Por essas contingências do Tempo, a nos
proporcionar perdas e danos, Eleutério sente necessidade de usar um aparelho
auditivo. Seu otorrino - aquele que se parece um pouco com Mr. Magoo,
personagem de desenho animado, e que faz lembrar também Yoda, de Star Wars - é
radicalmente contra; ele acha que devemos nos conformar com os percalços da
idade. Sua filosofia de vida inclui também a receita para um casal viver feliz:
cada um dormindo em cama separada, em quarto separado. Melhor se morassem em
cidades diferentes ou, o que seria perfeito, em países diferentes. Quanto a usar ou deixar de usar aparelho
auditivo, Eleutério se vê pressionado por pessoas próximas, talvez cansadas de
terem de repetir frases por várias vezes.
Mas ele está em dúvida. Para ter uma melhor
resposta, procura observar as pessoas, trocando ideias com umas e outras. Viu –
antes nem tinha reparado – que o colega Adamor usava um aparelho. Eleutério
quis saber o custo e como era usar o dito cujo.
- Cara Pálida, é o maior barato, putz grila! –
(Adamor tem mania de usar gíria da década de 60). – Comprei há dois anos, e
custou R$25 mil.
- Putz grila digo eu – falou Eleutério,
indignado. – Eu não quero um aparelho para ouvir até pensamento dos outros, não!
Outro que usa aparelho é o Marízio. Quando
adolescente, os colegas diziam que ele era surdo por conveniência. Foram muitas
as vezes em que, nas aulas, durante arguições, respondia coisas que o professor
não havia perguntado. Quando esse chamava sua atenção, vinha com a desculpa: “-
Peço desculpas, professor, mas entendi outra coisa”. O professor se conformava:
“- Deixa por isso mesmo”. E o Marízio acabava se dava bem.
Em casa, assim que vai dormir, ele pergunta
para a mulher:
- Maria, você tem mais alguma coisa para me
dizer?
- Não – fala a Maria. – Está tudo bem.
- Então, boa noite – ele diz, enquanto retira
o aparelho.
A partir
daí, o mundo pode desabar, que ele nem vai se dar conta. Como aconteceu daquela
vez, em que a vizinhança passou a noite em polvorosa por causa um assalto à mão
armada, com direito a tiros. Maria passou a noite em claro, com os olhos
arregalados e tremendo feito vara verde. Enquanto isso, Marízio roncava
pacificamente. Só no dia seguinte é que ele ficou sabendo da cena de
bangue-bangue.
Já o vizinho Antenor, o Nô, além de surdo é
analfabeto, nem sabe olhar as horas num relógio. Diz que se orienta pelo Sol;
quando chove ou o tempo está nublado, deixa-se levar pela barriga (hora de
almoçar ou de jantar). Perguntado se não gostaria de usar um aparelho, falou:
- Comigo não tem mais jeito. Com 87 anos de
idade, agora é só esperar a hora de ir – diz ele, apontando para o céu,
enquanto uma lágrima teima em rolar pelo seu rosto.
Nô é uma pessoa emotiva e de muita fé. Quando
teve que tirar o dedão do pé numa cirurgia, se alguém perguntava onde estava o
dedo, respondia: “- O dedo ficou com o doutor Alfredo” (o médico que o operou).
Fazendo pesquisa de preços, Eleutério ouviu
de uma fonoaudióloga:
- Veja você o que dá uma pessoa ouvir direito
e tire suas conclusões: um cliente aqui da loja já refez seu testamento três
vezes, depois que passou a usar um aparelho.
Usar ou não usar um aparelho? – Eleutério
continua se perguntando. Fazendo o teste proporcionado pela loja de revenda,
tem hora que pensa que sim: quando ouve sons antes não percebidos, como o
cantar de pássaros soltos nas árvores. Ou, então, quando consegue perceber
novamente aquele toque especial do contrabaixo na música “Bridge Over Troubled
Water”, de Simon & Garfunfel. No entanto, tem momentos em que pensa que é
melhor não. Como, por exemplo, quando ouve o relógio da cozinha de casa e seu
tic-tac parecido com aquele do filme “Matar ou Morrer” ou, então, quando está
dentro de uma lotação. Se antes o barulho do motor mais as conversas pareciam
fundo musical, agora parecem uma sessão de tortura, impedindo-lhe de fazer o
que gosta: pegar uma caneta e papel, ficar escrevendo suas bobagens. Na
verdade, o mundo está parecendo para ele uma grande sala de cinema, cheio de
efeitos surrounds. Ao ouvir, por exemplo, a freada de um ônibus, ele quase
enfarta.
Tem outra coisa mais séria. Eleutério sofre
de um distúrbio neuropsíquico chamado PFL. Não se trata de uma sigla de time de
futebol nem de partido político, mas de uma invenção sua (Prolapso de Fim
de Curso), quando sua filha começou a estudar medicina e ele frequentava
um curso de eletrônica. Tal nome não passa de uma forma delicada para designar
lerdeza. Eleutério quer crer que seu PFL, ou retardo mental, se deve à sua
surdez. Ele que, até agora, viveu conformado com sua lerdeza, está preocupado:
vai que ela não tem nada a ver com sua perda auditiva e seja coisa congênita
dele mesmo. Coitado, como vai ficar sua autoestima, tendo de conviver com a
verdade de que é lerdo por natureza?
Etelvaldo Vieira de Melo
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