A casa onde mora Modestino Gurgel não é
aquela casinha branca de varanda ♫ com
quintal e uma janela para ver o sol nascer. Ela fica situada numa rua, que
termina na avenida principal do bairro, justamente numa curva. Com o tráfego
intenso, somado a um posto de saúde e a um depósito de bebida, frequentemente
visitado por caminhões que ali vão desovar engradados e engradados de cerveja, o
local se tornou perigoso para pedestres e motoristas, embora a Prefeitura tenha
tomado o cuidado de montar dois quebra-molas, tentando refrear a ferocidade dos
hps de cavalos instalados nos motores dos veículos. Mesmo assim, são frequentes
as freadas bruscas, pedestres correndo como galinhas tontas, querendo alçar
voo, brigas, discussões e xingamentos, temperados com palavrões.
Outro dia, um
vizinho, o Alberto Grabulosa, tentou fazer um seguro de vida, mas acabou
desistindo no meio do caminho: quando informou o endereço residencial, o
corretor aumentou o valor da prestação, justamente por causa do risco de vida a
que Alberto estava exposto.
Hoje, outro vizinho
teve sua mãe, avó, bisavó e tataravó xingadas, justamente porque queria
converter seu carro, da avenida em direção à rua, e um afobado quase arrebenta
sua traseira (a do carro).
Modestino sabe que
não está inventando a pólvora quando fala essas coisas, pois problemas de
trânsito são comuns no Brasil, de rabo a cabo, exceção para algumas cidades do
Sul Maravilha, onde sequer existe semáforo. Nas faixas marcadas no asfalto, o pedestre
pode atravessar até de olhos fechados. Quando esteve numa dessas cidades e se
deu conta desse privilégio, o Gurgel ficou indo e voltando pela faixa, até se
sentir expurgado do trauma de ter que atravessar ruas correndo, com o coração
saindo pela boca.
Se existe uma
categoria humilhada no Brasil, essa é a de pedestre. Mesmo quando o sinal está
verde para sua passagem, tem que ouvir o ronco ameaçador de motores querendo
assassiná-lo.
Andando pelas ruas do
bairro e chegando a um cruzamento, Modestino ainda nota certa tolerância de
motoristas homens, fazendo sinal com o dedo para que ele atravesse; quando está
ao volante uma mulher, parece que ele se torna invisível e o perigo fica real e
imediato.
Caso seja veraz o
princípio de que, por detrás de toda ação, existe uma oculta razão, trazendo
novos subsídios para o tema, Modestino tenta entender: qual a intenção oculta
da Disney, quando lança filmes humanizando a figura desse monstro assassino, o
carro?
Fazendo um exercício
de reflexologia, mas sem desgastar muito os neurônios, chega a considerar que
aquele estúdio está a serviço da poderosa indústria automobilística, desviando
a atenção para os incontáveis danos que os carros causam à humanidade: poluição
sonora e visual, envenenamento da atmosfera com monóxido de carbono,
engavetamentos, acidentes fatais, desvio de verbas públicas para construção de
pontes, viadutos, elevados e passarelas. Também, alegar que a produção de carros
gera empregos não passa de uma balela: hoje em dia, quase tudo é automatizado,
produzido por robôs.
Gurgel garante que
não é contra o progresso, mas gostaria que o transporte fosse socializado,
através de trens, ônibus, metrôs, bondes. Assim, haveria mais encontro entre as
pessoas e elas poderiam andar pelas ruas, sem medo de serem atropeladas. Andando
pelas avenidas, você poderia aspirar o perfume das flores e um ar puro. Não
teria que usar máscaras, como já ocorre em certas cidades do planeta.
Quando humaniza o
automóvel, a indústria cinematográfica está dizendo, subliminarmente, que
acontece, de fato, o inverso: o homem se automatiza e passa a se relacionar cada
vez mais com a máquina. As outras pessoas deixam de ter importância, passam a
ser descartáveis e hostilizadas.
Talvez seja por isso
que os homens são tomados de amores por seus carros. Para tornar ainda maior o
poder de sedução, os automóveis são, todos os anos, repaginados com um novo
figurino e designer. Modestino pede àqueles que duvidam de suas palavras para
analisarem com cuidado a publicidade que fala de automóvel, digam se ele está
exagerando em sua crítica.
Modestino também considera,
usando de sua psicologia rasteira, que, quando o carro é novo, seu cheiro
provoca emoções tão fortes que pode levar uma pessoa ao desmaio – caso que aconteceu
com um parente. Ele se pergunta por que a indústria de cosméticos ainda não
produziu uma loção com a fragrância de carro novo. Já imaginou uma loção com
aroma de uma Ferrari 599XX ou de um Bugatti Veyron Superesport? Seria o maior
sucesso, como era – em tempos antigos, quando a mulher não havia se emancipado
– o cheiro de gasolina. Após alguma reflexão, Modestino descarta essa
possibilidade, com a lembrança do romance “O Perfume”, de Patrick Süskind, onde
a produção de uma essência capaz de despertar nas pessoas sentimentos de amor e
de paixão acarretou trágicas consequências. Quanto à gasolina, nas cidadezinhas
do interior, era costume rapazes passarem um pouco da dita por trás das
orelhas, antes de irem para o jardim da praça. Naqueles tempos matusalêmicos, conforme
lhe foi repassado por seu bisavô, outra coisa que atraía a atenção das mocinhas
era batina preta de padre. Mas isso já é assunto que está fora de questão.
Etelvaldo Vieira de
Melo