao fundo, você prepara um banner com a publicidade do dentista.
- Vou pensar na sugestão, Eleutério. O fato merece, realmente, uma “live”. Vou pedir o apoio do dentista.
- Pense com carinho na ideia. Além de sua coleção de corujas, você também poderá mostrar o Pedro, a Maria e o Roberto.
(Para quem não sabe, o Pedro é uma calopsita, Maria é uma tartaruga e o Roberto, um peixinho de aquário.)
- Jojó, você vai chegar no trending topic do Twitter quando mostrar o Pedro cantando o hino do Clube Atlético Mineiro. Vai arrebentar, quando a câmera acompanhar a Maria correndo atrás de você, querendo morder o dedão de seu pé (por causa do chulé – segundo suas palavras). Enquanto isso, em vários closes, vai mostrar seu rosto em sorrisos da mais pura felicidade.
- Está bem – falou ele. – Eu preciso de um produtor. Não sei fazer isso.
Leiturino - amigo certo das horas incertas:  não teria você essa habilidade de cinegrafista para produzir a “live” do Jovelino? Ele está querendo inaugurar seu novo sorriso, mas não está tendo como por causa desse danado do confinamento. Reservadamente, me insinuou que, caso algo não seja feito, irá se converter ao gado de Bolsonaro, aderindo às carreatas, só para poder exibir sua boca cheia de dentes. Socorro!!!
Etelvaldo Vieira de Melo

OLHOS DE CLEÓPATRA

Aventuras na História · Incesto, poder e assassinatos: a vida ...
Imagem: aventurasnahistoria. uol
Quanto ao kohl, traço negro artificial que circula o olho de Cleópatra, e ao vermelho carmim que lhe demarca a parte superior da face, seu uso teria por valor apenas ultrapassar o teor belo da natureza em si? Que resultado a mais desejaria uma rainha egípcia, visando a satisfazer necessidades atrativas do corpo, a fim de prender tronos, antônios, júlios césares?
Além do vestido cingido de linho, descendo até aos calcanhares e dotado de alças que passavam por cima dos seios ou deixavam o peito à mostra, traje a lhe conferir inimitável nobreza, altivez que não excluiria encanto nem doçura, a que tesouro físico almejava a musa? Ora, têm esse vestido a maioria das deusas...
O negro e o vermelho- diria ela- representam, eles sim, a vida (vide hoje Stendhal). Trata-se de elementos essenciais, muito aquém do que há de existente e excessivo nas sedas e adornos de brilhantes. O contorno negro e as sombras concedem ao olhar mais profundidade acústica ideal/real/irreal. Dominam o Império da bélica Perfeição ante Hera, Atenas, Afrodite.
Elogiemos no cinema a maquiagem sobre os olhos, luz que põe a luz fora de moda. Singularidade ímpar! O olho pintado a kajal descerra a aparência decidida de Liz Taylor, cover de Cléo, numa extensa janela aberta além do infinito. O vermelho que inflama lábios e bochechas ajuda a aumentar a luminosidade saborosa da maçã, mas o rímel ciliar junta ao gentil perfil feminino da atriz a paixão misteriosa da sacerdotisa. Cleópatra segredou-lhe isso.
Graça Rios

QUANDO UM OLHAR, APENAS, NÃO É O BASTANTE

Resolvendo contradições por princípios de separação - Nossa Ciência
Imagem: nossaciencia
Este texto, postado originalmente em 22/12/2012, deveria estar alinhado em duas colunas, formando contrapontos. Por problemas de diagramação, tal não foi possível.
Muitas e muitas vezes, eu questiono se vale a pena a vida do ser humano aqui neste planeta, se não teria sido melhor tudo ter permanecido como no tempo em que a Terra era informe e vazia, com as trevas cobrindo o abismo e apenas o Espírito do Deus pairava sobre as águas. Eu não estaria aqui, neste momento, escrevendo estas palavras, o relógio não estaria aqui na minha frente, arrastando os minutos e as horas para o fim, enquanto lá fora, no mundo, uma imensidão de coisas explode a cada segundo e se derrama em cores e tons por sobre países e continentes, matando, provocando a destruição e o caos.
Muitas e muitas vezes, eu me vejo pensando sobre a vida, seu encantamento, sua beleza. Mesmo entendendo quase nada sobre seu sentido, penso que Deus tinha toda a razão quando, depois de ter criado as coisas, contemplou sua obra e viu que tudo era muito bom. Aqui estou, neste momento, escrevendo estas palavras, o relógio está aqui na minha frente, registrando a passagem do tempo, enquanto que lá fora, no mundo, a vida explode em cores e sons, sob os reflexos do Sol.
Eu não sei, mas – às vezes – gostaria de que tudo não passasse de um sonho. Poderia ser um sonho meu, estando em outra dimensão. Poderia ser até que eu não existisse, não passasse da fantasia de um sonho de outra pessoa, do próprio Deus, quem sabe, entediado do próprio poder ou no exercício de suas infinitas habilidades.
É a vida um sonho? Prefiro entendê-la como um mistério. A aceitação do mistério não significa fechar as portas do entendimento, decretar o fracasso da razão. Significa reconhecer que a vida vai sempre mais além da percepção de momento, que há um mundo de revelações logo ali, após a curva do caminho. Aceitar a dimensão de mistério é ter a humildade de reconhecer que a vida nos surpreende a cada momento com novas manifestações de beleza e sentido.
Eu não sei, mas acho atraente a ideia do vazio, da ausência, do nada. Porque, se tudo fosse reduzido a nada, a maioria das pessoas estaria ganhando, lucrando. Porque essas pessoas só levam da vida o prejuízo: dor, sofrimento, lágrimas, decepções, tristeza, desilusão. Se tudo fosse reduzido a nada, não haveria alguma coisa de bom, mas também não existiria nada de mau, de ruim, de errado, estaria tudo em equilíbrio, em paz, em silêncio, na imobilidade do vazio, do nada.
Eu nada sei, já disse e posso repetir mil vezes. Não tenho a pretensão de ser dono da verdade. Observo e vejo pessoas que, apesar de tudo conspirar contra, sempre encontram um motivo para viver, para construir seus sonhos. Para elas, o sofrimento é fortaleza, meio de eliminar falsas ilusões a fim de alcançar os verdadeiros objetivos. É preciso tirar essa conotação negativa das dificuldades, pois são elas que nos ajudam a crescer e a nos tornarmos pessoas melhores.
Eu não sei se o que está aí e denominamos vida é fantasia, projeção ou realidade verdadeira. Sei que se trata de manifestação de um princípio só. Parece que as pessoas não nasceram para compartilhar, respeitar e fazer valer os direitos dos outros. Elas nasceram marcadas pelo estigma desse pecado original chamado egoísmo. Os mais injuriados diante dessas palavras são justamente os mais falsos, pois se escondem atrás da hipocrisia, tentando passar despercebido seu egocentrismo. Se não, como calar e tapar os olhos diante da perversão do trabalho, da inversão de valores – onde o ter se sobrepõe ao ser, da demagogia, corrupção, da exploração dos mais fracos, da fome e falta de moradia, da pobreza e miséria, tudo isso num quadro de guerra e violência?
Eu não sei se o que está aí e denominamos vida é fantasia, projeção ou realidade verdadeira. Poderia ficar lamentando os erros cometidos pelos humanos. Eles estão em todo lugar, como a lama na terra após um momento de chuva. Eu sei, porque meus olhos não estão fechados e nem meus ouvidos estão vedados. No entanto, esses erros são menores, valem menos que os acertos. O ser humano não é, por natureza, ruim. O seu egoísmo resulta de uma má educação, que pode ser reparada. O amor é uma força superior, embora seja muitas vezes abafado, como na trágica história de Orfeu e Eurídice, porque – infelizmente - as coisas ruins conseguem falar mais alto, aparecem mais. Por isso, quase passa a ser estranho falar do sorriso de uma criança, da beleza da Natureza, dos cuidados de uma mãe e seu amor incondicional, dos sonhos que se realizam, das palavras amigas, do perdão, da beleza de uma pintura ou de uma música, das pessoas que fazem o bem e trabalham pela Paz.
Enfim, tem razão o Jó das Escrituras, quando diz: “Por que não saí num aborto escondido? A vida do homem sobre a Terra é uma guerra. A minha carne está coberta de podridão e imundície do pó. A minha pele está seca e enrugada. A minha fortaleza não é como a das pedras. Nem minha carne é de bronze.”
Enfim, tem razão o Eclesiastes, quando, refletindo sobre a vida, chega à seguinte resposta e conselho: “Vai e come teu pão com alegria, bebe teu vinho com o coração alegre, pois tuas ações já foram há muito aprovadas por Deus... Tudo que possas fazer, faze com todas as forças.”
Etelvaldo Vieira de Melo

ANTES DE ANTES DO LIVRO SE ABRIR

Desenho de Mãe levando o bebê pintado e colorido por Betamarcus o ...
Imagem: galeria.colorir.com
(Prelúdio do Livro 'À Sombra das Damas em Flor')
Serenô, eu caio. Espero. Caio. Súbito, me levanto. Olho. Sinto no enovelado tempo ele molhado. Chora em teor de dor? Vigio o vagido nas fraldas da hora. Bico da noite, consola meu bebê o seio cheio de escumosa imagem. Vem mamando amando sobras de sonho do sono maternal, afinal. Cirando a criança na penumbra, já trocada e limpa do colostro. Canto a sabiá embalos na antecâmara acomodado pio. Passarinhos sonoros, adormeço     ... e a babá deu-lhe chá. Seu nome, Ísis (‘Eu nasci de mim mesma, não venho de ninguém’); Mário (mar rio riso ar, ‘homem de excelência’), inscrevo-o no manto cálido mel serão meus braços. Onde tresanda lágrima, ando. Mal olhado, vento virado, benzo-os. Divagando vagando devagar, fio os dias, desfio necessários diversos paninhos. Viróis acessórios, depois. Arco-irisando coloridas horas passo lavados lenços de arroto sobre vomitados ombros. Brancos enxovais. Travesseiro ligeira uma porção de ideias com brandos bichinhos: ponto nó, laçada, ponto de entremeio. Agulhas próprias, tesoura de aparar arestas, invento. Crio. Bordando com fina verde clara linha a camisa primeira, aveludo-me pensamentos. Nino lençóis ideais em seda pura. Beija-me rosto e colo, a nívea sideral cambraia. E sigo cosendo fronhas cozendo papinhas mornas, ansiosas. Alado sapatinho vislumbra comigo todos os brinquedos de armar em voltas ao mundo. Mãe adotiva de um talco procurado sem perfume, sinto seu corpúsculo lasso.  Aéreo riso sorriso fita, enfeita e bruma o berço comprado... onde? Lá. Nas sombras da memória. E se incerta vez ele pensar... Quiser vê-la, a biológica... Verei verá - veremos - em que foto cueiro tricô - a face do por vir? E se... Quando o leite nutriz surgir de outra mulher, serei eu a concebê-lo em contrações mentais? Busco, brusco susto, papéis e leis. Assinei, leio. Sou autora. Ninguém duvidará desses escritos em cartório. Há testemunhas. Entre cólicas, reconheço: O parto é meu. É legítima, a minha obra! Algum farfalho de asa na lã do leito inda vazio falará no vento, ensinando a este ventre sem luz, que hoje o ser começa a lhe dar à alegria e à cruz.

Graça Rios

CONCERTO EM CONSERTO

Guia para os instrumentos da orquestra - Teoria e Composição ...
Imagem: forumusica.com
Assistindo à apresentação de uma orquestra sinfônica (também chamada filarmônica), um expectador atento poderá anotar alguns detalhes:
- Verá que ela tem mais de oitenta músicos, dispostos em cinco classes de instrumentos: # as cordas (violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, harpas) - # as madeiras (flautas, flautins, oboés, corne-inglês, clarinetes, clarinete baixo, fagotes, contrafagotes) - # os metais (trompetes, trombones, trompas, tubas) - # os instrumentos de percussão (tímpanos, triângulo, caixas, bombo, pratos, carrilhão sinfônico, etc.) - # os instrumentos de teclas (piano, cravo, órgão);
- Entre os grupos de instrumentos e em cada um deles existe uma hierarquia implicitamente aceita;
- O principal dos primeiros violinos é designado como chefe não só de toda a seção de cordas mas de toda a orquestra, subordinado apenas ao maestro;
- De acordo com a peça apresentada, determinado instrumento irá se sobressair, enquanto outros ficam em segundo plano, sendo que muitos passam quase despercebidos.
- Apesar de discretos, certos instrumentos não deixam de ter seu valor, somando-se aos demais e conferindo maior beleza à melodia apresentada.
Penso que a vida em sociedade poderia ser comparada à apresentação de uma orquestra. Temos também ali muitos instrumentistas, alguns em destaques, enquanto outros se ocupam de tarefas aparentemente menores, mas que são importantes, tornando a convivência social possível.
Os instrumentistas de uma orquestra se relacionam e dialogam mediante a ação de uma pessoa especial, o maestro. Sem a intervenção do maestro os músicos podem se perder, desafinando a melodia, tornando-a desagradável aos ouvidos.
Num regime presidencialista, a sociedade se constituiria a orquestra com seus diferentes instrumentos, enquanto o presidente da República seria o regente.
O que se espera de um regente de orquestra? Que entenda de música, evidentemente. Também é preciso que tenha sensibilidade e competência para fazer com que cada instrumentista execute seu papel da melhor maneira possível.
Numa república, o que se espera de seu presidente é que tenha competência e habilidade para exercer seu papel. Ou seja, é preciso que ele seja vocacionado para tal função.
Numa orquestra, um trompetista, por exemplo, não pode – sem mais, sem menos – querer ocupar a função de maestro. Ali, o que cabe a ele é tocar da melhor maneira o seu instrumento. Da mesma maneira, em sociedade, para que ela seja harmoniosa, é preciso que cada um de seus membros exerça bem suas funções. Assim, temos um comerciante tocando o seu comércio, um médico exercendo a medicina, um general de exército cumprindo as tarefas próprias. A sociedade entra em desequilíbrio quando alguém extrapola suas funções e passa a exercer aquela para a qual não tem competência (por exemplo, um advogado querer atuar como engenheiro). Na política, quando alguém inapropriado assume uma presidência da República, então, o perigo de caos é bem maior.
Veja o relato abaixo para entender melhor a dramaticidade do que estou considerando:
QUANDO O RABO QUIS SER CABEÇA
Certa vez, a cauda de uma cobra cismou que ela é quem deveria conduzir o ofídio, em vez de ser a cabeça. Ela se sentia cansada de ser jogada de cá para lá e de lá para cá, sem poder decidir pra onde ir.  Às vezes, estava se deslocando tranquila em reta quando, num repente, era empurrada para a esquerda; em outras, fazia bonito uma curva à direita e, sem mais e sem menos, era puxada pro centro. – Assim não dá – ela pensou; já não aguento mais! – Os outros membros disseram que seu desejo era uma temeridade: por acaso tinha ela cabeça e olhos? tinha como se colocar à frente? Não houve meios de convencê-la, e o bom senso foi derrotado. Assim, assumiu a cauda o comando, passando a dirigir o corpo inteiro. Às cegas, foram trombando em tudo, até que acabaram caindo num precipício coberto de espinhos. A cobra foi toda ferida, enquanto os membros lamentavam: - É isso que dá a gente se deixar conduzir por um rabo!
Jair Messias Bolsonaro, em 5 de abril de 2019, fez esta declaração: “Desculpem as caneladas, não nasci para ser presidente, nasci para ser militar. Mas, no momento, estou nesta condição de presidente... Não tenho qualquer ambição, não me sobe à cabeça o fato de ser presidente. Eu me pergunto, olho pra Deus e pergunto: Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso? É só problema”.
Coitado! Para resolver essa embrulhada, a solução até que é simples: é só ele voltar a tocar sua tuba no coreto do jardim, deixando de lado sua pretensão de ser maestro; basta ele deixar de ser cabeça e voltar para a sua condição de rabo.
         Etelvaldo Vieira de Melo

ORA, DIREIS...

Desenho de Mulher gravida feliz pintado e colorido por Usuário não ...
imagem: galeria.colorir.com

Ouviste o Don Juan,
tresloucada amiga?
Certo perdeste o senso.
Concebeste o filho sob estrelas
toda noite, tontinha.
Escutavas Amor para entendê-lo?
Desmazelo sem camisinha.
Ao vir do sol em pranto
sob o céu deserto,
qual o sentido de abrir janelas
transando com o Olavo?
Via Láctea? Leite e choro vêm depois.
Agora, pálida de espanto, vai!
Pede a teus pais sem ais
pagar-te urgente uma consulta ao ginecologista.
Graça Rios

BUTECO EM DELIVERY

Por que ficamos bêbados ao ingerir álcool | Blog Robson Neves
O BÊBADO E O BALCONISTA - UMA FÁBULA NEBULOSA
Em homenagem a Millôr Fernandes (+27/03/2012) e Aldir Blanc (+04/05/2020)
Esta história é do tempo de antigamente (você ainda se lembra?), quando as pessoas saíam de casa, andavam pelas ruas e frequentavam os botecos...
Fridundino Pedroso era alcoólatra e morador de um pequeno lugarejo chamado Rua Comprida. Tal nome se deve ao fato da cidade ser constituída por uma única rua, formada por algumas centenas de casas.
Você sabe como é um bêbado: quando encontra alguém pela frente, logo vem com aquela conversa esquisita, aquela fala arrastada, fica pegando no seu braço e cuspindo no seu rosto, com aquele hálito de matar até defunto.
Felizmente, toda regra tem suas exceções e Fridundino era uma delas: tratava-se de um cachaceiro manso, voltado para si mesmo e que pouco incomodava as pessoas. Todos os dias, fazia seu giro pelos botecos, iniciando e fechando sua rodada no chamado Bar do Belderagas. Em todos os lugares, o ritual era simples e de poucas palavras: retirava do bolso do paletó um copo (na verdade, uma cuia formada pela metade de pequena cabaça), onde o dono do boteco despejava uma dose de cachaça. O valor era debitado e depois pago pelos parentes, uma vez que Fridundino era de família estribada – expressão nordestina, embora o caso acontecesse no interior das Minas Gerais.
Parece que ele não era pessoa religiosa, pois nunca foi visto despejando uma gota sequer de bebida para os santos. De qualquer modo, lá ia tocando sua vida sem maiores sobressaltos, a não ser por pequenos tropeços e uma ou outra queda pelas poeirentas ruas da cidade.
Aconteceu, porém, o dia em que Fridundino desapareceu de Rua Comprida, ficando ausente por quase dois meses. Quando voltou, estava corado, bem disposto e até tendo engordado alguns quilinhos. Todo mundo quis saber o motivo do sumiço. Foi justamente isso que lhe perguntou Belderagas, quando Fridundino retornou ao seu bar.
- O que aconteceu foi que comecei a me sentir muito mal – explicou nosso personagem, enquanto passava uma vista d’olhos pelas placas decorativas espalhadas pelas paredes do boteco (uma delas dizia: “Eu bebo pra ficar ruim, se fosse pra ficar bom eu tomava remédio”; outra falava assim: "Evite a ressaca, mantenha-se bêbado”; já uma terceira aparecia com destaque por detrás do balcão: “Promoção!!! Peça fiado e ganhe um Não!”).
– Imagina você – continuou Fridundino: - estando sentado naquela cadeira ali – e apontou para uma cadeira de plástico, junto a uma mesa – de repente, vi passando na minha frente um tatu. Pensei comigo: Cara, você está ruim mesmo, está delirando, vendo fantasmas. É bom ir para a capital e se tratar. Foi o que fiz, e este é o motivo de minha ausência da cidade.
- Por que você não me disse na hora? – foi logo interrompendo Belderagas, dando boas risadas. – Acontece que eu tenho mesmo um tatu aqui em casa. - Dirigindo-se à sua mulher, acrescentou: - Vai, Radigunda, traga o tatu para que o nosso amigo possa ver.
Saiu Radigunda, que voltou daí a pouco, trazendo em seu colo um tatu.
- Trata-se de um tatu de estimação, bem manso, como está vendo – explicou Belderagas, passando a mão no couro do animal.
Fridundino se aproximou do tatu e, de dedo em riste, falou bravo:
- Seu fdp cascorento. Por sua causa, achei que estava ficando doido. Vai, Belderagas, desce todas as garrafas de pinga da prateleira, que vou descontar o atraso e tirar a barriga da miséria.
E assim ele fez, bebendo todas.
Moral: Ao tomar uma decisão mais radical, veja se não tem um tatu pelas proximidades.
Nota Complementar: Devido ao aumento do consumo de bebidas alcóolicas, esta moral não vale para os tempos de pandemia. Muita gente já está vendo tatu pela frente.
Etelvaldo Vieira de Melo

DECISÃO DE PARTIR

Tânia Maria Gonçalves Moreira é mineira de Belo Horizonte. Artista plástica, dedica-se também, paralelamente, a pesquisas nas áreas de História do Brasil, História Geral e História da Arte. Ingressa atualmente na literatura, trabalhando em seu primeiro livro, um romance histórico. Abaixo, o capítulo X.
Constance caminhou até o quarto, devagar, a apoiar-se nos móveis. Deixou-se cair ao leito e ali ficou por toda a noite, olhos fechados, imóvel. Mal respirava, presa do horror que a paralisava. Sequer ouviu o alarido dos filhos que chegavam da casa do Ventura.
Na manhã seguinte José Galdino encontrou-a meio inconsciente, a balbuciar palavras sem sentido. Assustado, tomou-lhe o pulso, buscou indícios de enfermidade, mas nada encontrou que justificasse aquele estado em que mergulhara a mulher.
Consternado, chamou por Coaraci para que cuidasse da esposa. A índia reclinou-a em travesseiros, recompôs-lhe as roupas. Mais tarde levou-lhe uma tigela de mingau.
No dia seguinte, Constance deixou o leito e caminhou até a sala, amparada pela índia. Emerenciana acomodou-a na cadeira de braços e sentou-se a seu lado, angustiada. Ali ficaram por toda a manhã, a menina a bordar e a mãe a olhar para algum lugar perdido na parede.    
Passavam-se os dias e Constance não apresentava melhora, perdida em uma ausência que não tinha fim.
O marido desesperava-se.
“Que hei de fazer, ó Senhor? Tende misericórdia!”, implorava ele, com o coração oprimido pela tristeza. “Trazei-me de volta a minha Constance... Trazei-a, Senhor, para mim e para os filhos!”.
Todas as noites, ao deitar-se, abraçava a esposa com amor e acolhia-a ao peito. Retinha-a junto a si.
Certa vez, ouviu-a murmurar: 
“A casa de meu pai!... Quero voltar... para a casa de meu pai!...”
Galdino surpreendeu-se. Há dias não dava a esposa sinal de entendimento. Voltou-se para ela e viu-lhe os olhos marejados de lágrimas.
“Quero voltar... para a casa de meu pai!...”.
Acariciou o rosto da esposa e respondeu-lhe que sim, que a levaria de volta, para a casa de seu pai. 
Mas disse apenas para confortá-la. Na verdade, ponderou, decisão daquela monta não era de tomar-se assim, de momento. Não lhe parecia fácil deitar por terra tudo o que construíra em tantos anos de trabalho. E, ademais, tinha ainda fé em que a mulher se restabeleceria.      
Na manhã seguinte, na sala, Constance voltou-se para Emerenciana e disse-lhe, com um fio de voz:
“Filha!... Ó filha!... Segura minha mão... que tenho medo!...”.
Emerenciana surpreendeu-se ao ouvir a mãe. Tomou-lhe as mãos entre as suas e dirigiu-lhe algumas palavras. Mas Constance distanciou o olhar e novamente quedou-se em seu triste silêncio.
Nos dias que se seguiram José Galdino, amargurado, ouviu a esposa pedir-lhe outras vezes que a levasse de volta à casa do pai. E nada mais dizia ela que lhe desse alguma esperança de vê-la de volta a seus afazeres, a sorrir, a conversar. De volta à vida, enfim.
Constance delirava. Vagueava por ruas e igrejas, entre as paredes rosadas de sua cidade. Atravessava antigos portais, perdia-se em escuras florestas. Aparecia-lhe a mãe, em gestos, a chamá-la. Rodeavam-na, a dançar, os cântaros do pai. Sorria. Chorava.
Pedro e Henrique passavam horas a seu lado, na esperança de ouvi-la dizer-lhes alguma palavra ou de receber dela algum afago. Mas Constance seguia distanciada, com o olhar perdido em algum ponto da parede, alheia a tudo o que a cercava.
Emerenciana desvelava-se em cuidados com a mãe. Vestia-a, penteava-a, tomava-lhe as mãos com ternura. Porém, mais passava o tempo mais esmorecia a menina.
Ia, enfim, a amargurar-se toda a família.  E a casa a desleixar-se, sem o cuidado de Constance. 
José Galdino entrou a perder o juízo. Já não conseguia firmar uma tala, prescrever um xarope. Tremiam-lhe as mãos, embotava-se-lhe o cérebro. Estava a vencê-lo o desespero!
Certa noite, a esposa a dormir, encontrou entre suas mãos uma carta. Era de Michel. Trazia-a Constance guardada há alguns anos, dois ou três. Observou o rosto da esposa, pálido e emagrecido, um rastro de sofrimento a perpassar-lhe as feições ainda um pouco contraídas.
Tomou-lhe a carta das mãos com cuidado, sentou-se ao pé da cama e, com a cabeça entre as mãos, chorou.
Já não era mais possível prolongar aquele estado de coisas! Não era mais possível!... O que poderia importar a ele, agora, além de ter sua Constance de volta? 
Com o coração confrangido, consumido pela dor, decidiu que a levaria de volta a Toulouse, para a casa de Michel Fleuret.
As linhas da sua vida desenhavam-se novamente em curva, refletiu, amargurado. Mas desta vez já não era ele o rapaz esperançoso que anos atrás aventurara-se, quase às cegas, em uma empreitada desconhecida. Era agora um homem, desolado, sem certezas, curvado pelo destino.
Lembrou-se dos dias em que ali chegara. Era feliz, apesar dos desafios, dos imprevistos que lhe atravessaram o caminho. Mas o amor de sua família sustentara-lhe a felicidade!... A amizade do Manuel!...
Naquele desalento, lembrou-se do amigo. Era preciso participar a ele a decisão.
“Ademais,” pensou, “uma palavra do Manuel há decerto de trazer-me algum conforto, nesse momento... Vou ter com ele amanhã!”.
Deitou-se ao lado de Constance, afagou-lhe os cabelos com carinho e, tristemente, começou a pensar nas providências para a viagem. 


CONVERSA FIADA DE SETENTENADOS EM QUARENTENA



O telefone toca. Pelo visor da tela, vejo que se trata do vizinho, o Tonho da Flô.
- Oi!
- Tô ligando pra ver se você tem um almoço aí pra me oferecer. Tenho passado muita fome.
- Que é isso? A comida aqui é racionada, os grãos de arroz são contados nos dedos e divididos ente mim e a Percilina.
- Então, compra na minha mão aquela bicicleta que te mandei um vídeo.
(Trata-se de uma bicicleta cujo cilindro é um tronco de árvore.)
- Não. Eu não sei andar de bicicleta.
- Puxa! Então, troca por uma cesta básica. Você pode vender a bicicleta depois.
- Tá. E quanto custa a cesta básica?
- Estou pensando numa no valor entre 600 e 800 reais.
- O quê??? Uma cesta básica está entre 40 e 50 reais.
- Esta é muito mixuruca. A que que eu quero tem que vir também com mortadela.
- E quanto de mortadela? 100 gramas?
- Você está brincando. 100 gramas não dá pra nada. Eu quero é 2, 3 quilos de mortadela.
- Pensando bem, acho melhor você não desfazer da bicicleta. Com esse confinamento por causa do corona, o gás de sua cozinha vai acabar acabando. E então? Você vai ter que apelar pro fogão a lenha. Aí sua bicicleta vai servir como lenha.
- Tá certo, mas para fazer o quê? Se aqui em casa não tem mantimento pra cozinhar.
- Você é que pensa. A Flô, sabendo que você é fominha, fica escondendo as coisas, porque, se deixar, você come tudo de uma vez.
- Será mesmo?
- Pode crer. Agora, mesmo que o mantimento acabe, você pode fazer sopa de pedra. Você arruma umas 5 pedras de cascalho, coloca num tacho com 1,5 litro de água, com uma pitada de sal. Quando começar a ferver, tampa e deixa por 5 minutos. Aí está pronto. Você pode acrescentar a gosto umas cebolinhas, se tiver.
- Obrigado.
- Agora, vê se não sai de casa, respeita a quarentena. Você sabe: o ônibus “Cata Véio”, vira e mexe, tá passando aí na rua.
- É. Flô foi lá fora e voltou correndo, achando que era o “Cata Véio”. Depois, viu que era o Corpo de Bombeiros, indo apagar um incêndio lá embaixo.
- Mas a Flô não precisa se preocupar: ela não é velha, assim como a Percilina aqui em casa.  Velho é você, e eu sou um pouquinho velho.
- Bom, pra terminar a nossa conversa, estou mandando um abraço pro seu cachorro aí. Ele está bem?
- Está. De vez em quando, ele, o Thor, também manda lembranças pra você. Ele não se esquece da vez em que você ficou aqui cuidando dele, enquanto fazíamos um passeio pela Europa.
- A, é? Ele falou com você?
- Falar, ele não falou, não, que ele é cachorro e eu sou gente. Ele falou na linguagem de cachorro, e eu respondi na linguagem de gente.
- Estou também mandando um beijo pra ele.
- O quê??? Você beijava o Thor?
- A gente às vezes se abraçava, beijava, brigava, era uma confusão danada, porque ele não me obedecia, fazia o que dava na telha.
Nesta altura, Percilina Predillecta, por gestos, manda Eleutério terminar a ligação. Parece que não estar gostando muito das intimidades do Tonho da Flô com seu cãozinho Thor.
- Está bom. Vou desligar, que a Percilina está me chamando aqui para serrar uns tocos. Vou postar na rede o vídeo de sua bicicleta e ver se alguém topa trocar por uma cesta básica com mortadela. Abraço.
Etelvaldo Vieira de Melo



PERGUNTAR NÃO OFENDE

Ivani Cunha