II A FERA II


SER OU NÃO-SER JÁ NÃO É MAIS A QUESTÃO


            Um pensador da Antiguidade, para quem eu nutria certa dose de consideração e respeito, dizia que o ser é e o não-ser não é, que um não pode – sob nenhuma hipótese – ser o outro. Dia desses, um fato banal veio jogar por terra tão alta construção metafísica.
           
Estava eu no ponto de ônibus, aguardando esse transporte coletivo e socializante para me deslocar até um consultório médico-urológico. Para desviar meus pensamentos do triste fim que me aguardava, procurei algo que tomasse minha atenção. Em um poste ao lado do ponto havia um aviso de:


           


Fui ler o que estava escrito e fiquei sabendo que três garotas (suponho) deixavam seus telefones de contato para quem soubesse notícia de uma cadela da raça Shih Tzu, de coloração branca e preta, com três lacinhos, vermelhos com bolas pretas, amarrados na cabeça. O anúncio estampava, também, um retrato daquele animalzinho de estimação.
           
Durante muito tempo, fiquei pensando naquelas garotas, imaginando a ansiedade com que procuravam a cadela, que atendia pelo nome de Nani. Achei aquele gesto bonito, fiquei torcendo para que fossem bem sucedidas na procura e que a história tivesse um final feliz.
           
Enquanto digeria lentamente essas considerações (para não pensar naquela outra coisa), comecei a vislumbrar um pensamento diferente, de igual intensidade e de sentido oposto. Considerei que aquelas garotas agiam de maneira errada, estampando em postes aquele tipo de anúncio, já que ali não é local apropriado para esse tipo de coisa. Imagina se todas as pessoas inventarem de colocar anúncios em postes!
           
Considero que, se tem algo de bom acontecendo nas cidades brasileiras, esse bom é justamente a recuperação da dignidade dos postes. Tempos atrás, era ali que cartazes se sobrepunham, em disputa acirrada, notadamente por políticos em véspera de eleição. Novas legislações foram criadas, punindo com multa os infratores. Entre os teimosos e sobreviventes, visualizo somente um ou outro anúncio de videntes e cartomantes, que devem estar “matando cachorro a grito”, prometendo mundos e fundos: livrar a pessoa de olho gordo, trazer de volta a pessoa amada, ter sucesso nos negócios, tudo a troco de uma simples consulta.
           
Falando em cachorro, vejo que eles se constituem também uma ameaça à integridade física dos postes. Pensando nisso, vou tentar convencer um amigo a se candidatar à vereança nas próximas eleições, com o projeto de instalação de sanitários para cachorros em parques e jardins. Os proprietários de cães estão mal-acostumados com a higiene pública. Ontem mesmo, um técnico, que veio fazer um serviço em minha residência, dizia, tomado de orgulho, que, todos os dias, assim que chega em casa do serviço, tem que levar seu cachorrinho de estimação para um passeio na rua, onde ele faz suas necessidades fisiológicas. Duvideodó que esse senhor se dê ao trabalho de levar consigo uma pazinha e um saco plástico para recolher os possíveis dejetos sólidos ou pastosos despejados em via pública pelo seu amiguinho de coração!
           
Associei os postes aos cachorros e, agora, vejo que os cachorros se ligam aos políticos, que, por sua vez, estão engavetados, tal como numa situação de trânsito, aos juízes do STJ.  Esses juízes, vira e mexe, inventam ou trazem à tona novos termos para serem incorporados ao nosso vocabulário. Está lembrado da Teoria do Domínio do Fato, quando da Ação Penal 470, afetuosamente apelidada de Mensalão? Agora inventaram um tal de Embargo Infringente, que vem a ser um recurso impetrado pelo acusado, quando não há unanimidade no julgamento de apelação. Tal embargo nos mostra que uma coisa não só pode ser outra coisa, como também pode ser várias outras. Assim, ele pode se desdobrar em Embargo Absorvente, Solvente, Emoliente, Detergente, Repelente.
           
Quando penso nisso tudo que anda acontecendo no país, fico cada vez mais convencido de que a nossa Justiça até pode ter seus olhos vedados, mas que tem um olfato apuradíssimo, isso tem, principalmente quando existe cheiro de dinheiro circulando no ar. Depois, parece, nossa legislação apresenta mais furos que as lonas de circos que frequentavam minha cidade natal.
           
Estava pensando nos desdobramentos de tais considerações, quando me vi ajeitando a calça e me despedindo do médico. Também parece que o exame transcorreu normalmente, mas nem me dei conta, com o pensamento voltado para Nani, os postes, os cachorros, os políticos e juízes. De maneira intuitiva, entrei naquele estado que os iogues chamam de Alfa. Acabei usando um princípio da Física, que diz não ser possível dois objetos ocuparem o mesmo espaço, ao mesmo tempo: pensando numa coisa, deixei o constrangimento de ter o pensamento voltado para outra, desagradável e dolorosa.
           
Aproveito a ocasião para lhe repassar esse aplicativo gratuito, útil em várias situações de vida, quando você poderá fingir que está, não estando; estando em outra, deixará de estar naquela em que não quer estar.
Etelvaldo Vieira de Melo

O DOENTE

Imagem: taisluso.blogspot.com

Aquele ser
sujo e maltrapilho
caído na Praça
não é um rato
nem um cachorro.

Ele é um homem
e todos passam
sem percebê-lo.

No entanto,
aquele homem
estaria guardado
na Constituição.
Como ser humano,
tem direito a voto,
a uma família,
a um banho.

Onde estão os responsáveis
pela sua pobreza?
Estão todos dormindo
na tribuna,
na Prefeitura,
no Governo.

Uns poucos
roubaram o direito
daquele homem
ser cidadão.
Os deputados
os senadores
se  espojam no dinheiro
arrebanhando
o que é do povo.

Aí vem a presidência
E diz que não há mais
Mendigos no país.

Mas todo mundo
vê aquele homem
que permanece à margem
do esquema dos ricos,
montados nas fazendas,
nas mansões de luxo.

No mais,
esse homem é lixo,
jogado na praça
para a sociedade pisar
e passar ao longe.


OS TRÊS LOBINHOS E O JABUTI

Era uma vez três lobos de uma mesma região e que comercializavam para seus habitantes as águas de uma nascente, situada a leste de onde moravam (havia também uma outra, a oeste, mas cuja exploração não era viável, devido aos custos operacionais). E o faziam de maneira lupina, fraterna – na tradução hominídea. Foram eles que reverteram a máxima de que um é pouco, dois é bom, três é demais. Com eles, o princípio ficou assim: um é pouco, dois é razoável, três está ótimo. E estava mesmo, bastava olhar para suas fisionomias para se perceber que o negócio das águas ia de vento em popa. Para que tudo desse certo, confabularam um preço médio a ser cobrado, sendo possível que, uma vez ou outra, lançassem mão de um agradozinho, uma forma de engambelar, passar mel na boca de uma população que, como toda população, gostava de se achar levando vantagem, de estar se dando bem nos negócios. E, assim, estavam os três lobos cada vez mais gordinhos e satisfeitos da vida. Esqueceram, entretanto, que viviam sob o domínio de um sistema, cujo princípio fundamental pode ser resumido na expressão: cada um por si, os outros que se danem. Essa máxima tem várias implicações, uma delas que é preciso crescer, expandir o capital, engolir os peixes pequenos, para não ser por eles engolido. E aconteceu que, depois de alguns anos de bonança, veio, enfim, a tempestade, na forma de um jabuti, que estabeleceu seu negócio bem junto à nascente, ao lado de um açougue denominado “Açougue Dois Irmãos: Bovino & Suíno”. Aquele jabuti não era um vira-lata qualquer. Seu sucesso foi construído ao longo de anos de intenso trabalho e luta, com seu casco servindo-lhe de escudo frente às intempéries e confrontos com a concorrência. Sua constituição física permitia-lhe também realizar frequentes balanços, bastando recolher a cabeça para dentro da carapaça. Outro de seus trunfos era um olhar sempre opaco frente aos fornecedores, o que lhe permitia ótimos negócios. Era, pois, um grande nome na rede varejista; logo represou as águas, deixando apenas um filete para abastecer as lojas dos três lobinhos, levando-os à beira da falência. O jabuti, além de oferecer preços bem mais em conta, porque diminuíra a margem de lucro a troco do número de vendas, também possibilitava o parcelamento das compras por cartões de crédito. A população local foi ao delírio, enchendo todos os dias as dependências da loja. O final da história fica em aberto, pois seus desdobramentos só serão conhecidos com o tempo. Irá o jabuti derrotar de vez os três lobinhos? Conseguirão eles meios de sobreviver frente aos muitos recursos daquele terrível inimigo? Poderá o “olho gordo” dos três lobos fazer algum tipo de estrago no negócio do jabuti? Francamente, eu não sei; de qualquer modo, a matéria já foi incluída no currículo das escolas da região, motivando Desluar Solaris das Nuvens, aluna do pré-escolar e que demonstrava veleidades poéticas, a escrever uma quadra, assim: 

PS1: Armandinho, vendo o que a colega havia feito e já adotando a máxima de que “ser original é saber a quem copiar”, não deixou por menos, entregou para a professora esta outra quadra: “Bem diz o ditado, provérbio: / Quem vê cara não vê coração. / O lobo, tido como velhaco, finório / Foi, por um jabuti, lerdo e tolo, passado à mão”.

PS2: Traumatizados, os três lobinhos tentaram usar da nascente oeste, mas ela já estava ocupada por um parente do jabuti, o cágado, vindo da região amazônica, onde era conhecido também como tracajá. Este introduziu o uso da logomarca “D” nos produtos que comercializava (uma referência ao seu apelido Dedéu), tornando, assim, os preços mais acessíveis. Agora, além dos lobinhos à beira de um colapso nervoso, temos o jabuti com uma ruga de preocupação estampada na testa. Ele também se sente incomodado por uma pergunta que não quer calar: Estará meu primo Dedéu querendo me mandar pro beleléu?
Etelvaldo Vieira de Melo

MINHAS GERAIS

Ao lado, Henriqueta Lisboa
e seu livro sobre a morte.
Tem Carlos Drummond de Andrade
que poesita
oceanos de fantasia.

Minas não tem mar,
mas tem Fernando Sabino
em frente ao espelho
da vida.
Bartolomeu Queirós
é sua infância expandida.
Viva Roberto Drummond
e Atlético X Cruzeiro.
Tem estrelas
que brilham à noite
e adormecem de manhã.

Minas tem solo
cheio de jazidas
e o São Francisco,
rio navegável.

Minas tem mistérios
de muitas inconfidências
que calam a boca
dos reis.

Minas tem Belo Horizonte
com feições de cidade grande.
Tem Ouro Preto,
Sabará,
Tiradentes e São João del Rey.
Grupos de índios pataxó
jamais se extinguirão.

Minas não vê o mar,
mas vê lagoa
em Lagoa Santa,
terra de grutas
do doutor Lund.
Minas tem desassossego
de amores contrariados
Riobaldo e Diadorim.
Tem a língua mais besta do mundo
de arraiais oriunda.

Minas não tem mar,
mas as solidões
varam dias de frio
de abril a agosto
em pavios.
Minas tem grandes fazendas
de fazendeiros gerais,
perfumes pelas ruas
e muita politicagem.
Os políticos perdem as folhas
fazem discurso de ar.
O tempo vai escorrendo
Num correr bem devagar.

Minas tem doce de leite
e goiabada cascão.
Tem queijo
diversas canastras
e (ainda) muitas montanhas.

Minas fala tão engraçado,
põe açúcar no português.
Não tem mar, mas tem amar
Ah! mar que Minas
não tem.

Mineiro reza o terço
às seis horas
faz  de tudo ritual.
Por trás das portas fechadas
a fofoca é pontual.

Minas tem uma cor bonita
quando se anda
de avião.
Os jecas-tatus e jagunços
se perdem nos socavões.

Minas não tem mar
mas tem em demasia
mulheres e homens de tino.
Tem faculdades famosas
e biodiversidade.
O universo de Minas
só se acaba no fim de mundo
de Uberaba ou Ouro Fino.
No mais é tudo pacato
um trem danado no chão.
O povo é todo loucura
que se resume num ai.
Quem quiser conhecer essa terra
vem correndo, que é bão, uai!


 


ERA UMA VEZ NO ARRAIAL DO ONÇA

R
olando Pedregulho não trabalhava na área de construção. Também não cuidava de explosivos e dinamites. Na verdade, ele era um peão de boiada e era para esse ofício que estava se dirigindo ao arraial do Onça, montado em seu cavalo Trovão, onde iria pegar, junto com mais três companheiros, uma manada de mais ou menos 150 reses para levar até a Estação da Tartária, onde seriam embarcadas em vagões de trem.

Naquele dia, ele se sentia bem disposto, embora a saudade da mulher e dos filhos apertasse um pouco lá no fundo do coração. A certa altura da viagem, com voz desafinada, mas carregada de sentimento, começou a cantar uma música, cuja letra dizia:

Antigamente nem em sonho existia tantas pontes sobre os rios, nem asfalto nas estradas.
A gente usava quatro ou cinco sinuelos pra trazer o pantaneiro, no rodeio da boiada.
Mas hoje em dia tudo é muito diferente com o progresso nossa gente, nem sequer faz uma ideia.
Que entre outros fui peão de boiadeiro por este chão brasileiro, os heróis da epopeia.
           
Mais adiante, com o cavalo trotando devagar, tirou da algibeira do capote um pedaço de fumo de rolo e, com um facão, começou a cortá-lo na intenção de fazer um cigarro. Estando o fumo cortado, enrolou-o numa palha, passando a língua na sua ponta, para que ficasse bem fechada, tomando o cuidado de fazer-lhe uma dobra, para que o fumo não viesse a cair. Continuou cantando os versos da música:
           
Tenho saudade de rever nas currutelas as mocinhas nas janelas acenando uma flor.
Por tudo isso eu lamento e confesso que a marcha do progresso é a minha grande dor.
Cada jamanta que eu vejo carregada transportando uma boiada me aperta o coração
E quando olho minha traia pendurada de tristeza dou risada pra não chorar de paixão.
           
Embalado pela canção, Rolando continuou:
           
O meu cavalo relinchando pasto a fora que por certo também chora na mais triste solidão.
            Meu par de esporas, meu chapéu de aba larga, uma bruaca de carga, um berrante um facão.
            O velho basto o sinete e o apero, o meu laço e o cargueiro, o meu lenço e o gibão.
            Ainda resta a guaiaca sem dinheiro deste pobre boiadeiro que perdeu a profissão.
           
Chegando a este ponto, parece que até Trovão se emocionou, parando e olhando para o horizonte a se perder de vista. Rolando aproveitou para tirar de outro bolso um isqueiro, daqueles alimentados a querosene, para acender o cigarro. O pavio estava muito grande; quando acendeu, quase queimou-lhe o bigode. Rolando pensou: “Mais tarde, tenho que cuidar de abaixar um pouco esse pavio, antes que faça um estrago maior na minha cara.”
           
E a música terminava assim:
           
Não sou poeta, sou apenas um caipira e o tema que me inspira é a fibra de peão.
            Quase chorando embuído nesta mágoa rabisquei estas palavras e saiu esta canção.
            Canção que fala da saudade das pousadas que já fiz com a peonada, junto ao fogo de um galpão.
            Saudade louca de ouvir o som manhoso, de um berrante preguiçoso... nos confins do meu sertão.

            Esta música se chama “Mágoa de Boiadeiro”, uma composição de Nonô Basílio e Índio Vago. O vídeo abaixo foi postado no YouTube por Edvaldo Rosa Martins, em versão de Pedro Bento e Zé da Estrada. Rolando também gosta muito da interpretação de Ouro e Pinguinho.

Assim que terminou a música, Rolando deu como que um suspiro, passando a manga da camisa sobre os olhos. Depois, olhou para o céu, vendo que a tarde chegava. Apressou o trote de Trovão.

A tarde já ia se escondendo, quando o tempo deu uma revirada; grossos pingos de chuva começaram a cair, acompanhados de relâmpagos e trovões, tomando de susto cavaleiro e cavalo. Rolando tentou se proteger com sua ampla capa e um chapéu de abas largas, mas viu que estava remediando o que era inevitável: logo, logo, acabaria encharcado, já que a chuva passou a ser acompanhada de intensa ventania. O cavalo – apesar do nome - relinchava, refugava, demonstrando toda sua insatisfação em se ver naquela situação que ameaçava ir de mal a pior.

Rolando começou a apelar para os santos de sua guarda de proteção, com o adjutório de São Jerônimo e Santa Bárbara, sabendo que deveria ficar sobre terreno descampado, não podendo contar com ajuda de uma árvore sequer, tendo ciência que, se assim fizesse, poderia ser fulminado por um raio. De repente, avistou uma casa lá no alto da colina, o que parecia ser sede de uma fazendinha.

Rolando se aproximou, um cachorro lá dentro da casa latiu, dando conta de sua presença. Desceu do cavalo, amarrando-o numa estaca sob uma coberta. Bateu com os nós dos dedos na porta:
           
- Toc-toc-toc.
           
Nada de resposta.
           
Passados alguns segundos, repetiu a dose:
           
- Toc-toc-toc.
           
Agora, sim, ouviu passos no assoalho; logo depois, um rosto apareceu na porta entreaberta. Era um homem de cabelos e bigode grisalhos. Aparentava uns 60 anos de idade.
           
- O que o senhor deseja? – perguntou ele, não escondendo seu temor ao ver Rolando, que se apresentava de capa, chapéu e uma barba de muitos dias.
           
(Para dar um desconto ainda maior ao senhor com sua desconfiança, é preciso dizer que Rolando, mesmo em condições normais, não era um indivíduo de boa aparência, era alto, magro e tinha olhos grandes como duas jabuticabas olho-de-boi.)
           
- Boas tarde – respondeu Rolando, enquanto tirava o chapéu. – Estava indo pro arraial do Onça e essa chuva brava me pegou pelo caminho. Como já stá tarde, queria saber se o senhor podia me arrumar um encosto, um lugar onde pudesse passar a noite. Amanhã cedinho, eu me aprumo e vou s’imbora.
           
O senhor, ainda tomado de desconfiança, falou:
           
- Tem um paiol ali na frente, onde o senhor poderá passar a noite.
           
- Brigado, discurpa o incômodo.
           
- Não tem de quê. – E o senhor completou: Vou levar você até lá.
           
Os dois caminharam em direção ao paiol, Rolando se apresentou, o senhor também, dizendo se chamar Florêncio Flores. Quis saber de onde era aquele peão.
           
- Eu sou natural de um povoado chamado Fagundes.
           
- Pois Fagundes me traz uma boa lembrança – falou Florêncio. - Foi lá que meu irmão sofreu um acidente e quase perdeu a vista. Se não fosse um casal de moradores, a situação não teria jeito.
           
Tomado de curiosidade, Rolando falou:
           
- Por acaso seu irmão tem nome de Eleutério?
           
- Tem, sim – respondeu Florêncio, agora ele tomado de curiosidade. – Por que a pergunta?
           
- Ora, porque foi justamente minha mulher, Percilina, e eu quem cuidou de seu mano!
           
- Pelas almas do purgatório! – falou Florêncio, com a voz embargada pela emoção. – Meu irmão sempre fala com carinho da ajuda que vocês lhe deram. Deus é que lhes dê o pago pelo bem que fizeram. Olha – continuou ele, tomando Rolando pelo braço. – Você irá passar a noite lá dentro de casa. Vou pedir à minha mulher, Feliciana, pra lhe preparar um banho quentinho e uma boa janta.
           
E assim, depois de deixar Trovão lá no estábulo, Rolando entrou para a casa de Florêncio, onde passou uma noite com há muito não experimentara. E assim termina esta história, com um final feliz, contrariando tudo o que levava a crer. Rolando Pedregulho tinha um nome e foi por ele que foi reconhecido. Tudo mudou a partir do momento em que foi identificado como aquele morador do Fagundes, casado com Percilina, que havia cuidado de Eleutério, irmão de Florêncio e que tinha como esposa a Feliciana. Quando as pessoas são reconhecidas pelo nome o mundo deixa de ser feio e se enche de flores de todos os matizes.

Etelvaldo Vieira de Melo  

ERA UMA VEZ NO ARRAIAL DO ONÇA 2

ANA CLARA

Imagem: monsterhighfas.wordpress.com



Ana Clara, clara luz,
senhora dos meus desejos
de avó.
Nos seus olhos
a minha alegria
sinfonia de sentimentos.
Em suas mãos
(esses mimos)
guarda o mundo
eterno e intangível.

Quando brincamos,
ela é uma fada
safadinha nos movimentos.

Ana Clara é o verbo
meu único verso
que se faz criança.
Ela mora tão longe,
mas está sempre perto
do meu velho-novo coração.

Monsterhight. Barbie
da modernidade
realizada em carne.

- Vovó, eu sou agora
dona de restaurante.
O cardápio são arco-íris
que ela bem sabe desenhar.

- Vovó, sou aeromoça,
me passe o seu bilhete.
Juntas viajamos
por um céu estrelado
na sala de estar.

- Ana, eu sou um saltimbanco
trazendo lembranças
do Papai Noel.

Ela abre os pacotes
esperando achar neles
os segredos que não lhe dou.

Minha netinha é uma flor
que borboleta e pousa
conforme a encenação.
Patins nos pés
concentração na cabeça.
Cinco anos
que parecem sete
 no tamanho
de seus vestidos.

Vestidos de princesas                                         
num corpo de rainha
entre todas as ninfas.
Me nina o seu afeto
ternura de quem se percebe
gente.

Gente que se traduz
com palavras avezinhas
que voam e
revoam.

Mas para mim é a meta
Plena de energia
Para viver e dançar.

No ano que vem eu volto
Pro seu aconchego
De avião.
Vou esperar longamente
Pelo meu retorno
Ao Maranhão.

CAMINHANDO COM AS CALORIAS E QUEIMANDO OS NEURÔNIOS




Q
uando completou 60 anos de idade, Belderagas Piruegas se deu conta de que deixava a fase de Cachorro e entrava na de Condor. Ao mesmo tempo, começou a experimentar o reverso do ditado “o que dá pra rir também dá pra chorar”, com a nova idade proporcionando pequenas compensações a lhe amenizar a depressão de ver seu corpo tomado por dores como se fosse invadido por ataques de naves alienígenas, como as do filme A Invasão do Mundo: Batalha de Los Angeles. As pequenas alegrias vinham, por exemplo, do desconto de 50% em ingressos de futebol e cinema, do direito de entrar em filas preferenciais em supermercados e lojas de departamento (o que nem sempre era vantajoso, devido à concorrência de outros “pé-na-cova”), além da gratuidade no uso de sanitários na Estação Rodoviária da cidade onde morava.

Quando se aproximava dos 65 anos e vislumbrava a extensão de seus privilégios com a gratuidade no transporte coletivo, seu coração já não suportou tantas emoções e Belderagas teve um infarto.

O médico quis saber o que havia acontecido naquela manhã de domingo de carnaval e Belderagas disse que não havia acontecido nada, que ele estava apenas coando café. O doutor achou estranho que um fato tão banal pudesse ter ocasionado um ataque. 

          Passado o susto e estando em fase de recuperação, nosso herói sentiu que essa sua nova situação poderia lhe proporcionar alguns dividendos. Sabendo que o brasileiro ainda carrega um restinho de sentimento de solidariedade, ele viu que poderia mencionar seu problema médico para as pessoas e obter um pouco de atenção para com sua carência afetiva. Isso ele fez com um pedreiro que foi prestar serviço em sua residência. Ele disse assim: Você sabe que tive um infarto? Pois o médico falou que não posso ter contrariedade e nem levar susto. Portanto, você deve pensar duas vezes antes de me passar o orçamento. A conclusão é que a mão-de-obra ficou bem mais em conta do que normalmente ficaria.

Belderagas, que levava uma vida sedentária, exercitando quando muito os dedos das mãos em jogos de videogame (um presente de sua esposa para amenizar o trauma de não ter tido quase brinquedo nenhum em sua infância), foi coagido a praticar atividade física. Protelou, enquanto foi possível, a obrigação, até que pressões familiares fizeram com que comprasse roupas esportivas, tênis e um relógio com frequencímetro (já que seus batimentos cardíacos tinham que ficar dentro de determinado limite).

Assim, equipado com roupas esportivas, tênis novo, boné, relógio com frequencímetro, MP3 auricular, Belderagas desceu até o local da caminhada, uma avenida reta, com 400 metros de extensão e pista exclusiva para pedestre e cachorro, caso alguém se fizesse acompanhar de um felino. Quando ali chegou pela primeira vez, viu algumas pessoas movimentando os braços para cima e para os lados, pegando ora o pé esquerdo, ora o direito, empurrando postes com a aparente intenção de derrubá-los. Ficou sabendo que tudo aquilo se tratava de alongamento, um aquecimento para a caminhada. Pensou: será que os estudiosos de ginástica aprenderam isso com os gatos e cachorros quando se esticam após uma soneca? De qualquer modo, descartou a ideia do alongamento, com medo de parecer ridículo para outros olhares.

Assim, marcou o cronômetro, ligou o MP3 com sucessos de sua adolescência e juventude, dando início à caminhada, com a intenção de realizar cada volta completa em 10 minutos, o que daria uma média de 10 por 800, não chegando aos 7 por 800 recomendados pelo amigo vizinho e maratonista, mas que estaria de bom tamanho.

Por falar nesse vizinho maratonista, assim que ficou sabendo que Belderagas iria fazer caminhada naquela avenida perto de casa, quis mangar com o amigo, dizendo:

- Quer dizer que você vai fazer caminhada lá no Bagulhódromo?

- Não – respondeu Belderagas. – Para ser Bagulhódromo, está faltando a sua presença.

Durante a caminhada, as músicas do MP3 faziam fundo para seus pensamentos, em geral, vazios. Vez por outra um Scorpions, um Beatles, um Credence, um Animals ou um Simon & Garfunkel se destacava para chamar sua fugaz atenção.

Como o médico havia lhe pedido um relatório de suas caminhadas, ele relacionou cinco ítens para apresentação:

1. Tem ficado muito nervoso quando é ultrapassado por um senhor alto e mais velho. Esse senhor caminha de maneira aparentemente descuidada, mas Belderagas notou-lhe um ar de deboche numa de suas ultrapassagens.

2.  Não consegue ultrapassar ninguém, a não ser um outro velho, caindo aos pedaços e de olhar distraído.

      3. Durante a caminhada, sempre nota a presença de um senhor alto e compacto. A particularidade é que esse senhor está sempre com os mesmos tênis, short, boné e camiseta, sendo que esta ostenta a logomarca de uma fábrica de produtos hidráulicos. Belderagas pensa na possibilidade de ir até uma fábrica de silkscreen e fazer estampas para suas camisetas. Pensa em usar seu corpo para fazer merchandising de alguns produtos. Inicialmente, estuda a possibilidade de divulgar o Blog de uma dupla de amigos. Ficaria mais ou menos assim:





Pensando na viabilidade de seu projeto, acaba se lembrando de um ex-presidente da república, de amarga lembrança, mas que tinha um marketing todo especial. Logo de manhã, ia fazer corrida, ostentando em sua camiseta a mensagem do dia (Piruegas se lembra de uma das últimas, quando era iminente o seu impeachment: “O Tempo é o Senhor da Razão” - um provérbio tornado conhecido pelo pensador francês Marcel Proust). Era divertido ver tantos fotógrafos e repórteres correndo, esbaforidos, atrás daquela farsa, inclusive um que apresenta, atualmente, programas onde destila venenos, como se fosse dono da verdade e tivesse um passado imaculadamente limpo.


4.  Por volta de 15 minutos de caminhada, sente que um casal passa por ele, em sentido contrário. A mulher usa um perfume tão gostoso, que Belderagas tem a sensação de estar caminhando nas nuvens (uma alusão àquela comédia romântica estrelada por Keanu Reeves). Depois de 30 minutos, entretanto, aquele perfume inicial é substituído por outro, bem menos agradável.

5. O mais preocupante: Como não olha para os lados, Belderagas raramente visualiza o rosto das outras pessoas. Acontece de, algumas vezes, ser ultrapassado por mulheres vestidas com calças collants, aquelas calças que se amoldam ao corpo... Pode até que sejam das famílias das Radisgundas, Raimundas ou Aldegundas. O que lhe causa preocupação é o fato de sentir, nesses momentos, uma aceleração dos seus batimentos cardíacos, uma vontade de acelerar o ritmo e não perder aquelas mulheres de vista, embora sentindo-a (a vista) um tanto quanto embaralhada.

Dias desses, Belderagas irá fazer uma consulta médica. Levará, então, esse relatório para avaliação. Irá perguntar: E aí, doutor, posso continuar com minha caminhada nessas condições de temperatura e pressão?
      Etelvaldo Vieira de Melo