GLOBALIZAÇÃO TEM DESSAS COISAS
Traumas na minha adolescência fizeram com que eu adquirisse rejeição a línguas estrangeiras, notadamente o inglês e o francês. E não adiantou nada estudar tais línguas em cursos regulares: eu simplesmente estava travado para qualquer tipo de aprendizagem.
Com o inglês, aconteceu de estar com um grupo de colegas quando pronunciei, não me lembro com qual propósito, a palavra "Firestone", assim como é escrita. A reação, com risos e gracejos, foi de tanta intensidade que, a partir daí, nem ousava pensar uma palavra nessa língua. Quantas e quantas vezes passei diante de sorveterias, com "água na boca" de desejo para pedir um "sundae", mas cadê a coragem? E o medo de cometer outro deslize de pronúncia? Eu não suportava a ideia de que pessoas rissem novamente de minha ignorância. E, assim, o "sundae" foi jogado pra escanteio, embora sempre estivesse no topo de meus sonhos de consumo.
Com o francês, o vexame foi mais restrito, mas nem por isso incomodou menos. O vigário da cidade me pediu para colocar uma correspondência no correio, endereçada a um tal de Sr. Juneaux. Para confirmar o que havia escrito, me pediu para ler. Li tal qual, ipsis litteris. Horrorizado, o padre me recriminou: "Você não sabe que, em francês, 'euax' se pronuncia 'ô'? A pronúncia correta é, portanto, Junô." - E ele me olhou de uma maneira como se eu fosse um caso perdido; aquele olhar provocou uma dor profunda no meu coração, como se eu fosse um miserável de ignorante.
O tempo foi passando, as feridas se cicatrizaram, mas o bloqueio psicológico continuou, tornando-se mais acentuado com a globalização e a onda de estrangeirismo que tomou conta do país. Só que me tornei esperto o suficiente para não pronunciar uma palavra estrangeira, sem que ela passasse duas, três vezes pelo filtro da audição.
Quando criança, tive um colega de escola que, por causa de seu nariz adunco, sempre era motivo de gracejo para os outros meninos.
- Cala a boa aí, seu filhote de tucano - dizia alguém, quando ele se atrevia a abrir a boca para falar qualquer coisa..
Apesar das brincadeiras das quais foi vítima, creio que chegou à vida adulta sem maiores tropeços. Hoje, seria manchete de jornais: "Criança é vítima de bullying" - com direito a foto em primeira página e depoimentos de especialistas e psicólogos. Porque, convenhamos, o termo "bullying" tem seu charme e inspira consideração e respeito. Mas joga por terra aquela máxima de Nietzsche, quando diz "o que não me mata, me fortalece".
Todavia, "bullying" não está só. Na onda de estrangeirismo, aparece uma coletânea infindável de termos: a expansão da cozinha, a área gastronômica da casa recebe, hoje, denominação de "Espaço Gourmet"; a entrega em domicílio se chama, agora, "delivery"; se você for de carro a uma lanchonete, poderá dispor do serviço de "drive-thru", ou, então, poderá recorrer ao autosserviço, melhor dizendo, "self service"; para divulgar sua empresa, poderá solicitar, junto a uma gráfica, a confecção de "folder" - prospecto, no velho e ultrapassado português. E, para ficar tudo "cool", é tudo uma questão de customizar as expressões de acordo com as circunstâncias.
Dias desses, fui surpreendido pela iminente necessidade de ir a uma "outlet". Que bicho é esse? - pensei comigo. - Será que morde? Também pensei na possibilidade de ter que me preparar adequadamente, quem sabe, ter que me barbear, colocar um terno, passar um pouco daquela loção importada que meu irmão me presenteou. Foi conversando com pessoas, juntando as pontas daqui e dali, que me dei conta de que a tal "outlet", no bom e tradicional português, não passa da querida e velha amiga "ponta de estoque".
Percebo que esse avassalador estrangeirismo quebra possíveis resistências de quem gosta de andar com nariz empinado.
- Onde você está indo?
- Vou garimpar algo numa ponta de estoque.
- Que horror...
- Olá, onde você está indo?
- Estou indo fazer compras numa outlet...
- Ah... Que chique!
E, assim, a vida vai andando para frente. Como as pessoas são sensíveis ao estrangeirismo, ao ponto de muitos sugerirem a troca do dia do folclore de 22 de agosto - com os ultrapassados Saci-Pererê, Mula-Sem-Cabeça, Lobisomem - pelo moderno Halloween, ou Dia das Bruxas, em 31 de outubro (abóboras é que não faltam no país), um amigo já pensa em montar um serviço de consultoria para contraventores surpreendidos na apropriação de bens públicos. Quando chamados de ladrões, corruptos e outros adjetivos menores, poderão retrucar:
- The smart will take over the world!
Pela regra geral, em nosso país, os abonados, os estribados (termo frequente no Nordeste) não são punidos. Usando de uma citação em inglês, podem até receber homenagem, com direito a placa comemorativa!
Quando criança, tive um colega de escola que, por causa de seu nariz adunco, sempre era motivo de gracejo para os outros meninos.
- Cala a boa aí, seu filhote de tucano - dizia alguém, quando ele se atrevia a abrir a boca para falar qualquer coisa..
Apesar das brincadeiras das quais foi vítima, creio que chegou à vida adulta sem maiores tropeços. Hoje, seria manchete de jornais: "Criança é vítima de bullying" - com direito a foto em primeira página e depoimentos de especialistas e psicólogos. Porque, convenhamos, o termo "bullying" tem seu charme e inspira consideração e respeito. Mas joga por terra aquela máxima de Nietzsche, quando diz "o que não me mata, me fortalece".
Todavia, "bullying" não está só. Na onda de estrangeirismo, aparece uma coletânea infindável de termos: a expansão da cozinha, a área gastronômica da casa recebe, hoje, denominação de "Espaço Gourmet"; a entrega em domicílio se chama, agora, "delivery"; se você for de carro a uma lanchonete, poderá dispor do serviço de "drive-thru", ou, então, poderá recorrer ao autosserviço, melhor dizendo, "self service"; para divulgar sua empresa, poderá solicitar, junto a uma gráfica, a confecção de "folder" - prospecto, no velho e ultrapassado português. E, para ficar tudo "cool", é tudo uma questão de customizar as expressões de acordo com as circunstâncias.
Dias desses, fui surpreendido pela iminente necessidade de ir a uma "outlet". Que bicho é esse? - pensei comigo. - Será que morde? Também pensei na possibilidade de ter que me preparar adequadamente, quem sabe, ter que me barbear, colocar um terno, passar um pouco daquela loção importada que meu irmão me presenteou. Foi conversando com pessoas, juntando as pontas daqui e dali, que me dei conta de que a tal "outlet", no bom e tradicional português, não passa da querida e velha amiga "ponta de estoque".
Percebo que esse avassalador estrangeirismo quebra possíveis resistências de quem gosta de andar com nariz empinado.
- Onde você está indo?
- Vou garimpar algo numa ponta de estoque.
- Que horror...
- Olá, onde você está indo?
- Estou indo fazer compras numa outlet...
- Ah... Que chique!
E, assim, a vida vai andando para frente. Como as pessoas são sensíveis ao estrangeirismo, ao ponto de muitos sugerirem a troca do dia do folclore de 22 de agosto - com os ultrapassados Saci-Pererê, Mula-Sem-Cabeça, Lobisomem - pelo moderno Halloween, ou Dia das Bruxas, em 31 de outubro (abóboras é que não faltam no país), um amigo já pensa em montar um serviço de consultoria para contraventores surpreendidos na apropriação de bens públicos. Quando chamados de ladrões, corruptos e outros adjetivos menores, poderão retrucar:
- The smart will take over the world!
Pela regra geral, em nosso país, os abonados, os estribados (termo frequente no Nordeste) não são punidos. Usando de uma citação em inglês, podem até receber homenagem, com direito a placa comemorativa!
Etelvaldo Vieira de Melo
1 comentários:
Belo texto. Franceses costumam pronunciar palavras ingleses com sotaque francês. Um antigo escritor dizia: Devemos falar bem o português e patrioticamente mal as outras línguas. Não somos nativos, portanto não somos obrigados a falar de forma correta outra língua. O estrangeirismo por estrangeirismo é horrível.
Boa crônica.
Mario Cleber
Postar um comentário