Sempre achei estranho o fato do Brasil,
apesar de ser o maior país em número de católicos no mundo, não dispor, até o
ano 2000, de um santinho sequer. Pensava: será por causa de nossa miscigenação que é tão difícil ser santo nesse país? Não é por
nada, pode ser que uma mistura explosiva assim não permite a alguém, que seja
brasileiro da gema, chegar ao status de santo. Veja que os Estados Unidos, país
onde o capitalismo faz o máximo de sucesso, já dispõem de inúmeros santos. Eu me
pergunto: será porque ser católico lá é uma situação mais difícil do que ser
católico cá, numa alusão ao dito que fala “em terra de cego, quem tem um
olho é diferente”? Seria como a cotação de uma moeda: um gesto de caridade
nos Estados Unidos vale mais do que o mesmo gesto no Brasil. Por ser um país
católico, a caridade aqui é (era) moeda corrente, inflacionada, de baixa
cotação. Lá fora, onde é cada um pra si e outros que se danem, um gesto de
altruísmo vale muito.
Talvez eu esteja divagando em notas falsas,
a verdade seja bem outra. Talvez tenha razão o velho Marx, quando diz que o
econômico é que prevalece sobre as demais estruturas. Talvez (eu não estou
falando de forma categórica, faço apenas uma suposição), talvez a própria
santidade seja algo determinado sob a ótica capitalista. Que não seja por nada,
custa caro, muito caro, um processo de canonização (além de caro, demorado: até
chegar a santo, o postulante passa pelas categorias de Servo de Deus, Venerável
- caso apresente as virtudes necessárias - e Beato – quando acrescenta um
milagre ao currículo). O Brasil era um país católico, mas pobre, não dispunha
de recursos para bancar tamanha empreitada.
Os tempos mudaram, conseguimos saldar a
impagável dívida externa, as classes C e D emergiram, a ordem mundial como que
sofreu um abalo sísmico e muitos que estavam em baixo subiram, enquanto
os que estavam em cima foram para baixo (isto no início dos anos 2000; agora,
a “vaca foi pro brejo” de novo).
Anos atrás, as turnês artísticas que
aqui aportavam não passavam de terceira categoria. Quando ousaríamos assistir a
uma apresentação dos Beatles? Hoje, seu remanescente ilustre, sir Paul
McCartney, conhece mais capitais brasileiras do que eu, por exemplo. O famoso
Cirque du Soleil, até antes da pandemia, entrava ano e saía ano, sempre estava aqui com suas apresentações.
A globalização e o empuxo sofrido pelo
Brasil fizeram com que o país entrasse, por via de consequência, no rol
daqueles que ostentam santos em seus currículos. Até 2010, eram dois: Santa
Paulina do Coração Agonizante de Jesus (Madre Paulina), nascida na Itália,
canonizada em 2002, e Santo Antônio de Sant’Ana Galvão (Frei Galvão), o
primeiro 100% Made in Brazil, nascido em São Paulo, tornado santo em 2007. Depois,
vieram José de Anchieta e Irmã Dulce, a primeira santa genuinamente brasileira.
Em 2017, tivemos uma explosão de canonizações: foram 30 de uma vez, os
conhecidos como Mártires de Cunhaú e Uruaçu, vítimas de dois morticínios
ocorridos em 1645, no contexto das invasões holandesas no Brasil.
(Engraçado: em 2017, eram 172,2 milhões
de católicos no país; em 2019, assustadoramente, tal número caiu para 126,9
milhões. Parece que, quanto menos católicos tivermos, mais santos irão
aparecer.)
Para mim, um exemplo de santidade foi
minha mãe. Por razões econômicas, sei que ela não seria canonizada. Depois,
existe todo aquele processo de investigação e sindicância sobre sua vida. Caindo
no domínio público, ela sofreria reprovação por um pequeno deslize. Sob meu
olhar, não tem nada demais, mas seria algo fatídico para os inquisidores:
Certo dia, estava ela fritando torresmo
lá no fogão à lenha da cozinha, quando foi abordada por um senhor, chamado de
João Pesco e que tinha uma deformação na mão esquerda, que ficava encurvada.
- Madrinha Leonina... – falou ele, com
voz suplicante e levantando a mão esquerda.
Pelo tom de voz e pelo gesto, mãe sabia
qual o pedido que iria vir em seguida.
- O que foi, João? – perguntou ela,
mais por perguntar.
- Madrinha... a senhora poderia me dar
um pouquinho de torresmo?
- Dou, João. Só espere um pouco até
estarem bem fritos e esfriados – respondeu minha mãe, armada de paciência.
- Madrinha, por favor, madrinha, pode
me dar assim mesmo! – ele falou com voz angustiada e mão direita estendida.
- Já que você quer assim mesmo, toma! –
enquanto falava, minha mãe despejou com a espumadeira um tanto de torresmo na
mão de João.
O pobre coitado soltou um grito triplamente angustiado - de espanto, dor e desespero - por não poder levar à boca aquilo que poderia acalmar seu desejo, enquanto, afoito, soprava a mão. Foi daí que surgiu o ditado "o apressado, quando não come cru, acaba queimando a língua".
Minha mãe era uma mulher
extraordinária, mas tinha desses pequenos pecados veniais. Este aqui é um
daqueles que impediriam sua entrada no rol dos santos. Infelizmente.
Etelvaldo Vieira de
Melo
1 comentários:
Ótimo! Muito bonito lembrar de sua genitora. Fato realmente hilário.
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