Foi
naquele restaurante sofisticado que se reuniram para comemorar o Dia das Mães.
A reserva havia sido feita pelo filho mais novo.
Janice se sentia um pouco incomodada com a presença das noras. Há tempos, já havia
notado certa animosidade por parte delas. Ela se perguntava se não era ciúme,
medo que elas tinham de compartilhar os maridos. Julgava aquilo uma bobagem
muito grande, mas não havia encontrado meios de quebrar aquela barreira. Agora
que estavam todos ali, quem sabe não seria a ocasião de derreter aquele gelo!
Pensando nisso, seu olhar ia de um filho ao outro, ela se sentindo orgulhosa de
vê-los bonitos e bem sucedidos. Por quanto tempo ficou assim embevecida, não
sabia precisar. Tudo durou até o momento em que percebeu os olhares rancorosos
das noras em sua direção. Foi aí que baixou os seus, modestamente, para o
guardanapo sobre a toalha da mesa.
Rogalício,
o filho mais novo, conversava com o garçom. Este estava lhe explicando:
- Como
você pediu um vinho envelhecido, tive o cuidado de deixá-lo aerando por cerca
de duas horas. Ele será servido em um decanter, numa temperatura entre 16 e 18
º C. Tudo bem?
- Ótimo
– falou Rogalício, enquanto que, distraidamente, pegava a taça que estava à sua
frente pela haste com a mão esquerda e dava-lhe um toque com a unha do dedo
indicador da mão direita.
Torradas
haviam sido servidas, juntamente com pastas de tomate seco. Rodartino, o filho
mais velho, enquanto comia uma torrada, estava pensando: “Eu não devia permitir
que meu irmão tomasse a iniciativa de tudo isso. Para mim, seria ótimo que o
cardápio fosse à base de massas e cerveja”.
Rogalício parecia ler seu pensamento. Foi então que estabeleceu, mentalmente, um diálogo
com o irmão:
- Você
precisa aumentar um pouco seu nível cultural. Pensa que tudo isso é bobagem?
- Não
penso – respondeu Rodartino, na imaginação de Rogalício. – Pode dar uma de
enólogo e me explicar didaticamente o que acontece.
- Que
ótimo. Veja bem. Um bom vinho, quando exposto ao oxigênio do ar, sofre ações
benéficas, liberando mais intensamente seus aromas e aprimorando seus aspectos
gustativos. A aeração ou respiração do vinho é feita justamente para que ele
mostre a sua estrutura e complexidade de aromas. Ela deve durar de 1 a 3 horas
e pode ser feita num decantador ou decanter, expressão em inglês, e que se
presta, também, para acomodar os sedimentos ou borras acumuladas no fundo da
garrafa. Nosso vinho será servido num decanter.
- Rogalício,
estou observando garçons limpando gargalos de garrafas com panos. Por que eles
fazem isso?
- A
cápsula que envolve a tampa da garrafa pode ser removida com um acessório
chamado corta-cápsulas ("foil-cutter"). Essa cápsula é feita de
chumbo, um material tóxico; daí, a necessidade de se limpar bem com um pano o
gargalo da garrafa. Um detalhe importante diz respeito ao saca-rolha. Sua haste
não pode ser como um parafuso, mas deve aparentar o rabo de um porco, com
passes longos, para que abrace firmemente a cortiça e não esfarele a rolha. É
importante também que ela seja revestida de teflon.
Enquanto
assim dialogavam, o garçom se aproximou com a jarra de vinho. Rogalício pegou sua
taça pela haste. Assim que foi servido, ele ergueu a taça contra a luz e a
agitou em movimento giratório. Enquanto isso, explicava ao irmão:
-
Segurando a taça pela haste, evito que o calor da mão aqueça o vinho e altere
sabores e aromas característicos; erguendo a taça contra a luz, observo a
intensidade da cor, se é mais fechada ou transparente; quando a agito em
movimentos giratórios, estou oxigenando a bebida, fazendo com que libere mais
facilmente todos os aromas. Com esse movimento, também percebo a viscosidade do
vinho, suas “lágrimas” e seu corpo. Agora, estou inclinando a taça contra um
fundo branco, meu próprio guardanapo, e vejo que nosso vinho apresenta uma cor
acastanhada e aquosa, com claros sinais de evolução.
- A
explicação está ótima, mas não haveria meios de finalizá-la?
- Que
seja. Um vinho se toma através de três etapas. Visualmente, observe se ele é
límpido, brilhante, transparente. Note os tons dos reflexos, as lágrimas, os
filetes viscosos que escorrem pela parede interna da taça, ao agitá-la. Quanto
mais numerosas forem as lágrimas, mais alcoólico é o vinho. Esse apresenta um
tom acastanhado, porque se trata de um vinho evoluído, envelhecido. A etapa
olfativa talvez seja a mais rica da degustação. Deixo para que você possa
desvendar pessoalmente aqueles aromas primários, originários da própria fruta,
como os de frutas ou flores; os aromas secundários, aqueles produzidos durante
o processo de elaboração do vinho e que apresentam várias espécies de famílias:
frutada, floral, herbácea, vegetal, mineral... e, finalmente, os aromas
terciários, os chamados buquês e que representam a evolução na garrafa de todos
os aromas anteriores. A última etapa é a degustação e você verá que o sabor
doce é percebido na ponta da língua; o ácido, nas laterais e o amargo, no fundo
da língua. Um bom vinho, no caso dos tintos, é aquele que apresenta equilíbrio
entre tanino, acidez e álcool. Em resumo, seu tanino deve ser macio ou
elegante, sua acidez adequada - que irá lhe conferir exuberância e vivacidade -
e um teor alcoólico que não provoque calor e ardência na boca.
Depois
desse ritual todo e dessa conversa imaginária com o irmão, Rogalício deu parecer
de aprovação ao garçom. O prato principal foi servido: Fondue de Carne,
acompanhado dos molhos tartare especial, chutney de alho, quatro queijos e
molho de ervas.
Enquanto
Rodartino, que já havia dado conta praticamente sozinho das torradas, atacava com entusiasmo as carnes, os molhos e a bebida, Rogalício quase que só tomava vinho,
como se estivesse num ato religioso. Já as três mulheres comiam e bebiam com
moderação e aparente afetação.
No
final, encerrando a sessão, sem que nenhuma das partes reclamasse, a conta foi
pedida. O garçom, prestativo, a trouxe numa bandeja.
Rodartino
olhou-a de relance e disse:
-
Passo.
Entregou
a conta ao irmão Rogalício, que a olhou curioso e disse:
-
Passo.
Finalmente,
ela chegou às mãos de Janice, motivo daquele encontro e comemoração. Ela
olhou o valor da nota, sentiu um aperto no coração, mas armou-se de coragem
para abrir a bolsa e retirar dali o valor que deveria ser pago.
Todos
voltaram para suas casas felizes e contentes. Quer saber se o gelo entre mãe e
noras foi quebrado? Não é possível dizer que sim, uma vez que a história se
passa em noite de muito frio.
Etelvaldo
Vieira de Melo
2 comentários:
Ser mãe é padecer num paraíso....
Esta história é verídica... Fui testemunha ocular...
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