OS CÃES E OS FILHOS DAS MÃES

F
oi o rapaz passar os festejos de fim de ano na casa de seus pais, ele que morava em outra cidade e outro Estado. Altas horas (da noite, evidentemente, pois nunca ouvi alguém falar “altas horas do dia”), estando ele voltando de uma esticada ao centro, em um táxi, avistou um cão, da raça poodle, ser atropelado por um veículo, cujo motorista não se deu ao trabalho de verificar o grau de estrago no indefeso animal.
           
Tomado de compaixão dalailamática, o rapaz não pensou duas vezes: pediu ao taxista para parar o carro e recolheu o cãozinho, levando-o para a casa dos pais.
           
Amanhecendo o dia, usou dos préstimos de um vizinho para levar o cão a um veterinário, onde foi medicado.
           
Tudo iria terminar bem, com o ato meritório recebendo a nota 100, se o rapaz providenciasse uma destinação para o cachorro. Entretanto, o que ele fez foi alardear, através da mãe, o tamanho de sua generosidade, deixando para os pais o cuidado do animal, sem se dar ao trabalho de perguntar-lhes se aquilo era de seu consentimento.
           
Não era. Todavia, passados os festejos, foi o rapaz arrumar suas malas para o retorno à terra onde fazia residência, certamente alardeando, agora ele, para os amigos e conhecidos a metade de sua boa ação.
           
A outra metade logo deixou de ser boa, para se tornar um pesadelo para o pobre animal que, se tivesse nosso nível de consciência, iria considerar que “saíra de um espeto para cair numa brasa”. A mãe do rapaz adotou aquele cãozinho (o segundo em QI da espécie canina, segundo estudiosos) como para-raios de seus destemperos, mau humor, aborrecimentos. Todo dia, quem passa pelas imediações de sua casa, ouve latidos horrorizados do pobre animal, vivendo sua hora do pesadelo, ou, em versão moderna, seus jogos mortais, ou, em linguagem contemporânea, os jogos vorazes.
           
Celestino Faustino, que não tem nada a ver com a história, no alto de sua experiência de vida, sentencia que, primeiro, devemos ouvir a razão; depois, podemos deixar falar o coração. Tanta sapiência ocorre no momento em que sua esposa, toda entusiasmada, prepara o enxoval de uma menina. Vai ser avó? – seria a pergunta lógica. Que nada! Sua filha, condoída com os apertos de uma amiga grávida, comprometeu-se a lhe preparar o enxoval do bebê. A amiga, entusiasmada, quer saber se tem como registrar a menina, tendo dupla maternidade.
           
Eu, do declive de minha ignorância e pouca vivência, vejo, pelo menos, um ponto em comum entre uma história, a do cãozinho, e a outra, da menininha: tudo acaba nas costas das mães. Faz parte da natureza materna e filial fazer dessas coisas, deixar falar o coração. Faz parte da natureza paterna querer fazer valer a razão. No fim, os filhos aparecem para as fotos, as mães seguram as pontas e aguentam o tranco, enquanto os pais resmungam para as paredes. E assim caminha a humanidade.

Etelvaldo Vieira de Melo 

1 comentários:

´Mário Cleber disse...

"Dalailamática" e "Eu, do declive de minha ignorância "... você é bem criativo, Etelvaldo.
Gostei, mas queria saber se o cão teve mais sorte do que a filha da amiga.

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