ALGUMA REFLEXÃO ACERCA DA ESCRITA LITERÁRIA

 


O texto parte da cena como uma flecha e nos perfura. Esse acaso me punge, fere, flerta comigo. Literatura e fotografia são poemas curtos e breves. Tudo, aí, é dado, sem provocar vontade ou possibilidade de expansão retórica.

Exemplo em meu livro Hai-Kai balão:

I-Ching

I-Ching

Que será de Ming?

A intelecção não pode absorver a criatividade. Não é mais o pensamento que se apropria das imagens. São as imagens que eclipsam ou embotam o pensamento. Há, nelas, um ar significante que vai além do sentido.

O texto vem atravessado por alguma emoção, mas sempre será uma realização reverberante, silenciosa, aguda. Traduz-se por palavras, onde o sentido escapa de forma irrecuperável em qualquer linguagem.

A imagem se vê conduzida ao grau zero, a um estado pré-semiológico, infrassignificativo. Espicaça o significado.

A foto machuca e não grita. Imobiliza-se o tempo, numa espécie de presente imutável. Obtém-se um instante em que o sujeito se isola. Existe em sua simples aparência. Nada de desejar dizer mais do que se disse, ou levar o leitor a perceber mais do que se deu a ver.

Deve, o escritor, produzir o mesmo sentido (e não efeito) de espanto, a partir de substâncias diferentes.

No meu livro:

As estrelas

no fundo do mar,

veem peixinhos

no fundo do céu.

Saussure encanta-se com a descrição neutra, branca. Isto é, voltar-se o olhar lavado de desejo ou necessidade de sobrepor ao mundo centelhas de sentido. Desnudar-se um real em que objetos se revelem foscos.

Derramar espanto sem qualquer carga de significação ulterior. Criar imagens pungentes, cuja forma retém apenas força visual, pois nelas nada pode se recusar ou transformar.

Novo livro:

‘movimentos naturais do corpo, contrastando com a rigidez clássica’,

‘… linguagem artística sem qualquer resposta ao mundo.

Devolver ao espectador esse mundo em forma de pergunta.

Decepcionar o sentido, bailando sentidos abertos, para lá da representação. Significar a desilusão fotográfica: frescor da língua.

Dançar como se comesse a fruta na própria árvore; como um animal que masca a erva viva da sensação.

Arrepiar o naturalismo da frase. Descamá-la, estalando tudo que estremece, fluido, tremulante, em leve ebulição de afeto.

Algo que deságua, transcende o humano, depois do quê.

Nada a dizer’.

É dessa fotografia que se nutre a literatura.

Graça Rios


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