CONSTRANGIMENTO



C // O // N // S // T // R // A // N // G // I //

M // E // N // T // O

 

Ao se espalhar pelas redes sociais

o crime ocasional tornou-se passional.

Na verdade, ele estava desconfiado

do silêncio da máquina mortífera

quando estourou a bomba de ar comprimido.

Aliviado, disse “Ufa!” e contou “um-dois-três”

no descompasso de luzes artificiais.

O suco de romã lhe fez mal

E ele se zangou:

Correu pela estrada de terra

até pular o muro

deixando a pasta cair ao chão.

 

Mero acidente?

Crime premeditado?

 

A sentença caberá ao júri

em assembleia na quarta-feira de cinzas

no rol de entrada do “Templo de Salomão”

junto aos resultados do exame de seleção.

Quem viver verá.

Etelvaldo Vieira de Melo

                                                                                                

OCASO



Graça Rios



 

EMPURRANDO COM A BARRIGA

Imagem: bemblogado.com.br


Antônio Carlos Jobim já disse que as palavras são enganadoras: digo “Maria” e penso que conheço Maria. Além de pretensiosas, elas podem atender a propósitos menos nobres, como o de camuflar a verdade, induzindo as pessoas ao erro e à mentira.

Sempre procuro tratar as palavras com respeito. Tenho por elas muita admiração e cuidado. Não penso que sejam simplesmente voláteis. A Bíblia diz que, no início de tudo, a Terra era informe e vazia, até que surgiu o Verbo, isto é, a Palavra. A partir de então, tudo passou a ter sentido.

Quem já sentiu o peso da palavra sabe muito bem da sua força. Os elogios e as críticas sinceras calam fundo no coração de uma pessoa, deixando marcas que nem o Tempo consegue apagar.

Se eu for olhar para minha história de vida, vejo que ela está marcada por palavras significativas e devastadoras. Na minha adolescência, por exemplo, fui vítima de bullying só por ter pronunciado, tal como se escreve, a palavra “Firestone”. Traumatizado, a partir de então, passei a fugir - como o diabo foge da cruz - de toda expressão em língua estrangeira. Tal medo fez com que evitasse sorveterias, já que acalentava o sonho de consumo de saborear um tal de “sundae”, que pressentia ser agradável, mas cujo nome eu não arriscava dizer.

Ainda adolescente, fui surpreendido por um colega de escola que, a pretexto de não sei o quê, me chamou de “cínico”. A princípio, julguei aquela expressão bonita, acho que cheguei até a agradecer a deferência, deixando o colega abilolado, assombrado. Quando fui buscar o significado no “Pai dos Burros”, o Dicionário, é que fui ficar aperreado, enfezado.

E assim tive a vida pontuada - ora de forma amistosa, ora de conflito - com a dita palavra. Foi essa deferência que me permitiu ser o orador da turma, quando da formatura de oitava série. Foi o descuido que me fez sofrer uma reprimenda vexatória do vigário lá de minha terra natal. Ele me pediu para colocar uma carta no Correio, destinada a um tal de Juneaux. Não sei por qual “carga d’água” (taí uma expressão que preciso pesquisar sua origem), ele me pediu para que lesse o nome do destinatário. Descuidado, falei: “Juneaux”, tal como é escrito. Em tom professoral, o padre falou: - Não sabe você que, em francês, “eaux” se pronuncia “ô”? O nome, portanto, se pronuncia “Junô”, seu “cabeça de bagre” (outra expressão que devo pesquisar a origem). 

Antigamente, quando uma pessoa queria deixar para depois de amanhã o que podia fazer hoje, usava-se a expressão que ele estava “empurrando com a barriga” (também preciso pesquisar a origem disso). Com os tempos modernos, tal expressão foi substituída por um terno, que tenho na conta de exótico: procrastinação. Assim, quando alguém está adiando uma decisão, não se diz mais que ele está “empurrando com a barriga”, mas procrastinando. Fica mais bonito e sofisticado. Tal qual o termo outlet, que veio substituir a vulgar “ponta de estoque”.

Penso que tal termo, procrastinar, é perigoso, pois pode se constituir uma forma camuflada de escamotear o “empurrando com a barriga”. Dizer, por exemplo, que um juiz está “empurrando com a barriga” uma decisão é uma acusação grave, pois significa que ele está adiando, fugindo de sua responsabilidade. Agora, se digo que ele está procrastinando uma decisão, aí vou ter que pensar duas vezes, para não incorrer no risco de ofender sua excelência.

Falando em juiz, de tanto “empurrar com a barriga”, estamos vendo nossos magistrados e políticos deixando para depois, adiando uma decisão que precisam tomar com urgência: botar na cadeia o excelentíssimo senhor Jair Messias Bolsonaro. Porque, quanto mais adiarem a decisão, quanto mais procrastinarem, mais difícil ela vai se tornar. E aí, quando, por acaso, forem fazer alguma coisa, a “Inês já é morta” (mais uma expressão para meu rol de pesquisa), “a vaca já foi pro brejo” (outra), a ditadura vai voltar a todo vapor e nada mais poderá ser feito. Hoje mesmo andei lendo um dito filósofo dizer que “é preciso reconciliar o país, e que para isso seria importante que Bolsonaro seja poupado de uma prisão que poderia radicalizar o ânimo de seus apoiadores”. Que bonito, hein? Nessa ótica, eu posso dizer que o chefe do PCC deve ficar solto e tratado a pão de ló para não radicalizar o ânimo de sua quadrilha. Não tem jeito, parece que o Brasil tem vocação para ser o “país da impunidade” (dos poderosos). Não é por acaso que Fernando Collor foi condenado à prisão e, até hoje, anda por aí leve, livre e solto.

Fico pensando assim: se no tempo em que era usual a expressão “empurrar com a barriga”, nossos magistrados e políticos não tinham escrúpulos em tal prática, imagina agora com a tal da procrastinação... Aí, a decisão de botar o golpista no xilindró vai ficar para o Dia de São Nunca, e tudo vai terminar em pizza muçarela, regada a leite condensado.

Bom, vou ficando por aqui. Sei que você está doido para que eu continue, mas preciso de tempo para pesquisar a origem das expressões citadas acima. Essa vida de cronista dá uma canseira, que só você vendo.

Etelvaldo Vieira de Melo

 

FLASH

Graça Rios
 

A VIDA EM PERSPECTIVA

 

Foto: Márcia Chagas


Para me posicionar diante de tudo que acontece em minha vida, aprendi com o tempo que devo sempre escolher a melhor perspectiva, o melhor ângulo. Dependendo do ângulo com que vemos as coisas, elas irão ter uma dimensão, um sentido ou outro, um valor maior ou menor.

Veja o caso de Jair Messias Bolsonaro. Para uns, ele é um mito, o suprassumo da perfeição humana; para outros, não passa de um capeta com a figura de gente. Enquanto uns veem nele a expressão máxima da honestidade, do amor à família e à verdade, dos valores cristãos, da nobreza de caráter, de espírito democrático e do mais puro patriotismo, outros enxergam nele um ladrão vulgar, um trambiqueiro, um mentiroso falastrão, um cretino e falso moralista, um aloprado, ignorante e golpista (seus seguidores - em grande maioria - são à sua imagem e semelhança, existindo também os simplesmente cretinos, os estúpidos e os ignorantes).

É assim, com seus conceitos e seus juízos, que as pessoas vão tocando a vida, cada um buscando a sua felicidade. E isso não seria um problema maior, se elas não se julgassem possuidoras absolutas da verdade em seus juízos de valor. Igual àquela lenda dos cegos e do elefante. No Brasil de hoje, por exemplo, tem muita gente que acha conhecer um elefante, quando mal conhece o seu rabo.

Tal reflexão, sobre as diferentes maneiras como enxergamos as coisas ao nosso redor, vem a propósito de uma conversa entre quatro amigas, em um grupo de WhatsApp. A primeira delas, depois de postar uma foto (veja acima), comenta:

- Bom dia. Alguém fez uma oferenda na esquina da minha casinha... Pergunta aos universitários: a quem?

-  Exu – responde uma segunda. E acrescenta, logo em seguida: - Farofa e pimenta na encruzilhada.

- No dia da minha mudança pro endereço... Axé!

- Por dúvida, faz uma oração – recomenda uma terceira amiga.

Ao que a segunda, demonstrando conhecimento profundo do Candomblé, tranquiliza:

- Ótimo sinal. Exu abre caminhos e é regente deste ano, junto com Obaluaiê e Yemanjá. Amanhã é dia dela. ‘Laroye Exu’ é a saudação.

- Uau! Axé mil vezes – respira, aliviada, a primeira amiga.

Já no desfecho da conversa, surge uma quarta personagem, revelando um outro lado para a medalha:

- Coincidência, amiga. Aqui perto de casa tem uma encruzilhada. Sempre aparecem coisas assim, para fascínio do meu cachorrinho.

A conclusão de tudo é que cada uma das amigas saiu reconfortada da conversa, apesar das visões diferentes sobre uma mesma questão. A segunda se sentiu feliz ao ver que o Candomblé está presente na vida dos brasileiros; a terceira continuou acreditando na força da oração, sempre por via das dúvidas; a quarta amiga julgou que a vida tem desses momentos de unir o útil (a oferenda como manifestação de fé) ao agradável (a oferenda como possível petisco para seu cãozinho).

E a primeira amiga?

- Ela demonstrou, ao longo da conversa, seu sincretismo religioso. Também mostrou cuidado com a saúde pública. Não tendo o cachorrinho da quarta amiga para resolver a questão, teve que ela mesma, dias depois, munida de máscara e luvas, ensacar a dita oferenda e despachá-la no caminhão de lixo da prefeitura...

De minha parte, gostaria muito de me acercar da vida, procurando o melhor ângulo para enxergá-la e vivê-la. Quer dizer: gostaria de perceber o elefante como um todo, sem me contentar com a visão de uma de suas partes.

Paulinho da Viola parece ter essa mesma percepção quando, em uma de suas músicas, enaltece a Escola de Samba Estação Mangueira. Diz ele:

Vista assim do alto

Mais parece um céu no chão

Sei lá, em Mangueira a poesia feito o mar, se alastrou

E a beleza do lugar

Pra se entender

Tem que se achar

Que a vida não é só isso que se vê

É um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber

E as mãos não ousam tocar

E os pés recusam pisar

Sei lá, não sei

Sei lá, não sei

Não sei, se toda beleza de que lhes falo

Sai tão somente do meu coração

Em Mangueira a poesia

Num sobe e desce constante

Anda descalço ensinando

Um modo novo da gente viver

De sonhar, de pensar e sofrer

Sei lá, não sei

Sei lá, não sei não

A Mangueira é tão grande, que nem cabe explicação...

 Assim eu gostaria de enxergar a vida, ela parecendo um céu no chão, sendo bem mais do que se vê, do que os olhos percebem, as mãos tocam e os pés pisam. A vida... tão grande, que nem cabe explicação.

Etelvaldo Vieira de Melo


ALGUMA REFLEXÃO ACERCA DA ESCRITA LITERÁRIA

 


O texto parte da cena como uma flecha e nos perfura. Esse acaso me punge, fere, flerta comigo. Literatura e fotografia são poemas curtos e breves. Tudo, aí, é dado, sem provocar vontade ou possibilidade de expansão retórica.

Exemplo em meu livro Hai-Kai balão:

I-Ching

I-Ching

Que será de Ming?

A intelecção não pode absorver a criatividade. Não é mais o pensamento que se apropria das imagens. São as imagens que eclipsam ou embotam o pensamento. Há, nelas, um ar significante que vai além do sentido.

O texto vem atravessado por alguma emoção, mas sempre será uma realização reverberante, silenciosa, aguda. Traduz-se por palavras, onde o sentido escapa de forma irrecuperável em qualquer linguagem.

A imagem se vê conduzida ao grau zero, a um estado pré-semiológico, infrassignificativo. Espicaça o significado.

A foto machuca e não grita. Imobiliza-se o tempo, numa espécie de presente imutável. Obtém-se um instante em que o sujeito se isola. Existe em sua simples aparência. Nada de desejar dizer mais do que se disse, ou levar o leitor a perceber mais do que se deu a ver.

Deve, o escritor, produzir o mesmo sentido (e não efeito) de espanto, a partir de substâncias diferentes.

No meu livro:

As estrelas

no fundo do mar,

veem peixinhos

no fundo do céu.

Saussure encanta-se com a descrição neutra, branca. Isto é, voltar-se o olhar lavado de desejo ou necessidade de sobrepor ao mundo centelhas de sentido. Desnudar-se um real em que objetos se revelem foscos.

Derramar espanto sem qualquer carga de significação ulterior. Criar imagens pungentes, cuja forma retém apenas força visual, pois nelas nada pode se recusar ou transformar.

Novo livro:

‘movimentos naturais do corpo, contrastando com a rigidez clássica’,

‘… linguagem artística sem qualquer resposta ao mundo.

Devolver ao espectador esse mundo em forma de pergunta.

Decepcionar o sentido, bailando sentidos abertos, para lá da representação. Significar a desilusão fotográfica: frescor da língua.

Dançar como se comesse a fruta na própria árvore; como um animal que masca a erva viva da sensação.

Arrepiar o naturalismo da frase. Descamá-la, estalando tudo que estremece, fluido, tremulante, em leve ebulição de afeto.

Algo que deságua, transcende o humano, depois do quê.

Nada a dizer’.

É dessa fotografia que se nutre a literatura.

Graça Rios


LEMBRANÇAS

 


Ziraldo disse que adulto tem saudade do passado, enquanto criança tem saudade do futuro. Penso ser assim porque criança, geralmente, olha pra frente, sonhando com tudo aquilo que pretende realizar na vida, enquanto que o adulto olha para os lados, naquela disputa frenética pra sobreviver no mercado de trabalho.

- Se é assim, como fica o idoso? – pode você perguntar, mais por perguntar.

- O idoso é quem olha efetivamente para o passado – respondo, levando a pergunta a sério.

- Quer dizer, então, que a criança vive em perspectivas, o adulto em alternativas, enquanto o idoso vive de retrospectivas?

 - Pode ser assim.

Com perspectiva de futuro cada vez mais reduzida e presente tomado com os cuidados na manutenção da saúde, estando seu motor ameaçando bater biela, resta muitas vezes ao idoso tão somente olhar para o passado, resgatando as coisas boas que ali viveu. É por isso que o passado sempre lhe parece colorido, já que teve o cuidado de jogar a sujeira para debaixo do tapete. E é também por isso que a frase “recordar é viver” só tem sentido na boca de uma pessoa da chamada, ironicamente, “melhor idade”. E eu reconheço isso sem nenhum demérito para ninguém. Como diriam os franceses, c’est la vie.

Muitas daqueles do círculo de conhecidos de Eleutério estão nessa situação. Entre eles, um grupo que estudou num internato resolveu criar uma associação, compartilhando fotos, lembranças e notícias. Ocasionalmente, promove encontros, objetivando matar as saudades.

Em uma das postagens do grupo surgiu um tal Marcos Antônio, e Eleutério cismou que se tratava de um amigo dos tempos de adolescência. Quando foi conferir, viu que não era. Mesmo assim, ficou rememorando lembranças, doces lembranças de uma convivência que o tempo não apagara.

- Mas, por onde anda o Marco Antônio? – foi a pergunta que ele fez ao Dimas.

Dimas é um amigo dos tempos de adolescência. Foi ele o responsável por Eleutério ter parado pela metade a leitura de “Os Frutos da Terra”, de André Gide.

- Dimas, estou lendo um livro você precisa ver – foi o que falou Eleutério naquele tempo antigo. -  O autor chama a gente de Nathanael. Veja esta passagem: “Nathanael, não posso mais começar um só verso sem que teu nome delicioso nele apareça. Nathanael, quisera fazer-te nascer para a vida. Nathanael, será que compreendes suficientemente o patético de minhas palavras? Quisera aproximar-me de ti mais ainda.  E como Eliseu se estendeu sobre o filho da Sulamita para ressuscitá-lo – ‘a boca sobre a boca, os olhos sobre os olhos, as mãos sobre as mãos’ – quisera com meu grande coração radioso contra tua alma ainda tenebrosa estender-me sobre ti por inteiro, minha boca sobre tua boca e minha fronte sobre tua fronte, tuas mãos frias em minhas mãos ardentes, e meu coração palpitante... a fim de que acordes na volúpia – e depois me deixes para uma vida palpitante e desregrada”.  Puxa vida, nunca me senti tão amado assim!

- Huummm – resmungou Dimas. - Sei não, essa história de mão sobre mão, boca sobre boca, não está me cheirando bem. Por acaso, você sabe quem foi esse tal de André Gide?...

Quando Eleutério, por absoluta ignorância, fez o favor de passar por debaixo da roleta de um ônibus-lotação, foi também o Dimas quem espalhou aos quatro ventos o feito.

- Eleutério, fiquei sabendo uma triste notícia a respeito de nosso amigo Marco Antônio. Infelizmente, ele foi acometido de uma doença extremamente grave e acabou falecendo. Isso aconteceu agora, acerca de um mês.

- Puxa vida, que notícia mais triste! E eu que estava pensando em entrar em contato com ele para relembrarmos alguns casos...

- O quê, por exemplo? – quis saber Dimas, um pouco curioso. – Onde ele está, quem sabe vai ficar sabendo dessa lembrança.

- Marco Antônio era gordinho e estava quase sempre sorrindo e brincando. Na minha casa havia uma gata de nome Fitinha, que era muito inteligente e apegada. Devo ter falado tanto dela que, um dia, Marco Antônio, perdendo a paciência, falou: “O Eleutério, tem uma gata muito inteligente. Quando quer comer peixe, ela vai até a beirada do rio e espeta minhocas nas unhas, enfiando a pata dentro d’água. Assim, ela pega seus peixes”. Não querendo deixar por menos, retruquei: “Já o Marco Antônio tem um cachorro ainda mais inteligente, o Rex. Um dia, quando andavam pelas ruas do bairro, Rex parou em determinado momento, não querendo sair de jeito algum do lugar. Marco Antônio foi ver, e Rex estava com a pata dianteira direita em cima de uma nota de 100 reais”.

Os 100 reais devem ter servido para Marco Antônio, Dimas e Eleutério comprarem caixinhas de uva-passa e latas de leite condensado, numa quitanda (hoje, de nome Sacolão) em bairro próximo ao Internato. O leite condensado seria cozido em banho-maria, em fogareiro improvisado de tijolos e gravetos. Junto com a uva-passa, ele iria tornar ainda mais doce aqueles tempos.

Etelvaldo Vieira de Melo


OBJETO PERDIDDO



O que move a existência humana? Eis uma pergunta formulada desde os primórdios da Filosofia. Platão, Nietzsche, Foucault, Saussure, consideram que o desejo é o motor das ações humanas. Teoricamente, deixam estabelecido que a partir da hiância (corte do cordão umbilical) todo indivíduo se torna eternamente desejante. Diante da impossibilidade de retorno ao estado homeostático uterino, o indivíduo projetará em objetivos futuros sua incompletude.

O desejo em Psicanálise não trata de algo a ser realizado, mas de uma falta jamais realizada. Em todas as escolhas, há sempre um novo desejo. Portanto, ele permanece insatisfeito. Renasce continuamente uma vez que está em outro lugar que não no objeto a que visa ou no significante suscetível de poder simbolizá-lo.

O próprio desejo persiste em designar o desejo do Todo (objeto perdido) pela expressão de desejo da parte (objetos substitutivos). Trata-se de um fluir metonímico, pois tal objeto estará sempre se deslocando em direção ao que aparenta ser o outro, perdido. O sujeito se vê aprisionado pela vã tentativa de obturar sua falta constitutiva. É nessa premissa que alicerçamos a construção desta tese. Por que selecionamos Aleijadinho para fundamentar nossa proposta? Porque, à medida que empobrece e perde a saúde, suas imagens adquirem maior riqueza e beleza estética. Arminho, ouro, pedras preciosas, ornamentam as vestes sacras. Anjos rosados resplandecem desenhados na pedra sabão, enquanto a palidez marmórea desfigura o artista.

Amarrados camartelo e pincel ao toquinho do braço, o pequeno grande escultor mineiro anseia pela perfeição artística. Aqui, um traço retilíneo conforma o ombro da santa; ali, uma curva acentuada faz seu olhar glorificado. A crença em alcançar a completa esfera paradisíaca como auxílio das mãos conduz beleza e mistério ao abandono da lepra deformante.

Morre a carne putrefata, mas nasce um gorducho Menino do seio da Virgem Maria. Nada obsta ao autor desconforme o prazer da criação. Faminto de pão e teto, ascende aos altares e frutos do jardim celestial. O difícil e conflituoso espírito barroco acalma Cristo no caminho do Calvário. A luta pelo ideal estético fica sempre à frente do infinito tempo e da sociedade colonial em que vive. Cravada na montanha, uma esplêndida Madona aspira à igreja ouro-pretana.

A pujança da obra de Lisboa provém da mais dura miséria. Os Profetas Inconfidentes identificam-se com o martírio do homem. Isaías trama Revolta, sublimando a do Poeta.

Oseias corta correntes com a força indômita do Gênio adoecido. Os soldados, vestidos de roxo, veem flores perfumadas surgindo do estrume fétido com que ele julga curar-se. Então, Monsenhor se comove e encomenda-lhe um frontispício.

Disfarçado de astúcia e paz, o aleijado colore a serpente, lançando o voo das pombas na amplitude do adro. São horas sombrias e longas, recobertas de sinos e fitas. A realidade é urtiga, conduzindo aos roseirais. Escritos vagam nas vagas do mar sob os pés angélicos. Entre o divino e o profano, exausto em cima das tábuas, Aleijadinho adormece. Lá fora, o templo é tão simples; cá dentro, resplende luxúria.

O que suscita o desejo sobre esses objetos pintados no mundo?

Algo indecifrável, diremos. Um brilho, uma textura, um som, um significante. Eles são, para Lacan, faces simbólicas ou imaginárias daquilo que está muito além do princípio do prazer.  Tal elemento concreto passa a ser o alvo do artista, concentrado em pleno gozo. No caso de Francisco, a linguagem da escultura se torna fundamental para a reconstrução do inconsciente recalcado pela mágoa.

Alcançou o absoluto, mas há coisas maiores que o tudo.

 

Graça Rios