PEQUENA MÚSICA PARA A NOITE

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Quando compôs essa música          
Wolfgang Amadeus Mozart 
a encenou para os anjos.

(Quando os anjos queriam
homenagear a Deus, 
tocavam Bach;
quando queriam se autoagradar
convidavam Mozart).

As notas afinadas
criavam happenings musicais
de uma doçura e um gosto
de açúcares e cristais.

A melodia levava o ouvido
de uma onda a outra
e caía num sus!tenido.

O acorde convidava
a beladormecer.
Wolfgang trinava
passarinhos e linhas
pela mente e pelo corpo
do anjo escutador.

A harmonia exercia
abelhinhas
voando zibelinhas
na pauta.
Eram banjos 
são arranjos
finíssimos grânulos
de sal
atrapalhando com alegria
o tropel disparatado
da morte.


OS CÃES E OS FILHOS DAS MÃES

F
oi o rapaz passar os festejos de fim de ano na casa de seus pais, ele que morava em outra cidade e outro Estado. Altas horas (da noite, evidentemente, pois nunca ouvi alguém falar “altas horas do dia”), estando ele voltando de uma esticada ao centro, em um táxi, avistou um cão, da raça poodle, ser atropelado por um veículo, cujo motorista não se deu ao trabalho de verificar o grau de estrago no indefeso animal.
           
Tomado de compaixão dalailamática, o rapaz não pensou duas vezes: pediu ao taxista para parar o carro e recolheu o cãozinho, levando-o para a casa dos pais.
           
Amanhecendo o dia, usou dos préstimos de um vizinho para levar o cão a um veterinário, onde foi medicado.
           
Tudo iria terminar bem, com o ato meritório recebendo a nota 100, se o rapaz providenciasse uma destinação para o cachorro. Entretanto, o que ele fez foi alardear, através da mãe, o tamanho de sua generosidade, deixando para os pais o cuidado do animal, sem se dar ao trabalho de perguntar-lhes se aquilo era de seu consentimento.
           
Não era. Todavia, passados os festejos, foi o rapaz arrumar suas malas para o retorno à terra onde fazia residência, certamente alardeando, agora ele, para os amigos e conhecidos a metade de sua boa ação.
           
A outra metade logo deixou de ser boa, para se tornar um pesadelo para o pobre animal que, se tivesse nosso nível de consciência, iria considerar que “saíra de um espeto para cair numa brasa”. A mãe do rapaz adotou aquele cãozinho (o segundo em QI da espécie canina, segundo estudiosos) como para-raios de seus destemperos, mau humor, aborrecimentos. Todo dia, quem passa pelas imediações de sua casa, ouve latidos horrorizados do pobre animal, vivendo sua hora do pesadelo, ou, em versão moderna, seus jogos mortais, ou, em linguagem contemporânea, os jogos vorazes.
           
Celestino Faustino, que não tem nada a ver com a história, no alto de sua experiência de vida, sentencia que, primeiro, devemos ouvir a razão; depois, podemos deixar falar o coração. Tanta sapiência ocorre no momento em que sua esposa, toda entusiasmada, prepara o enxoval de uma menina. Vai ser avó? – seria a pergunta lógica. Que nada! Sua filha, condoída com os apertos de uma amiga grávida, comprometeu-se a lhe preparar o enxoval do bebê. A amiga, entusiasmada, quer saber se tem como registrar a menina, tendo dupla maternidade.
           
Eu, do declive de minha ignorância e pouca vivência, vejo, pelo menos, um ponto em comum entre uma história, a do cãozinho, e a outra, da menininha: tudo acaba nas costas das mães. Faz parte da natureza materna e filial fazer dessas coisas, deixar falar o coração. Faz parte da natureza paterna querer fazer valer a razão. No fim, os filhos aparecem para as fotos, as mães seguram as pontas e aguentam o tranco, enquanto os pais resmungam para as paredes. E assim caminha a humanidade.

Etelvaldo Vieira de Melo 

AS ROSAS

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Um jovem estudante
amava os livros,
mas queria finamente
uma certa donzela.

O tempo passou
e ele confessou o que sentia
à gentil senhorita,
que solicitou, como prova de amor,
uma rosa vermelha.
Ora, eis que no reino
só se encontravam
rosas brancas.
Por mais que procurasse
o amante não encontraria
o objeto desejado.

E era uma vez que todas as manhãs
um sabiá vinha cantar à janela
do estudante.
E esse passarinho
quis saber do amigo
por que se prostrava
tão triste.

Contou-lhe o caso da rosa
o moço, entre lágrimas.
E o sonoro sabiá:
"Sei onde achar
uma rosa vermelha.
Ela está plantada
dentro de um poço sem fundo,
cheio de cobras e cacos de vidro".

Sem hesitar,
o estudante lhe pediu
que mergulhasse no abismo
para acabar com sua dor.

Lá se foi o sabiá
descendo ao inferno.
À medida que descia
ia ferindo as plumas
com os cacos de vidro.

Afinal, trouxe para o jovem
a rosa vermelha
(que fora branca
e se tingira
com seu sangue).

O estudante deixou o pássaro
e voou ao encontro da amada.

- "Oh, disse ela, 
eu não quero mais
a rosa vermelha.
Preciso agora
de uma rosa amarela".

Saiu ele a pedir novo auxílio
à ave, 
Porém encontrou-a morta
sobre a janela.

Então, desaventurado,
jogou fora a rosa vermelha
e pensou:
"Vou voltar aos meus livros
que me amam sem medida.
Adeus, adeus
sentimento vão
que me molestou tanto
com seus tolos caprichos".



PÁSCOA: UM TERMO PARA DIFERENTES LEITURAS

“Para quem não precisa de cura, ou para quem já chegou á certeza de que não há cura, este discurso não fará sentido” (Fátima Pinheiro, em expresso.sapo.pt). Penso que sim, que é possível fazer sentido para aqueles que não se armam com preconceitos, apresentando-se como donos da verdade.

Independente de seu sentido religioso, o termo “páscoa” tem uma conotação rica, uma vez que significa mudança, passagem, travessia.
           
Falar deste tema pode representar, também, mexer num vespeiro, cutucar uma caixa de marimbondo, correndo risco de levar muitas picadas. Mas eu não posso temer tratar deste assunto. Se alguém torcer o rosto, e haverá quem faça isso, tenho certeza de que o que será dito aqui servirá de alento e apoio para outro tanto de pessoas. Estarei falando o óbvio? Certamente. Entretanto, é preciso considerar que o óbvio, quando não vivido, torna-se oculto. Assim acontece com as verdades da própria vida.
           
Os religiosos cristãos vivenciam a Páscoa como a mais importante de suas celebrações. Eles se apoiam nas palavras do apóstolo, quando diz: “Se Cristo não ressuscitasse, a nossa fé seria vã, inútil”.
           
Olhando a questão de forma mais penetrante, veríamos que é um conforto para o cristão reconhecer, numa dimensão de fé, que seu Deus assumiu a condição humana, mesmo naqueles momentos mais difíceis, de angústia, humilhação, sofrimento agudo e morte. Quem assistiu ao filme “A Paixão de Cristo”, dirigido por Mel Gibson, percebeu como essa ideia é tão explorada; a abertura é feita com a citação de Isaías: “Pelas suas chagas fomos curados”. 
           
A vida é extremamente gratificante quando estamos saudáveis, gozamos de razoável conforto material e convivemos com pessoas que nos querem bem. No entanto, como acontece, sempre existe um reverso da medalha, onde viver nos parece algo sombrio. Isso ocorre quando somos acometidos de doença, passamos por dificuldades, sofremos derrotas. Nesses momentos, o cristão se sente reconfortado pelo exemplo de seu mestre; por isso, consegue um novo alento, uma esperança renovada para enfrentar os tropeços e obstáculos, enquanto outros desistem, parando pelo caminho.
           
Entendo que talvez seja essa a razão pela qual a celebração da paixão é mais cultuada do que a da própria ressurreição. Católicos, por exemplo, passando em frente à imagem do Senhor morto, fazem questão de tocar e beijar as chagas do peito, dos pés e mãos perfurados. Este é um momento de conforto que levam para a vida, sabendo que chegará a hora em que terão que tirar dali as forças para enfrentar suas próprias dores e calvários.
           
Tento transferir para aqueles que não creem ou tenham outras crenças todo o simbolismo desse tema, Páscoa.
           
Vejo que a Vida é assim como a Natureza: existe a noite e existe o dia; temos momentos de sol e de chuva; nas estações, a primavera sucede os rigores do inverno.
           
Assim é a vida humana. Temos momentos de dor e de prazer, de sorrisos e de lágrimas, de tristeza e de alegria, de morte e de vida.
           
A que vou me apegar? O que é mais importante? É mais correto considerar que viver é sofrer, que a morte suplanta a vida? Eu me recuso a pensar assim, a fazer esse tipo de juízo. Sei que a morte é algo inevitável, mas prefiro – repetindo uma citação também óbvia, embora pouco compreendida – prefiro morrer vivendo que viver morrendo. Essas são duas posturas distintas. Por causa de um natural otimismo, inverto as ordens do jogo e afirmo: viver é dolorido, sim, mas essa dor se reverte em um bem. Assim como o inverno que prepara a primavera, vejo que os momentos difíceis da vida são vestíbulos para a páscoa de novos momentos. Os momentos difíceis, de dor, angústia, lágrima, morte, são prenúncios de alegria, prazer, sorriso, vida.
           
Como já tive oportunidade de mencionar em texto passado (“Nem tudo é o que aparenta ser”, 23/02/2013): “De tudo, fica a ideia de que VIVER requer coragem para enfrentar os desafios. Os desafios quase nunca escondem lobisomens e assombrações; pelo contrário, na maioria das vezes, o que você descortina logo após a curva do caminho é um belo pássaro, pousado sobre os galhos de uma árvore, e uma flor, junto a um regato de águas cristalinas”.
           
Concluindo, retomo o que dizia Heráclito de Éfeso: “Panta rei” (tudo flui, tudo muda). Mudar faz parte do processo de amadurecimento humano. Entender a vida é saber aceitar as mudanças, amadurecer é conviver com o novo. Mesmo porque, ao fim de tudo, a vida é páscoa. E, como diziam os poetas, não podemos ficar parados, já que navegar é preciso.
Etelvaldo Vieira de Melo           


CÃO




Imagem: batblz.com
A netinha quer um presente.            
Não são vestidos de princesa,
ela deixa claro.
Não é um livro,
que é o brinquedo constante da vovó.
Clara diz cantando que quer
um cachorrinho
que anda de skate
e usa óculos azuis.

Então sai a avó à procura do cachorro.
Anda por toda parte,
mas só há os cães de sempre,
latindo e fazendo cocô.

Onde irá vovó encontrar
na capital Belo Horizonte
um cachorro que corre no skate
e usa óculos azuis?
Na cidade se encontram
pombas, rolinhas e pardais.
na Praça da Liberdade,
vêm comer na mão
que oferece alpiste ou pão.

A avó pensa mandar uma pomba,
mas o Sedex não pode
enviar uma pomba,
sem nem menos os óculos azuis
para São Luís do Maranhão.

Resultado: a avó explica numa carta
que não achou o cachorro skatista.
Pelo correio envia uma quantia
para a netinha comprar o seu cachorro
(haverá o animal ou é um sonho?)
com os óculos azuis
de São Luís.
Ali deve haver cães skatistas
de óculos azuis
como há pombas, rolas, pardais
(muito raro um sabiá)
nos contornos de Minas Gerais.

O PÁSSARO QUE NÃO PODIA VOAR (EPÍLOGO)

Assim, os dias foram passando. Eu agitava as asas o tempo todo, achando que, fazendo desta maneira, estaria melhorando suas condições. Todos os dias, à tarde, eu tinha a indesejável visita do cachorrinho e sua dona. Assim que chegavam ao meu campo de vista, logo eu me punha a piar. A dona jogava água nas plantas com uma mangueira, tendo o cuidado de manter o cãozinho longe de minha presença. Meus pais apareciam logo depois, trazendo comida e palavras de conforto.
       
Não me perguntem como sei uma coisa dessas, mas eu sei que numa das religiões dos humanos existe uma passagem falando que haverá um dia em que lobos e cordeiros pastarão juntos. Creio que, nesse dia, os lobos deixarão de ser carnívoros para se tornarem vegetarianos. Às vezes, eu sonho que Thor se tornou vegetariano e nos tornamos grandes amigos. Todo dia à tarde, ele e sua dona vêm me visitar. Corremos atrás da bola; outras vezes, ele vem para cima de mim, mas consigo enganá-lo com um jogo de corpo. Sua dona, que também se tornou minha amiga, ri de alegria e chego a sentir como aqueles momentos lhe são agradáveis.
       
Eu estava dormindo mesmo e sonhando, quando um latido terrível fez com que eu saísse correndo. Contornei o quintal, beirando o muro e passei por baixo de um portão, indo parar num jardim. Logo eu fiquei sabendo que estava no jardim em frente à casa. Procurei me acomodar em um canteiro frente à varanda, pousando num arbusto, que passaria a ser minha casa.
       
Papai e mamãe logo perceberam a mudança e vieram me visitar. Papai falou:
       
- Esta mudança até que foi algo bom. Aqui você fica livre do cachorro. Você irá ver outras pessoas entrando pelo portão, mas não terá que se preocupar, já que seu galho fica escondido. A dona virá aguar as plantas, mas não precisa temê-la. O marido também já sabe de sua presença. Ele também não irá lhe fazer mal.
       
E, assim, os dias passaram. Existiam aqueles de sol intenso e aqueles de ventos e chuvas, quando eu procurava me esconder debaixo de folhas das plantas. Havia noites sombrias, em que eu era visitado por pesadelos, nos quais caía de uma árvore e nunca chegava ao solo. Aconteciam outros, mas o que me despertava assustada era sonhar que já não tinha mais os meus pais. Sem saber, a solidão veio fazer morada comigo, mas nem isso fazia perder esperança na vida, deixar de acreditar que um dia eu poderia voar como os outros pássaros.
       
Meus pais sempre me visitavam, trazendo comida e palavras de conforto. Até que, um dia, usei de palavras firmes e lhes disse:
       
- Papai e mamãe, sou eternamente grata aos cuidados que me dispensaram. Entretanto, está chegando a hora de nos despedirmos e vocês partirem.
       
- Mas, minha filha, luz de nossos corações... – começou a dizer mamãe, antes que eu lhe cortasse a palavra.
       
Imagem: www.azoresbioportal.angra.uac.pt
- Sei, mamãe, do amor de vocês. Mas também sei como se sentem cansados, vejo muitas rugas em torno de seus olhos. Está na hora de aprender a cuidar de mim mesma. Olha, o dono aqui da casa já coloca, perto do galho, uma vasilha de água e uma tigela com painço. Vez por outra, saio entre os canteiros, catando sementinhas. Eu estou bem e está na hora de dizer adeus.
       
Falando assim, Pti, Pzi, Pti encostou-se nos pais, como se fosse um abraço de despedida. Um vento assoprou forte, arrancando uma folha de jornal do piso da garagem da casa, jogando-a próxima aos pássaros.
       
Uma manchete no alto da página, junto à foto de um recém-nascido enrolado em lençol, dizia: Resgatado com vida bebê jogado pela própria mãe na Lagoa da Pampulha!
   Etelvaldo Vieira de Melo

   



      


         

COMPORTAMENTO ASSERTIVO


Ser assertivo                                                            
é fazer o melhor
para não ferir o outro
e para não se anular.
Assertivo é aquele que não julga
nem é julgado.
É aquele que não aceita uma oferta
doada com agressão
ou aborrecimento de quem oferece.
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O agressivo anula o outro
e a si próprio.
O inassertivo não conhece limites:
empresta o que não quer
anula a si próprio
e reforça a exploração do outro.
O assertivo diz o que pensa
com respeito ao próximo.
O assertivo não diz "sim"
quando quer dizer "não".
Não se vende aos que o adulam
nem adula aos que se vendem.
O assertivo corrige o seu erro
e o do outro com lisura.
Há sempre um propósito de reforço
para os atos assertivos do outro para consigo.
O inassertivo não olha nos olhos.
O assertivo vê e olha
olha e mira
mira e fita
as necessidades do mundo.

O gesto assertivo é sempre calmo
e profundo.
O assertivo, não sendo misógino,
considera o outro seu irmão.
O inassertivo é sempre agitado
espezinha o próximo
espezinhando-se a si mesmo.
O assertivo conduz-se conduzindo.
Por isso o inassertivo
é sempre perseguido
e o próprio perseguidor (faz a guerra).
O assertivo traz sempre a luz e a paz
para o planeta em transe. 

O PÁSSARO QUE NÃO PODIA VOAR

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Quando rompi a casca do ovo, 
ainda sem enxergar, ouvi a voz
de meus pais:

- Pti, Pzi, Pti!



                             

Na linguagem humana, isto quer dizer: Luz de Nossos Corações.

Senti outra presença ao meu lado. Imaginei que deveria ser meu irmão, Psi, Pzi, Psi, Semente de Amor.

Durante 21 dias, deveríamos permanecer ali no ninho, sob os cuidados de nossos pais. Logo, eu fui me dando conta das peculiaridades do lugar onde estávamos. Papai e mamãe haviam escolhido aquela árvore de lichia, uma planta bem avantajada, que apresentava uma copa fechada, ideal para abrigar ninhos. Não era à toa que éramos ali, meu irmão e eu, já a terceira ninhada. A árvore também apresentava a vantagem de estar rodeada de grama, no quintal de uma casa, onde moravam um casal e uma filha. A mulher é quem mais aparecia, cuidando das plantas, tendo o trabalho de regá-las todo dia, à tarde.

Isso era o que havia acontecido das outras vezes, fiquei sabendo. Agora, havia um fato novo.

- Vocês precisam ter muito cuidado para não caírem do ninho. O quintal está sendo frequentado por um animal assustador e perigoso – falou papai. – Qualquer descuido, pode lhes custar a vida.

Senti um tremor tomar meu corpo, fazendo com que agitasse as asas. Quis saber qual era esse animal.

- Ele se chama cachorro. O que está aqui ainda é filhote. Por isso, ele se torna mais perigoso, pois quer morder tudo o que vê pela frente. Todas as tardes, sua dona o traz até aqui para que possa correr e brincar.

Dias depois, eu me arrisquei a olhar para fora do ninho e avistei o animal. Sua dona estava sentada em um banco, sob um pé de jabuticaba. Ela jogava uma bola pequena para o ar, enquanto falava:

- Vai, Thor, vai pegar a bola.

E o cachorrinho saía correndo, abocanhava a bola e vinha trazê-la, com o rabinho abanando.

Outras vezes, a dona dava-lhe um osso e ele se entretinha, mordendo-o com dentes afiados. Pensava comigo: De fato, trata-se de um animal bem perigoso!

Os dias passavam e, apesar da ameaça sob nossas asas, dedicávamos aos exercícios para os primeiros voos. Mamãe é quem nos repassava as lições de esticar e flexionar as asas, encolher os pés e alongar o pescoço. Enquanto isso, papai cuidava de nos trazer alimentos, grãos de todas as espécies, painço em especial.

Com o tempo, os exercícios passaram a ser mais arriscados. Tínhamos que deixar o ninho e pular para os galhos vizinhos. Confesso que procurava ser dedicada e atenciosa. Mas aconteceu um dia em que calculei mal o salto para um galho e minha asa se embaralhou; acabei caindo lá das alturas e nem sabia como voar. Bati de encontro à grama e senti que minha asa havia se ferido.

Gemendo de dor, procurei me arrastar entre as folhagens, procurando um lugar onde me esconder, pois sabia que estava na hora em que o cachorrinho chegava para correr e brincar. Meus pais, tomados de aflição, voaram até onde eu estava, olharam para minha asa tombada. Procurando não manifestar qualquer tipo de preocupação, mamãe falou:

- Isso não há de ser nada, Pti, Pzi, Pti. Logo você estará bem. Vamos ficar atentos o dia todo, trazendo-lhe comida. Só peço para que não se exponha, na hora em que o cachorro estiver presente.

Assim aconteceu de ter eu ficado escondida entre as plantas, durante um bom tempo. A dona do cachorro logo notou minha presença e fez o que podia para desviar a atenção do animal. Assim que ele ameaçava vir em minha direção, ela o chamava, levando-o para longe de mim. O pior era que eu, não conseguindo controlar meu nervosismo, ficava piando o tempo todo.

Mais tarde, meus pais vieram me visitar, trazendo comida. Mamãe falou, quando se despediam:

- Amanhã, vamos trazer um tio seu que teve um filho com o mesmo tipo de problema. Vamos ouvir sua opinião.

Assim, no dia seguinte, pela tardezinha, meus pais voltaram, acompanhados de meu tio. Ele olhou atentamente para minha asa acidentada, que era a direita, levantou-a com seu bico, observou a ferida. Depois, ele falou poucas palavras:
       
- Tenha paciência, Pti, Pzi, Pti. Tudo há de se resolver.
       
Falando essas palavras, ele olhou para meus pais e eu percebi como estava preocupado. Aparentando alegria, falei:
       
- Obrigada pela visita, titio. Adeus, papai e mamãe. Peço desculpas por estar lhes dando tanto trabalho.
       
- O que é isso, filhinha do coração – falou mamãe. - Nada do que tivermos que fazer por você será custoso.
       
O tom de sua voz era emocionado. Ela desviou os olhos e alçou voo, junto com os outros dois.

(Continua)