Estando certos os que acreditam em
reencarnação, devo ter sido testemunha em tribunais de justiça noutras
passagens, tal o meu empenho com a verdade. Quando me surpreendo no intuito de
dizer uma mentira, pequenininha que seja, logo fico vermelho qual pimentão
maduro.
Essa crença teve suas estruturas
seriamente comprometidas dia desses, quando vivenciei um fato banal.
Para não fugir ao costume, estava no
ponto de ônibus, esperando o distinto para me levar para casa, meu lar, meu
doce lar.
Um desconhecido, que nunca tinha visto
mais gordo (e ele era um pouco gordinho), que logo se identificou como Júnior,
veio puxar conversa comigo. Ao mesmo tempo em que tentava puxar conversa, ele
me puxava pelo braço. Achei tudo aquilo muito estranho e fui me afastando da
calçada pro asfalto, correndo risco de ser atropelado por um veículo qualquer.
Como meu instinto de sobrevivência
sempre fala mais alto, cuidei de voltar para o calçamento. Pensei: fazer o quê?
Enquanto isso, o Júnior, qual metralhadora giratória, disparava palavras pra
tudo quanto é lado, chegando ao ponto de dizer que eu parecia com um seu amigo.
Perguntei pelo olhar: como assim? – e
ele explicou que se sentia incomodado em conversar com o amigo, pois só ele
falava, enquanto que o outro balançava a cabeça.
- Por que somente eu falo? – quis saber
Júnior.
- Ora – respondeu, finalmente, o outro.
– Não sei se você já observou que temos dois ouvidos e uma boca. Se fosse para
falar mais do que ouvir, haveríamos de ter pelo menos duas bocas e um ouvido.
Júnior não ficou vermelho - ou porque
era moreninho, ou não se deu conta da direta do outro. Continuou seu diálogo
monológico comigo, dizendo ter sido técnico em eletrônica, mas que se tornara
corretor de imóveis.
- Dia desses, levei um sujeito para
comprar a casa da minha mãe, e sabe o que ela fez? Ela disse assim: - Olha, seu
moço, se eu fosse você, não comprava esta casa, não. Estas paredes aqui são
todas de adobe, a laje está com filtração; quando chove, é um Deus nos acuda.
Também tem a vizinhança, que mexe com drogas. Quando baixa a polícia, a casa
vira um beco de saída pros traficantes, voando bandido pra tudo quanto é lado.
Outra coisa é que estou precisando pedir é a ligação de esgoto, pois a fossa
está toda cheia.
Ao ouvir aquela descrição, o sujeito
virou pra minha mãe e falou assim:
- Dona, sou muito agradecido pela sua
franqueza. Eu estava pensando seriamente em fechar negócio, mas, depois de suas
palavras, acho melhor desistir.
Quando o distinto se foi, Júnior passou
uma reprimenda na mãe:
- Mãe, mãe, deste jeito a senhora me
leva à falência!
Foi aí que ele se lembrou de outro amigo
e que tinha uma porção de namoradas: - Olha aqui, Júnior, vou colocar o
telefone no viva-voz pra você me ouvir marcando encontro com uma gata. - E
assim ele fez com uma e mais uma. Eu falei pra ele: - Cara, você é casado, tem
uma mulher linda, tem uma filha, por que você faz uma coisa dessas? - Ora –
falou o outro: Se eu falar que sou casado, acabo não pegando nada; por isso é
que, pra elas, eu sou solteirinho da silva.
Nessa altura dos acontecimentos, quer
dizer, do falatório, como o ônibus ameaçava chegar, Júnior quis fechar com
chave de ouro sua explanação: Eu nunca vou dizer a verdade total para um
cliente. Se ele me pergunta se existe problema com drogas nas imediações do
imóvel, eu vou dizer: “Meu amigo, você sabe que o problema de drogas é
generalizado; por isso, não vou dizer que tem ou deixa de ter. Você sabe como
é”. E, pra você, eu digo mais uma coisa: quem fala a verdade, não sai do chão.
Veja o Bolsonaro. Logo no início do governo, ele falou uma verdade: - Estou
chegando à conclusão que não tenho vocação e nem competência para ser
presidente da república. - Depois, mudou o discurso e desandou a falar
mentiras. Pelo menos chegou até aqui. Se tivesse dado uma de bonzinho, há muito
teria sofrido impeachment.
O ônibus chegou, passei pela roleta,
usando da carteirinha que me dá direito à gratuidade. O Júnior também pegou o
mesmo ônibus, mas ficamos separados por uns bancos. De longe, eu lhe disse: - Abraços
pra sua mãe! - Quanto ao princípio de que quem diz a verdade não sai do chão,
por causa de meu retardo mental, ainda não digeri bem. Depois eu vou ter uma
opinião formada sobre o assunto, isto é, se o fato de ter vivido rastejando até
hoje, como se fosse uma tartaruga, decorre do compromisso de sempre dizer a verdade.
Ai, se for!
Etelvaldo Vieira de
Melo
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