QUEM ROUBOU MEU ANEL
DE FORMATURA?
Se
acreditasse em metempsicose, creio que em outras encarnações teria sido um
bicho de preguiça ou uma tartaruga. Tudo porque, comigo, as reações demoram a
ocorrer, custo a acompanhar o ritmo das pessoas; nas conversas, tenho sempre
que pedir para repetirem o que andam dizendo; não entendo nada o que falam na
TV, a não ser que haja uma legenda. Está bem que o otorrino, médico muito
distinto e que me inspirou a mais pura simpatia, disse que tenho uma pequena
perda auditiva, coisa insignificante, que só preciso ter o cuidado de olhar
para os lábios da pessoa enquanto ela fala. Esse médico tem até uma teoria
interessante a respeito do casamento, que eu gostaria de comentar, ainda que
superficialmente. Segundo ele, o casamento tende a dar mais certo, quanto mais
afastados estiverem marido e mulher, em camas separadas, em quartos ou andares
diferentes, em cidades ou – melhor – países diferentes! Muito divertido esse
médico, mas eu não sei se ele falou sério ou fazia troça de mim, quando elogiou
a calça esportiva que eu estava vestindo. Aí, eu disse pra ele: “O senhor está gozando a minha cara, doutor?”
E ele: “Não, absolutamente. Achei muito
chique, deveras.” Então, como estava dizendo, agora me servindo de atestado
médico, minha lentidão para entender as coisas é uma herança genética. Sou
parecido com um italiano que conheci no meu tempo de adolescência. As pessoas
contavam uma piada para ele e sua reação, de momento, era ficar sério; daí a
três, quatro horas, ele se dava conta da graça e ria até chorar. Para muitas
coisas, eu me vejo assim também. Não quero que pensem que sou um retardado
mental, fico ofendido quando me tratam dessa maneira. Já captei, através de
olhares, pessoas me considerando como lerdo, débil mental, e não gostei nem um
pouco. Existem pessoas que, por conveniência, se deixam passar por surdas,
distraídas. É o caso do colega Marízio, que se fazia de ouvidos moucos, quando
lhe solicitavam um favor, mas respondia com presteza quando se tratava de um
agrado. Estou explicando essas coisas em sinal de minha sinceridade, uma vez
que até existe um nome científico para designar meu problema: “prolapso de fim
de curso”, uma denominação esquisita, mistura de termo médico com de
eletrônica, desses usados em portões e cercas elétricas. Mas traduzindo para um
português bem traduzido, com direito à nova regra ortográfica, o termo
significa que apresento uma demora, às vezes mediana, às vezes acentuada, para
dar uma resposta aos estímulos externos. Se você está tendo dificuldade em
entender o assunto, vou me servir de fatos acontecidos, como exemplos. Já faz
bastante tempo que concluí os estudos de oitava série. Tenho uma foto da
formatura, onde apareço fazendo o discurso. Eu quero dizer que fui o orador da
turma! Na foto, lá estou eu lendo tranquilamente o meu discurso; anos depois, com
essa mesma foto nas mãos, fui tomado pela síndrome do pânico, com direito a
taquicardia, calafrios, tremedeira, dando início a um quadro de hipertensão do
qual trato até hoje. Isso é que vem a ser prolapso de fim de curso, ou efeito
retardado. Estou me lembrando que, durante minha adolescência, fiz parte de um
coral, com direito, inclusive, a apresentações em TV! Fico pensando como foi
possível uma coisa assim, pois se fosse agora, ao abrir a boca para cantar,
iria desencadear a maior tempestade da história! Sem contar que uma câmera de
TV na minha frente iria, no mínimo, me ocasionar um desmaio. Como pode ser
observado, esse retardo neuro-psíquico-motor até que tem suas compensações.
Pena que ele não se faz presente em todas as situações estressantes pelas quais
passo. O maior vexame pelo qual passei se deu quando a cidade ainda não era tão
povoada por automóveis. Altas horas da noite e lá ia eu como carona de um amigo
em seu carro, quando, por fatalidade, um dos pneus fura. Estávamos na descida
em reta de uma avenida praticamente deserta e, por coincidência, relativamente
pertos de onde esse amigo morava. Ele foi, então, até a sua casa e trouxe um
pneu reserva em outro carro. Assim que terminou o conserto, ele me falou: “Olha, estou colocando o carro em ponto
morto, você só terá o trabalho de ir soltando o freio e mantendo a direção.” Por favor, não ria de mim, mas quem diz que
eu consegui fazer aquilo? Arranjei uma tremedeira nos pés e nem consegui tirar
o carro do lugar. Meu amigo é que teve que ir se revezando entre os dois
veículos, levando um até certo ponto para, depois, seguir com o outro e, assim,
por quase um quilômetro, até chegar em casa. Mas estou contando essas coisas
porque minha filha, dias desses, me perguntou em que ano eu havia me formado e
se lembrava de um colega chamado Marcos, nome do pai de sua amiga. Não me
lembro direito do ano de minha formatura e conheci muitos Marcos, mas não sei
se algum deles atende aos requisitos. A pergunta, entretanto, resgatou a
lembrança daquela época. Lembrei-me de que fui chamado à sala do diretor da
Faculdade. Eu havia sido seu aluno, embora ele nem soubesse o meu nome. Mas tratava-se
de uma figura extraordinária, um tipo bonachão e de grande sabedoria. Dentro de
minha insignificância e mediocridade, eu o admirava. Suas palavras: “Olha, tenho aqui comigo um anel de formatura
de um professor, morto recentemente. Era seu desejo que fosse doado para um
formando de pouca condição financeira, isto é, que seja pobre. Decidimos que
esse alguém seja você. Portanto, não se preocupe com seu anel de formatura,
pois você já tem o seu.” Por causa de meu distúrbio neuro-psíquico-motor ou
prolapso de fim de curso, confesso que não sei descrever qual foi minha reação
no momento. Mas A-G-O-R-A, passados já tantos séculos, eu me dou conta que não
vi nem sombra do dito anel. Estou ficando nervoso, começo a ter palpitação,
estou suando frio, sofro de vertigem, meu estômago embrulha, ameaço ter uma
crise de hipertensão, quero saber quem me passou a perna, quero, preciso saber:
QUEM ROUBOU MEU ANEL DE FORMATURA?
Etelvaldo Vieira de
Melo
1 comentários:
rararararara. Engraçadíssima essa história. Eu não usaria o anel. Tenho medo de mortos. Você sabe prender a atenção do leitor.
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