Ziraldo disse que adulto tem saudade do
passado, enquanto criança tem saudade do futuro. Penso ser assim porque
criança, geralmente, olha pra frente, sonhando com tudo aquilo que pretende
realizar na vida, enquanto que o adulto olha para os lados, naquela disputa
frenética pra sobreviver no mercado de trabalho.
- Se é assim, como fica o idoso? – pode você
perguntar, mais por perguntar.
- O idoso é quem olha efetivamente para o
passado – respondo, levando a pergunta a sério.
- Quer dizer, então, que a criança vive em
perspectivas, o adulto em alternativas, enquanto o idoso vive de retrospectivas?
- Pode
ser assim.
Com perspectiva de futuro cada vez mais
reduzida e presente tomado com os cuidados na manutenção da saúde, estando seu
motor ameaçando bater biela, resta muitas vezes ao idoso tão somente olhar para
o passado, resgatando as coisas boas que ali viveu. É por isso que o passado
sempre lhe parece colorido, já que teve o cuidado de jogar a sujeira para
debaixo do tapete. E é também por isso que a frase “recordar é viver” só tem
sentido na boca de uma pessoa da chamada, ironicamente, “melhor idade”. E eu
reconheço isso sem nenhum demérito para ninguém. Como diriam os franceses,
c’est la vie.
Muitas daqueles do círculo de conhecidos de
Eleutério estão nessa situação. Entre eles, um grupo que estudou num internato
resolveu criar uma associação, compartilhando fotos, lembranças e notícias.
Ocasionalmente, promove encontros, objetivando matar as saudades.
Em uma das postagens do grupo surgiu um tal
Marcos Antônio, e Eleutério cismou que se tratava de um amigo dos tempos de
adolescência. Quando foi conferir, viu que não era. Mesmo assim, ficou
rememorando lembranças, doces lembranças de uma convivência que o tempo não
apagara.
- Mas, por onde anda o Marco Antônio? – foi a
pergunta que ele fez ao Dimas.
Dimas é um amigo dos tempos de adolescência.
Foi ele o responsável por Eleutério ter parado pela metade a leitura de “Os
Frutos da Terra”, de André Gide.
- Dimas, estou lendo um livro você precisa ver
– foi o que falou Eleutério naquele tempo antigo. - O autor chama a gente de Nathanael. Veja esta
passagem: “Nathanael, não posso mais começar um só verso sem que teu nome
delicioso nele apareça. Nathanael, quisera fazer-te nascer para a vida.
Nathanael, será que compreendes suficientemente o patético de minhas palavras?
Quisera aproximar-me de ti mais ainda. E
como Eliseu se estendeu sobre o filho da Sulamita para ressuscitá-lo – ‘a boca
sobre a boca, os olhos sobre os olhos, as mãos sobre as mãos’ – quisera com meu
grande coração radioso contra tua alma ainda tenebrosa estender-me sobre ti por
inteiro, minha boca sobre tua boca e minha fronte sobre tua fronte, tuas mãos
frias em minhas mãos ardentes, e meu coração palpitante... a fim de que acordes
na volúpia – e depois me deixes para uma vida palpitante e desregrada”. Puxa vida, nunca me senti tão amado assim!
- Huummm – resmungou Dimas. - Sei não, essa
história de mão sobre mão, boca sobre boca, não está me cheirando bem. Por
acaso, você sabe quem foi esse tal de André Gide?...
Quando Eleutério, por absoluta ignorância, fez
o favor de passar por debaixo da roleta de um ônibus-lotação, foi também o
Dimas quem espalhou aos quatro ventos o feito.
- Eleutério, fiquei sabendo uma triste notícia
a respeito de nosso amigo Marco Antônio. Infelizmente, ele foi acometido de uma
doença extremamente grave e acabou falecendo. Isso aconteceu agora, acerca de
um mês.
- Puxa vida, que notícia mais triste! E eu que
estava pensando em entrar em contato com ele para relembrarmos alguns casos...
- O quê, por exemplo? – quis saber Dimas, um
pouco curioso. – Onde ele está, quem sabe vai ficar sabendo dessa lembrança.
- Marco Antônio era gordinho e estava quase
sempre sorrindo e brincando. Na minha casa havia uma gata de nome Fitinha, que
era muito inteligente e apegada. Devo ter falado tanto dela que, um dia, Marco
Antônio, perdendo a paciência, falou: “O Eleutério, tem uma gata muito
inteligente. Quando quer comer peixe, ela vai até a beirada do rio e espeta
minhocas nas unhas, enfiando a pata dentro d’água. Assim, ela pega seus
peixes”. Não querendo deixar por menos, retruquei: “Já o Marco Antônio tem um
cachorro ainda mais inteligente, o Rex. Um dia, quando andavam pelas ruas do
bairro, Rex parou em determinado momento, não querendo sair de jeito algum do
lugar. Marco Antônio foi ver, e Rex estava com a pata dianteira direita em cima
de uma nota de 100 reais”.
Os 100 reais devem ter servido para Marco
Antônio, Dimas e Eleutério comprarem caixinhas de uva-passa e latas de leite
condensado, numa quitanda (hoje, de nome Sacolão) em bairro próximo ao
Internato. O leite condensado seria cozido em banho-maria, em fogareiro
improvisado de tijolos e gravetos. Junto com a uva-passa, ele iria tornar ainda
mais doce aqueles tempos.
Etelvaldo Vieira de
Melo
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