O
que mais me dói,
porém,
é
a condenação
de
um verbo sem futuro.
(Mia Couto)
O futuro
do catolicismo, mais que em outros períodos históricos, depende de sua
capacidade de ser uma religião da esperança, do diálogo e da solidariedade.
Vivemos um tempo em que o futuro não é o inesperado, pois o homem contemporâneo
sabe e planeja esse novo horizonte. Assim sendo, qual o papel da religião e sua
capacidade de harmonizar o mundo contemporâneo? A história mostra que quaisquer
que sejam as instituições religiosas, inclusive a Igreja Católica, devem ser de
seu tempo; portanto, capazes de avançar e dialogar. Apontar direções. Outras
direções.
Aborto:
eis a questão. O problema não é novo, mas a solução é punir e condenar? Como se
sabe, no Brasil pratica-se, anualmente, um sem-número de abortos mal
assistidos, que custam milhares de vida. Estatisticamente, esse número é
grande. Tal situação sempre foi trágica e comporta muitos gritos e silêncios.
Mas o problema continua sem resposta.
De
alguma forma é preciso pensar, criar e incentivar projetos para que o problema
seja enfrentado com meios humanitários. Isso significa investir em educação –
como se faz com o fumo e as drogas, por exemplo. O Estado tem o dever de
planejar e formular políticas eficientes, inovadoras e, ainda, garantir a
educação sexual para as crianças, adolescentes e jovens.
O
Projeto de Lei 1904/2024 violenta uma segunda vez as vítimas do estupro. Apoia,
em vez de repelir a violência sexual de que tantas vítimas padecem. Essa lei
não apresenta nenhum projeto educativo de formação humana. É inconclusa e mal
vestida (Na moral não existem só princípios). O caráter desumanizador desse
projeto submete as meninas, as adolescentes e as jovens das camadas populares a
um novo processo de repressão. Nesse caso, a razão e os argumentos apresentados
são dependentes do regime de poder: na realidade, é uma jogada política. E,
segundo o escritor Affonso Romano de Sant’Anna: “O poder tem sido indelicado
com os pobres deste país há 500 anos”.
Com esse
cenário, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), perde de vista a
maldade política do momento atual e apoia o projeto de lei. Está ausente na
nota da CNBB uma proposta para criar um clima de afetos, encontros e
pensamentos para as vítimas do estupro e ultrapassar a negatividade moral. A
questão do aborto demanda um pensamento crítico e solidário. Exige repensar a
função social, cultural, política e educacional da evangelização e das
pastorais, particularmente da Pastoral da Juventude. Exige propostas
socioeducativas comprometidas com a emancipação humana, capazes de superar
tantas ações desumanizantes contra a mulher.
É
urgente debater a sexualidade, enquanto dimensão de realização humana. Trata-se
de uma questão a ser repensada, considerando os direitos da mulher. Proibir,
punir e condenar o aborto é penalizar as mulheres pobres e fazer valer a norma
de forma absoluta, sem levar em conta a pessoa humana e o conjunto de problemas
que envolve a questão. É desconsiderar a dor e o sofrimento de mulheres,
meninas e adolescentes. Lembro-me de Rubem Alves: “A solidariedade, como a
beleza, é inefável, está além das palavras”. É uma palavra que abre começos e
acolhe sonhos.
Estamos em outros tempos, em outros contextos. Estamos em tempos de privatizações de humanidades. O que interessa agora é a forma de agir e interagir contra a opressão e a violência sofridas pelas mulheres. Qual a proposta da CNBB para as vítimas de estupro? Basta condenar? Existe um projeto de pastoral para as dioceses investirem nesse aspecto, considerando o abuso sexual sofrido pelas mulheres? Na evangelização, não há como esquivar-se dessa exigência hoje, ainda mais que o cristianismo implica um processo de educação e formação humana.
Estamos em tempo de retomar experiências de educação popular e investir na educação sexual de crianças, jovens e adolescentes. Esse é o pano de fundo inicial. Não há receitas prontas, nem um método ou técnica. Tudo isso é para ser pensado, planejado, encarado e decifrado. Entrelaçam-se resistência, formação humana, realidade sócio-política e articulação de grupos e instituições. Uma linha que não se acaba, mas nos une e nivela.