Estou dentro de uma lotação e estou indo para casa.
O ônibus está cheio, o calor insuportável, todo mundo fala ao mesmo tempo, em
concorrência com o aparelho de som do motô. O ritmo das músicas do rádio é
baiano, coisa que não gosto, naturalmente, e eu acho que é um direito meu não
gostar de certo ritmo baiano, embora existam muitos músicos baianos bons, é o
que penso. Colado no vidro à minha frente, está um prospecto de um jornal
chamado “Jornal do Ônibus”. Sua última coluna se chama “Gentileza Urbana
é...”. O presente número estampa: “Gentileza Urbana é... Evitar comer
alimentos com cheiro forte dentro do ônibus”. Em números passados, a coluna
dizia coisas como: “Gentileza Urbana é... Não conversar ou cantar em tom
alto e nem gritar dentro do ônibus”; em outro número falava que “Gentileza
Urbana é... Não se irritar com alegria das pessoas que cantam dentro dos ônibus”.
O jornal tem uma função altamente educativa, como foi expresso naqueles
dizeres: “Gentileza Urbana é... Ter higiene e cuidar das axilas, dos pés e
da saúde bucal”. Agora, minha cabeça ficou um pouco confusa depois que o
saco plástico passou a ser execrado e o Jornal estampou: “Gentileza Urbana
é... Usuário que sente enjoo durante as viagens ter sempre à mão um saco
plástico”. O trânsito está insuportavelmente lento e eu vejo que a maioria
absoluta dos carros só transporta o motorista (94,83% - em bases estatísticas).
Tudo isso - ônibus cheio e excesso de carros - reforça a minha tese de que as
autoridades que cuidam do trânsito e coisas afins deveriam investir no
transporte coletivo, penalizando com multa os motoristas particulares que
cometessem a ousadia de sair de carro durante a semana. Posso estar desagradando
uma montoeira de pessoas, mas é assim que penso e eu acho que também é um
direito meu ter uma opinião a respeito desse assunto. Pensando bem, estendo um
pouco o raciocínio, mas tendo o cuidado de não forçar demais – por causa do
calor, do ônibus cheio, das conversas e da música baiana – estendendo o
raciocínio, como eu dizia, acho conveniente que saúde e educação também devem
ser serviços prioritariamente públicos. Existe até uma tese interessante
dizendo que, a partir do momento em que os filhos das classes mais estribadas
frequentarem escolas públicas, o nível de ensino irá melhorar, já que haverá
mais cobrança. A tese pode envolver também o setor de saúde, com as autoridades
dando exemplo (seria bom demais ver o presidente ser tratado num hospital do
SUS, numa de suas internações por ter engolido, sem mastigar, um excesso de camarão!). Também
acho que já está passando da hora do bem comum ser tratado com mais seriedade
em nosso país. Onde está escrito que as coisas boas são privilégio de países de
primeiro mundo? O governo deveria desviar sua gana arrecadatória - das multas
de trânsito, por exemplo - para outros setores, que melhorassem o nível de
educação e de cidadania das pessoas. Assusta como as ruas e as casas estão
malcuidadas; andando, você raramente vê um muro ou fachada de prédio sem que
estejam pichados. A propósito, lá perto de casa tem um muro, onde alguém se deu
ao trabalho de escrever, ao lado de sinais em código secreto: “Não pixo,
faço protesto”. Acho que não podemos considerar, à priori, que ele esteja
cometendo um erro de ortografia; é possível que, além de registrar publicamente
seu protesto, esteja usando de uma licença poética, prestando sua singela
homenagem à produtora cinematográfica “Pixar”. É preciso considerar que, entre
o céu e a terra, existem coisas que vão além de nosso achismo. Isso é uma coisa
que penso também, embora esteja usando do mesmo artifício, o de fazer uma
suposição. Pensando assim, peço-lhe entender como licença poética toda vez que,
por deslize ou ignorância, venha eu esmagar com os pés ou macular nossa última
flor do Lácio, inculta e bela. Mas vamos considerar, retomando o fio da
meada, que está tudo errado, mesmo. No início do ano, aquelas pessoas, que
cuidam de dar uma aparência decente para suas residências, são cobradas com
pesados impostos, enquanto que os desmazelados recebem o prêmio de redução, ou
até mesmo de serem isentos das taxas. Acho que está passando da hora de surgir
um político com práticas inovadoras e que ajude a melhorar a qualidade de vida
da população em geral. No mais, peço desculpas pelo desabafo; quero que você
entenda que tudo isso tem um pouco a ver com o calor, o ônibus cheio, as
conversas e a música baiana. Também a minha vizinha de banco andou comendo um
daqueles salgadinhos bem fedorentos, fato que fez meu estômago ficar dando
voltas o tempo inteiro – justo em frente ao prospecto Gentileza Urbana,
que recomenda não comer alimento com cheiro forte dentro do ônibus. Tudo isso
altera o humor da gente e leva a gente a dizer coisas que, normalmente, não
diria. Ainda bem que o ônibus se aproxima de meu destino. Vou dar o sinal e
descer com minhas sacolas de compras. Pronto. Triiimmm!!! Tchau!
Etelvaldo Vieira de Melo
2 comentários:
E olha que interessanteTel!
A expressão “gentileza urbana” tem várias origens e significados. A mais famosa, conta que o Profeta Gentileza ficou conhecido por propor críticas sociais em inscrições em verde – amarelo nas pilastras do Viaduto do Gasômetro, no Rio de Janeiro. E foi assim que surgiu a expressão “gentileza urbana”.
Etevaldo
Seu texto é uma excelente reflexão educativa. Vou além: "Uma gentileza urbana".
Mauro Passos
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