TENTANDO A SORTE

Em entrevista recente, a escritora italiana Elena Ferrante disse que “escrever é como girar a faca na ferida”. Para você entender a dramaticidade desta frase, veja bem o que aconteceu comigo.

Antes, porém, uma introdução necessária.

Não sei se você, amigo Leiturino, já ganhou algum tipo de sorteio. De minha parte, pelo que me lembro, isso só aconteceu uma vez: acertei o nome de uma pessoa numa relação de cinquenta outros, estampados numa cartela de raspadinha. Foi um relógio despertador, que acabou me acompanhando durante vários anos, na tarefa de me acordar para as lidas do dia a dia.

Quanto a jogos e loterias, “neca de pitibiriba” (ou seja: “bulhufas”). Nunca tive o prazer de acertar uma “quina”, uma “quadra” ou até mesmo um “terno” em loteria. Nos “jogos de bicho”, nem mesmo um desprezível “passe” fui capaz de adivinhar. Nos “bingos” beneficentes, morria “amarrado”, sem nada ganhar.

Por isso, posso me considerar uma figura rara, num país onde a jogatina é institucionalizada, com as pessoas sendo cercadas por loterias por todos os lados (mas com o Paulo Guedes, da Economia, querendo mais, com a legalização dos cassinos: “O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem, – ele deixa aquilo lá, bebe, sai feliz da vida. Aquilo ali num atrapalha ninguém. Aquilo não atrapalha ninguém. Ô Damares. Damares. Damares. Deixa cada um … Damares. Damares. O presidente, o presidente fala em liberdade. Deixa cada um se foder do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se foder, pô!”).

Diz um ditado: sorte tem quem acredita nela. Acho que é por isso que não tenho essa tal, já que, no fundo e a bem da verdade, não faço muita questão de ter. Se ganhar, por exemplo, o prêmio da Mega Sena, tenho medo que aconteça comigo o mesmo que sucedeu com aquele idiota ao viajar pela primeira vez até uma cidade grande. Chegando lá, se assustou ao ver tanta gente e, quando foi dormir em frente a um estabelecimento, cuidou de amarrar uma corda no tornozelo e numa estaca. Pensou assim: - Quando acordar de manhã, não haverá o risco de ter me perdido de mim mesmo!”.

Assim eu penso muitas vezes, quando bate à minha porta a possibilidade de ganhar um grande prêmio. Começo a ter taquicardia e a suar, temendo me perder de mim mesmo, deixar de ser eu. Por isso, acabo preferindo ir tocando a vida do jeito que está.

Se não tenho sorte com jogo, quem sabe eu posso me dar bem num concurso? Isso foi o que pensei quando a amiga Gláucia me enviou o link de um concurso literário, com esta recomendação: “- Tem a sua cara!”. Daí, que pensei comigo: “- Se tem a minha cara, isso não quer dizer nada, já que, em termos de aparência, sou igual a medicamento genérico”.

Esqueci o edital e fui tocando as lidas domésticas. Quando faltava cinco dias para o término das inscrições, me veio a ideia de participar. Daí em diante, foi uma correria danada, tendo que ficar horas frente ao computador, digitando, corrigindo, formatando. Tive até que recorrer a um amigo, o JD Vital, para fazer a revisão do texto. Consegui fazer a postagem quase em cima da hora, contrariando minha índole mineira.

No dia seguinte, fui tomado de uma dor insuportável na perna esquerda, em decorrência de uma inflamação provocada por postura inadequada. Durante vários dias, tive que me entupir de anti-inflamatório. A dor era tanta que eu chegava a pensar palavrão: “- Pô! Vou ter que ganhar essa disgrama!”.

Comecei a contar os dias para a divulgação do resultado. Queria e não queria ganhar o prêmio (R$1.000,00, R$600,00 e R$400,00 para os três primeiros classificados). Queria, quando pensava nos medicamentos, que haviam custado o “olho da cara”; não queria, quando fiquei sabendo que haveria uma solenidade para entrega dos troféus (que, depois, por causa da pandemia, seria trocada por uma videoconferência). Como não sei nem aparecer e quanto menos falar em público, as duas alternativas embrulhavam meu estômago.

Chegado o dia fatal, dividido entre sentimentos contraditórios, fui pesquisar o resultado do concurso. Estabeleci comigo mesmo: o terceiro lugar está ótimo, já que estarei na sombra dos dois primeiros. Assistindo à gravação, o apresentador anunciou o nome do terceiro colocado... e não era eu. Pensei comigo: “- Puxa vida! Serei o segundo?”. Também não fui. Suando frio, com o coração palpitando, disse para mim mesmo: “- Pois é, Eleutério, conforme-se com o primeiro lugar!” Pois, acredite, também não fui eu.

Com sentimento de alívio e frustração, abri o vídeo onde seriam anunciadas as dez menções honrosas. O locutor começou a anunciar os contemplados a partir do décimo colocado. Já mais tranquilo, fiquei aguardando o meu nome: 10º... 9º... 8º... - comecei a ficar preocupado - 7º... 6º... Quando chegou ao primeiro, vi que meu nome não constava nem na lista das menções honrosas.

Uma decepção profunda tomou conta de mim, sentimentos contraditórios começaram a dançar na minha cabeça, enquanto a dor na perna voltava a me atacar. Enumerei mentalmente uma série de razões para meu aparente fracasso:

👉1º) Tal qual a raposa da fábula das uvas, pensei: “Bah! Era um concurso vagabundo!”;

👉2º) Considerei a hipótese de meu texto ter sido recusado por não ter atendido alguma exigência do concurso;

👉3º) Por causa de minha “melhor idade”, os editores preferiram investir em autores jovens, que podem dar mais retorno financeiro;

👉4º) Certamente, o motivo de minha desclassificação foi ter falado mal do governo que está aí. O pessoal dessa editora é todo ele “gado do capitão” – também pensei;

Finalmente, ao fim de tudo, acabei me conformando de vez, quando me lembrei de uma citação de Chico Buarque, acho que logo depois de ter publicado “Leite Derramado”: - Escrever é uma merda!

Desliguei o computador e, arrastando a perna, fui para a cama me entregar aos braços de Morfeu. A facada ainda girava na ferida de meu peito. Pedi a Élpis, deusa da Esperança, para me agasalhar naquela noite, aliviando um pouco minha dor e tristeza. Como o próprio Chico Buarque cantava, pensei comigo: “Amanhã vai ser outro dia”.

Etelvaldo Vieira de Melo

5 comentários:

Geraldo Uzac disse...

Caro Etelvaldo, o seu texto me faz lembrar a família da minha falecida mãe. Meus tios, assim como meu querido avô Juquinha, eram viciados em jogo. Meu avô gastou todo dinheiro da minha avó, que tinha um situação financeira invejável, lá pelas bandas de São João Del Rey, no Cassino da Pampulha, atual Museu de Arte. Ele pegava o bonde próximo ao Parque Municipal, e descia na porta do cassino. Perdeu tudo o que a minha avó havia herdado. Em razão do seu vício eles nunca conseguiram ter um casa própria, tendo que pagar aluguel por toda a vida. Os meu tios também não passagem um dia sequer sem fazer uma "fezinha" no jogo do bicho. E assim como meu querido avô, viveram sonhando com a vida no ócio só gastando com os prazeres da vida, mas terminaram a sua jornada sem conseguir ganhar um tostão extra. Nos nos 50 ou 60, salvo melhor juízo, existia a figura do malandro carioca, que inclusive inspirou o famoso Zé Carioca, que era o cara que tinha horror ao trabalho, e gostava da vida fácil, cercado de belas morenas, de uma cervejinha, e de muita malandragem. Esse personagem era tido como modelo por muita gente, haja vista, usufruir de uma vida fácil, fora dos padrões conservadores. Tenho para mim que esse sonho da "malandragem" pode estar relacionado aos prazeres do jogo, que poderia oferecer a tão sonhada "vida fácil", fora do mundo trabalho, tendo em vista os baixos salários e a falta de perspectivas naquele Brasil do século passado. Quanto à participação em concursos literários, não tenho como comentar, porque participei somente de campeonato de times de botão, onde me tornei campeão com o time do América, na sala da minha casa. Nessa época eu havia completado 9 anos, em abril de 1962. Puxa vida, com o a vida passa rápido. Já estou na melhor idade, mas, infelizmente, na última e derradeira etapa.

Geraldo Uzac disse...

Digo...Meus tios também não passavam um dia sequer...

Anônimo disse...

Ótimo, xará! Gostei muito!
Etevaldo

Anônimo disse...

Fiquei lendo na expectativa do resultado. Sabe envolver mesmo seus leiturinos! E a perna, melhorou?
Dri

Anônimo disse...

Obrigada pelo presente!
Densa e engraçada reflexão!
É assim mesmo, amigo! Como diria um outro amigo nosso, que inclusive poderia ser você, e que se apropria muito bem da velha sabedoria popular: quem não arrisca, não petisca!
Gostei dos amigos leiturinos, nós inclusive!
Espero que se anime a arriscar mais, mas sem taquicardia e dor nas pernas! Tome antes e durante um chá de camomila, excelente efeito placebo!
Seus textos merecem um esforço extra, são muito bons!
Mas, se não acredita no chá de camomila, desista logo!
Grande abraço.
Gláucia.

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