Abner desde quase sempre se julgou um predestinado,
com forças ocultas livrando-o das fatalidades e proporcionando-lhe agradáveis
aventuras.
Tudo começou quando tinha três anos e ele se escondeu debaixo de
um carro Passat, importado do Iraque, pensando ser aquele o veículo de seu pai.
Não era. Quando o motorista arrancou com o carro, por pouco muito pouco ele não
partiu dessa, batendo a caçuleta. Aos cinco anos,
aconteceu uma nova aventura de carro, com Abner e seu pai. Estavam indo para
uma pescaria, justo quando um carro com as mesmas características tinha sido
usado num assalto. A polícia, passando junto ao Passat do pai de Abner, começou
a atirar, com a intenção de fazer as perguntas depois. Foi quando um dos
milicos viu a criança e ordenou aos colegas para suspenderem o tiroteio:
- Pelotão,
este não é o veículo do assalto! Vejam: tem uma criança no banco!
Aos oito
anos, Abner caiu num canal, cheio por causa da chuva. Ele não sabia nadar, mas
exercitara prender a respiração. Por isso, conseguiu chegar ao outro lado,
caminhando por baixo d’água.
Aos
dezoito, foi para São Paulo em busca de estudo e trabalho. Quando completou
dezenove anos, começou a namorar uma menina da comunidade, chamada
Alessandra.
Certa
noite, foi ela quem chamou Abner para ir até sua casa para roçar a pitoca,
já que seus pais estariam fora. Acontece que eles voltaram logo, quase pegando
o aventureiro com as calças nas mãos. Ele comeu brocha, tendo que
se esconder no guarda-roupa, pois o pai intimou:
- Filhinha,
por que você trancou a porta do seu quarto? Trate de abrir logo.
O tempo
passou, sem que o perigo desanuviasse. O garoto acabou caindo no sono, sendo acordado
já de madrugada.
- Pode
sair, meu bem, pois a ameaça já passou.
No dia
seguinte, Abner ficou sabendo que o paizinho de Alessandra, conhecido como
Sergipano, era o chefão do tráfego na região e que, por um nada, mandava matar
seus desafetos. Como o rapaz era esperto, tratou de voltar para o torrão natal,
que não ficava no Rio Grande do Norte, mas em Pernambuco.
Depois de
Alessandra, Abner contabilizou mais quarenta e cinco namoradas, arriando
os pneus pra todas elas. Entre uma e outra, ou no meio delas,
arranjava tempo para aventuras, como a de frequentar uma praia de nudismo na
Paraíba, a praia de Tambaba. Foi lá que foi surpreendido por uma colega muito apetrechada
e que trabalhava com ele numa concessionária de automóveis.
Constrangido
pelo flagrante e pelo estado precário em que se encontrava, falou:
- Não pense
que a coisa é do jeito que está vendo, não. Sou muito ajegado,
mas estou assim por causa do frio.
Depois que
ele me contou o caso, durante uma viagem de passeio, estando agora trabalhando
na área de turismo, percebi que aquela era uma desculpa bem esfarrapada, já que
frio não é coisa que aconteça pr’aquelas bandas.
Muito mais
ele contou, já que era cheio de leriado, com uma língua pra lá de
trelosa, fazendo com o tempo passasse rápido, embora as informações
culturais viessem em conta-gotas, enquanto as bobagens vinham de montão.
Só mais um
caso, para acabar com tanta aresia.
Estava se
preparando para o vestibular, quando recebeu uma proposta de Cristiane, uma
conhecida:
- Se você
passar no vestibular, eu lhe dou de presente minha virgindade.
Um ano se
passou, sem que se encontrassem. Certo dia, ela bateu em sua porta:
- Vim pagar
a promessa.
Depois,
ficaram um bom tempo sem se ver. Quando Abner viu Cristiane novamente, ela foi
logo falando:
- Estou
namorando firme. E tem mais: meu namorado dá de dez a zero em você.
Abner ficou
tabacudo ao ouvir aquilo, julgou um absurdo aquelas palavras. Aquela
moça era uma má agradecida, não reconhecendo seu trabalho de desbravador, tendo
que derrubar matas, enfrentando toda espécie de perigo. Ela estava agindo como
o povo, que não reconhece o trabalho árduo de um político que cuida das obras
de infraestrutura, que só dá valor àqueles que constroem praças e viadutos.
Se aveche
não, Abner, que o ser humano é assim mesmo: não sabe dar valor àqueles que
merecem, enquanto é xeleléu de canalhas e medíocres. Pode ter
certeza que se você fosse um papel de enrolar prego ou um pirangueiro,
Cristiane não seria de tanto saimento.
GLOSSÁRIO:
* Potoca =
conversa sem importância
* Cão
chupando manga = o bom, o cara que sabe tudo, o tal
* Batendo
a caçuleta = morrendo
*Roçar a
pitoca = tirar um sarro
* Comeu
brocha = passou por apuros
* arriando
os pneus = apaixonando-se
* Apetrechada
= dotada de beleza física
* Ajegado
= bem dotado
* Cheio
de leriado = conversador
* Trelosa
= que fala besteira
* Aresia =
conversa besta, sem sentido, fundamento
* Tabacudo
= abestalhado, abilolado
* Aveche
= preocupe
* Xeleléu
= puxa-saco
* Papel
de enrolar prego = pessoa grosseira
* Pirangueiro
= sujeito pão-duro, avarento
* Saimento = atrevimento
Etelvaldo Vieira de Melo
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